31.3.19

"QUEM FOI JESUS" É ENCENADO EM BH, E EU FUI VER...



Jáder Sampaio


André Marinho esteve ontem em Belo Horizonte, graças aos esforços da Associação Médico Espírita de Minas Gerais, que nos acolheu no auditório do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Minas Gerais. Quando se fala em seminário, é com a licença da palavra, porque André preparou para a parte expositiva uma espécie de monólogo teatral, no qual ele às vezes é ele mesmo e às vezes encarna um personagem que vai narrando histórias e parábolas do Jesus mais-que-histórico, o Jesus homem, Jesus de Nazaré.

Como um fenômeno mediúnico ao contrário, ele nos coloca na pele de Jesus, fazendo-nos ver com seus olhos, temer seus medos, entender com sua mente e sofrer, sofrer muito suas dores. Ele faz uma diferença magistral entre o homem Jesus e o Jesus mitificado, tornado divino, transformado em messias ou, no jargão espírita, o governador terrestre. Alguém tão acima da condição humana, que torna impossível aos homens alguma empatia.

Ao mesmo tempo, não sei se fui apenas eu, ou se muitos passaram pela mesma impressão, ele interpreta o discurso forte de Jesus contra os que se sentem superiores, os fariseus, os saduceus, e depois na história, os próprios cristãos, perdidos nos delírios de superioridade que às vezes um cargo, uma função ou um lugar em uma instituição nos fazem ter. Senti-me assim, pequeno por me julgar eventualmente superior, seja pela racionalidade, seja pelas realizações, seja pelo trabalho que realizei ou as conquistas que empreendi ao longo da vida da qual me recordo. “Ai de vós fariseus, que amais os primeiros assentos nas sinagogas e as saudações nas praças” (Lc 11:43)

Outro momento marcante é a relação de Jesus com os excluídos. Marinho consegue fazer uma espécie de passagem no tempo. Em um momento, estamos diante da mulher adúltera, na Palestina do século I, no outro, estamos diante de um imigrante muçulmano, na orla do Rio de Janeiro do século XX, e eles não são diferentes. É uma história que aproxima, que identifica, e não uma história que isola, que distingue inconciliavelmente as sociedades.

Jesus é o redentor, não porque é o “cordeiro de Deus” abatido na cruz, um sacrifício humano, bem ao gosto dos cultos pagãos, mas porque devolve a vida aos leprosos (mortos pela lei), santifica um centurião romano (impuros pela lei), resgata o pecador na narrativa do filho pródigo (auto-exilado pela lei), exime da culpa a mulher adúltera (condenada pela lei). Ele age, atua, desde o tempo em que se torna homem público. André destaca bem que Jesus sabia do sacrifício, não por ser espírito puro e superior, mas por ter visto a condenação do Batista, nem por conhecer as profecias do messias, mas por conhecer a insanidade dos poderosos com sua lei e seu estilo de vida.

Vendo o Jesus nazareno, o Jesus humano, e o contraponto feito com a dureza dos corações dos fariseus, entendemos a mensagem do amor, da compaixão, e porque Jesus foi, na palavra de Allan Kardec, a segunda revelação. Todavia, ao contrário do que pensam alguns, creio que precisamos das três revelações. Precisamos da justiça, mas não apenas dela. Precisamos do amor, para tornar felizes os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os pacificadores, os limpos de coração (mas talvez impuros aos olhos da lei) e para redimir os pecadores (excluídos pela justiça ou por não ter tido o mínimo para ter direito a ela), porque só o amor cobre a multidão dos pecados (1 Pedro 4:8), mas não só dele, e precisamos da verdade (Jo 8:32), para obter, por fim, a libertação.

Resta ainda falar do livro “Quem foi Jesus?”, publicado pela Lachâtre e escrito por ele, que ainda não concluí a leitura. Não dá para falar pouco dele, porque ele fala muito de muitas coisas importantes. Então farei como o André em seu monólogo e direi apenas a fala meio infantil que ele usa para nos fazer voltar à cena. Seu personagem diz, enfático, algo assim:  “Mas é tão legal!!!!!!!!!!!!”


19.3.19

AINDA CONVERSANDO COM OS ESPÍRITAS EM BELO HORIZONTE




Nesse último domingo estivemos no Cenáculo Espírita Thiago Maior para fazer pela quinta vez o nosso seminário "Conversando com os espíritos". 

O evento foi organizado com muita dedicação pelos trabalhadores da casa espírita que fica em Belo Horizonte, na movimentada avenida Afonso Pena. Os participantes chegaram cedo e organizaram café, procuraram livros, abraçaram-se. Foi muito bom encontrar companheiros de outras casas espíritas, atraídos pela facilidade da inscrição via Sympla. Ainda na chegada vi nossos colegas trocando informações.


Agradeço à equipe do Thiago Maior o espaço para exposição dos livros da LIHPE, e à cuidadosa Maria, a organização e o empenho com o atendimento aos interessados. 

A primeira parte acabou se tornando uma espécie de simpósio, porque boa parte dos presentes haviam lido o livro, e queriam tirar dúvidas, apresentar experiências, levantar questões, dar contribuições. 


O intervalo foi regado a um lanche simples, mas muito concorrido. Quando assentei-me com o copo de café bem cheiroso, eis que vêm os pedidos de autógrafos e as conversas rápidas ao pé da mesa.

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As histórias rápidas são deliciosas. Amigos do Rio de Janeiro presentes, Taiobeiras (no Norte de Minas Gerais), gente que conviveu com Seu Virgílio (um dos biografados no livro), colegas do Célia Xavier de há muito tempo, amigos dos ciclos de estudos do Grupo Scheilla, irmãos espirituais do Grupo Espírita André Luiz e os amigos do Thiago, claro! Perdoem se estou me esquecendo de alguma casa espírita.


Maria havia preparado uma estante com os livros da Lachàtre e outra exposição em uma mesinha no auditório. Para minha surpresa, ainda no intervalo ela chega preocupada e me pergunta quais livros podiam ser levados para a venda. Quase do que livro do Jáder Cabral é vendido pela segunda vez...

Aos poucos, comecei a ouvir os lamentos. "O observador" havia esgotado. O remédio era comprar depois na União Espírita Mineira. Acho que "Conversando com os espíritos" também acabou. A casa havia feito uma venda prévia de dezenas de livros e trouxe mais algumas dezenas para o dia do seminário. Muita gente chegou com o livro "a tiracolo". Muitos livros foram comprados para presentear amigos que também trabalham com o atendimento aos espíritos em reuniões mediúnicas.

As perguntas foram inteligentes e levantaram temas para serem pesquisados depois. Uma delas foi sobre as crianças na espiritualidade, o que nos levou a reler a questão 381 de O Livro dos Espíritos e a 154 de O que é o espiritismo. 



Marival Veloso, veio com sua larga experiência e bom humor. Os irmãos do Grupo Espírita André Luiz participaram bastante e aproveitaram para almoçar juntos depois do seminário. Senti uma fraternidade enorme entre eles, e um entendimento enorme do propósito do trabalho: mais trocar experiências que dizer o que cada casa deve fazer.

Um tema que apareceu no seminário e é recorrente, causando interesse, são as comunicações múltiplas que adotamos em nosso grupo. Muitos grupos adotam a prática das comunicações sucessivas, em vez das simultâneas. E esta escolha gera consequências na rotina das reuniões. Isso ficou muito claro na medida em que conversávamos ao longo do seminário.

O seminário estendeu-se até depois das 13 horas. Apesar da extensão e da fome, acho que muitos ficaram com o gostinho de quero mais. Estendemos a conversa após o encerramento, e acho que só saí após as 14:30 horas da casa espírita, sem nenhuma pressa da parte dos organizadores. Tão bom este "fim de festa" espiritual!

Muita gente não entende o que os espíritas estariam fazendo em uma manhã chuvosa de domingo, acordando cedinho, na casa espírita. A alegria do encontro, só entende quem participa...

As próximas edições do seminário já estão agendadas para Montes Claros - MG e Conselheiro Lafaiete - MG. Darei notícias.

5.3.19

UMA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE A EPÍSTOLA DE PAULO AOS CORÍNTIOS


Ruínas em Corinto

Jáder Sampaio

Ao preparar um estudo sobre o cristianismo primitivo, esbarrei na tese “Paulo e a Ekklesia de Corinto: conflitos sociais e disputas de autoridade no período paleocristão”, escrito por Simone Resende da Penha Mendes.

O trabalho é interessante, porque a autora se dispôs a articular o que se conhece em história com a interpretação do texto da epístola de Paulo aos coríntios.

Corinto era uma cidade grega importante, mercantil, situada na passagem entre o Mar Jônico e o Egeu. Foi destruída em 146 pelo general romano Lúcio Múmio, com o massacre e escravização dos gregos, tornando-se romana. A cidade que Paulo conheceu era um centro comercial habitado por romanos (pobres agraciados por César e veteranos de guerra), gregos (alguns com cidadania romana), judeus e outros estrangeiros.

As diferentes origens dos cidadãos de Corinto fez com que essa comunidade se tornasse uma espécie de “caldo de culturas”, embora as decisões políticas e o poder fossem exercidos segundo Roma. Outra questão que foi revista pela autora nos autores da historiografia, foi a relação patronal na comunidade nova. Ricos e pobres formavam a nova ekklesia fundada por Paulo.

Na perspectiva cristã, as relações sociais seriam pouco relevantes nas relações dos membros da ekklesia ou comunidade. Uma nova ética é proposta por Jesus e se impõe aos códigos de moral das diferentes culturas existentes. Apesar disso, era inevitável, que uma autoridade romana tivesse problemas de convivência no espaço da comunidade com um estrangeiro, escravo ou pobre. Era provável que houvesse também um conflito entre os costumes dos membros da comunidade, porque os costumes judaicos são bem diferentes dos romanos, por exemplo. O pensamento grego também se distingue da tradição judaica, mais interpretativo-religiosa que sistêmico-filosófica. Os pequenos conflitos começam a surgir no dia-a-dia após a criação de uma nova forma de estabelecer relações sociais em uma cidade romana.

A comunidade de Corinto foi fundada no ano 50 por Paulo de Tarso. A autora afirma que ele provavelmente ficou na cidade por 18 meses (p. 56 e Atos 18:11). Nesse tempo ele trabalhava como tecelão, fabricando tendas (Atos 18:3) com Áquila e Priscila (ou Prisca[1]). É curioso, porque na cultura hebraica, aos sacerdotes era devido algum pagamento, o que fez com que Paulo lembrasse isso à comunidade em uma de suas epístolas.

A autora discute as teorias sobre quantas epístolas Paulo realmente teria escrito. Os autores consultados falam em oito epístolas, das quais uma se perdeu e as demais foram usadas na composição dos textos das duas epístolas da Bíblia. Simone conclui que duas se perderam (p. 62), que I Coríntios é composto de duas epístolas e que II Coríntios é composto de outras quatro epístolas, em resumo. Ela, contudo, defende a autoria de Paulo.

Além de Áquila e Priscila, outros personagens são nominalmente citados nas epístolas, dentre eles, Apolo. Simone (p. 137) localiza no livro de Atos (cap. 18), que se trata de um judeu nascido em Alexandria, eloquente e versado nas escrituras. A autora explica que ele tinha habilidade retórica, possivelmente superior à do próprio Paulo, o que o levaria a justificar que seu trabalho era “anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem” (I Coríntios). Apolo era amigo de Paulo, e é um dos que levam a ele informações sobre a comunidade cristã de Corinto. Simone Mendes especula se ele não teria sido influenciado por Filo ou por autores do paleocristianismo de Alexandria, antes de ter vindo a Corinto.

Os Conflitos

Simone classifica os conflitos da ekklesia de Corinto em dois tipos: os conflitos políticos e os de conduta.

Um dos conflitos políticos foi a divisão de alguns dos membros da comunidade entre os “de Paulo” e “de Apolo”, que a autora interpreta como sendo a origem de uma série de considerações que Paulo faz nas epístolas. Apolo teria uma formação mais filosófica e Paulo falaria mais diretamente. Simone entende que os “simpatizantes” de Apolo (I Coríntios 3:3-6) valorizavam mais a sabedoria do mundo, o que teria levado Paulo a contrapô-la com a sabedoria de Deus, revelada pelo "espírito", (I cor 1:17, 2:16 e pág. 139 da dissertação de Simone Mendes).

A autora identifica 14 conflitos políticos em seu trabalho (p. 135) que os interessados podem estudar posteriormente.

Outra categoria foi identificada como conflitos de conduta, que a autora mostra ter origem nas diferenças culturais e morais dos membros da comunidade. Assim se encontra uma discussão sobre o uso de véu nas reuniões da ekklesia, outra sobre um membro que passou a viver com a mulher do pai, o recurso a tribunais gentios, possível manutenção de relações sexuais de membros com prostitutas, questões relativas a virgindade e casamento, consume de carnes sacrificadas aos ídolos, e ocupação de lugares na ceia do senhor (não havia missa à época, mas uma refeição comunal). A explicação de cada um desses conflitos pode ser lida nas páginas 121 e seguintes da dissertação.

Costumes diferentes, ética cristã e uma nova moral

O que se observa no trabalho do Programa de Pós-Graduação em História da UFES é uma análise das epístolas de Paulo aos coríntios que mostra a dificuldade em se construir uma comunidade formada de pessoas de diferentes origens, culturas e costumes. Ao resolverem viver como comunidade, os membros de Corinto são desafiados a reconstruir seus valores em uma perspectiva cristã. Paulo age como uma liderança, discutindo os problemas que surgem à luz dos ensinos de Jesus.

As epístolas são analisadas pela autora como uma reflexão paulina diante dos desafios que o convívio entre cristãos-judeus e cristãos-gentios se amplia, em lugar de ser lidas como um código de conduta cristã. Muitas das questões de conduta, por exemplo, são de ordem prática, e não foram abordadas por Jesus em suas pregações ou em seu convívio com os apóstolos, uma vez que todos eram oriundos da cultura hebraica e não havia conflito naquilo que habitualmente já faziam da mesma forma. As soluções paulinas para os problemas da época ganharam visibilidade e aceitação pela comunidade cristã como um todo, o que mostra que eram problemas comuns e que as soluções eram bem vistas.

O estudo do cristianismo primitivo ou paleocristianismo interessa a nós, espíritas, porque há diferenças marcantes entre as comunidades primeiras e as que se formaram após a fusão entre o movimento cristão e o estado romano. Esse evento “divisor de águas” se inicia no governo de Constantino, no século IV.




[1] Πρισκιλλαν, do grego, pode ser traduzido para o latim como Prisca. As diferentes Bíblias que lenho traduzem o nome da esposa de Áquila para Priscila. Na Bíblia em latim (Sacra Vulgata), o nome se encontra grafado Priscillam.

16.2.19

SAIU A CHAMADA DE TRABALHOS DO 15 ENLIHPE





15º ENCONTRO NACIONAL DA LIGA DE PESQUISADORES DO ESPIRITISMO
Tema central: Kardec: 150 anos depois
24 e 25 de agosto de 2019
Fortaleza-CE

CHAMADA DE TRABALHOS

Apresentação
O Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo (ENLIHPE) é um espaço privilegiado no contexto brasileiro para apresentação e discussão de propostas e trabalhos de investigação científica sobre a temática espírita. O sucesso alcançado nos anos anteriores tem atraído pesquisadores de todo o Brasil, interessados na divulgação e discussão de seus estudos.
Um dos diferenciais do ENLIHPE é o seu formato, o qual incentiva a formação de redes de pesquisa e promove a aproximação de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento.

Instruções aos autores

A data final para submissão de trabalhos é 30 de abril de 2019. A confirmação do recebimento e o parecer da Comissão Científica sobre o artigo serão enviados eletronicamente ao email do remetente.
A avaliação será feita utilizando-se o sistema Double Blind Review, no qual o trabalho é avaliado anonimamente por 2 por membros da Comissão Científica do encontro.
Os trabalhos podem ser submetidos em qualquer área do conhecimento, desde que relacionado à temática espírita, em forma de artigo científico, conforme procedimentos definidos a seguir:

Artigo científico
•O artigo deverá ser gravado em 2 arquivos:
ARQUIVO 1 – contendo o nome do(s) autor(es), o título do trabalho e o resumo;
ARQUIVO 2 – contendo o título e o texto integral do artigo sem qualquer identificação de autoria.

Submissões de trabalhos
Envie os arquivos para 15ENLIHPE@gmail.com

Formato do Trabalho:
Editor de textos: Word for Windows 6.0 ou Posterior
Número máximo de páginas: 15 (quinze)
Configuração das páginas
Margens: superior 3cm; inferior 2 cm; esquerda 3cm; direita 2 cm.
Tamanho do papel: A4 (largura 21 cm; altura 29,7 cm)
Fonte: Times New Roman, tamanho 12
Formato do parágrafo: Recuo especial: primeira linha 1,25 cm
Espaçamento entre linhas: simples.
Figuras, tabelas e gráficos: Fonte Times New Roman, tamanho 8 a 12
Resumo: Mínimo de 1150 caracteres (aproximadamente 10 linhas), máximo de 1750 caracteres (aproximadamente 15 linhas)
Revisão ortográfica a cargo dos autores

Informações adicionais: Acesse www.lihpe.net ou envie uma mensagem para contato@lihpe.net

Local do evento: Federação Espírita do Estado do Ceará – FEEC. Rua Princesa Isabel, 255 – Centro -  Fortaleza/CE

14.2.19

DARWIN, DEÍSTA; KARDEC, CRISTÃO-ESPÍRITA





Allan Kardec tem um texto publicado em Obras Póstumas que sempre me intrigou, denominado “As cinco alternativas da humanidade”. Confesso que nunca entendi direito os deístas e porque Kardec denominou “doutrina dogmática” à dos católicos e protestantes, sem menção ao cristianismo.

Ele coloca em uma posição diversa o espiritismo, confrontando-o com as demais doutrinas, nos aspectos que selecionou delas.

Já levantamos em outra publicação do Espiritismo Comentado, a questão do panteísmo e de sua relação com o pensamento de Baruch Spinoza.

Hoje eu estou lendo o livro “Dispelling the Darkness: Voyage in the Malay Archipelago and the Discovery of evolution by Wallace and Darwin”, de John Van Wyhe, que trata do tema de forma interessante.

Ele diz que Darwin também “pensava muito sobre religião” e que foi durante a pesquisa e teorização intensa que ele fez à bordo do Beagle que ele passou a desacreditar “na cristandade e divina revelação. Não havia simplesmente nenhuma evidência. Ele desceu um nível e se tornou um deísta. Ele ainda acreditava em um criador sobrenatural que estabeleceu as leis da natureza em primeiro lugar, mas tanto quanto Darwin pensava, a natureza trabalhava de acordo com as leis naturais.”

Os deístas entendem, em geral, que se pode estudar a divindade a partir do conhecimento da natureza, e não da teologia cristã. No caso de Darwin, ele fez uma ruptura com o pensamento cristão, após começar a perceber que existia a evolução das espécies a partir da seleção natural, que induziu, assim como Wallace, da leitura de Thomas Malthus, curiosamente.

Da mesma forma que Darwin, em sua autobiografia, Flammarion rompe com o cristianismo ainda na adolescência, após estudar os avanços da ciência e os erros da Bíblia no que concerne à idade do mundo, formação da humanidade e outros temas que emergiram nas ciência no final do século XVIII e início do século XIX.

Nesse ponto, há alguma relação entre Darwin e Kardec, porque Kardec entendia as leis naturais como criadas por Deus, e por isso as chamava de “Lei Divina ou Natural”, mas Kardec propõe leis que vão além de Darwin, e aceita um providencialismo que não é divino, mas espiritual.

Outra diferença entre o deísta Darwin e o espírita Allan Kardec, é que este se entendia como cristão espírita, ou seja, ele não abriu mão do cristianismo como base ética, nem do estudo histórico do cristianismo, nem da possibilidade de explicar passagens da vida de Jesus e dos apóstolos consideradas milagres com a nova perspectiva obtida a partir dos estudos dos fenômenos espirituais.

Na classificação de Kardec, Darwin seria um deísta independente, e não providencialista.

Considerando a classificação de Kardec de espírita-cristão, o espiritismo teria uma dimensão religiosa, como entendia Flammarion em seu livro "As Forças Naturais Desconhecidas".

11.2.19

A ESCRITURA INTERPRETA A ESCRITURA?




Estou lendo a dissertação de mestrado “Orígenes ensinou a reencarnação? Uma resposta às teorias neo-gnósticas da reencarnação cristã com referência particular a Orígenes e ao segundo concílio de Constantinopla (553)”, escrita por Dan Schlesinger. Ela foi defendida no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de Glasgow, na Escócia, em 2016.

Trata-se de um belo texto, bem fundamentado de um estudioso da área, simpático ao pensamento ortodoxo cristão que entende que não se deve entender que haja reencarnação no Novo Testamento.

Há muito que comentar e discutir na argumentação do mestre Schlesinger, se puder, vou pinçar alguns argumentos polêmicos e comentá-los no Espiritismo Comentado.

Um ponto interessante que ele apresenta é o que ele denomina como princípio básico de hermenêutica (interpretação dos textos bíblicos) aceita pelos teólogos cristãos em geral: “a escritura interpreta a escritura”. Isso significa que, como bem explica o autor, “onde as passagens são isoladas, obscuras ou aparentemente contraditórias”, interpreta-se levando em conta outras passagens e regras de interpretação bíblica que se referem ao texto. Ele diz que os neo-gnósticos (ele chama de neo-gnósticos os autores do movimento new age, e não dá mostras de conhecer o espiritismo) fazem eisegese (interpretar um texto dando ideias do próprio leitor) e não exegese (interpretação minuciosa do texto).

Em outras palavras, ele diz que os membros do movimento new age fazem uma interpretação forçada dos evangelhos para acomodar suas próprias crenças, e, portanto, defende que a teologia tradicional não faz isso, possivelmente por causa da coerência interna das interpretações com os textos das escrituras e possivelmente com a tradição cristã, que supõe remontar à interpretação dos apóstolos e dos primeiros cristãos.

Olhando com algum afastamento, acho essa argumentação bem falaciosa, em função de alguns argumentos que passo a apresentar.

O primeiro é que o conjunto de livros que compõem o Novo Testamento foram objeto de escolha no final do século IV e início do século V, por Jerônimo (considerado santo), a pedido do papa Dâmaso I, e logo a seguir traduzidos para o latim, compondo a Vulgata. Ele consultou outros cânones existentes, mas teria comentado, segundo Léon Denis, que ele estava ciente que sua escolha não seria aceita pelas diversas comunidades cristãs ao redor do mundo na época.

O argumento que se emprega em defesa do trabalho de Jerônimo, é que ele escolheu apenas os textos que eram coerentes entre si, que não eram contraditórios.

Então, a regra da hermenêutica incorre na chamada “petição de princípio”, que é uma falácia, citada pelo próprio autor contra os “neo-gnósticos” e contra nós, porque uma pessoa escolheu os textos da escritura, mas só se pode interpretar as passagens obscuras usando-se os textos que ele escolheu. Em outras palavras, a compreensão de Jerônimo e de sua tradição se torna, na verdade, um critério para a interpretação dos evangelhos. Temos, então uma regra que impõe uma hermenêutica dos vitoriosos da história, já que havia um número enorme de textos (como o Pastor de Hermas que foi usado por muito tempo pelos cristãos primeiros e depois retirado do cânone) e de interpretações (as mais “populares e discordantes” foram consideradas heresias).

Repetindo, é um erro lógico também chamado de circularidade. Eu só posso interpretar usando os textos que alguém escolheu como certos porque são considerados coerentes entre si, com critérios que Jerônimo considerou.

Esse é um ponto importante, porque permite a consideração e análise de outros textos produzidos nos primeiros séculos, como fontes para a compreensão do que os primeiros cristãos pensavam, para fins do entendimento possível do que Jesus deve ter ensinado aos apóstolos. É uma abordagem hermenêutica que inclui estudos históricos e a necessidade de compreensão de como os grupos cristãos foram se formando, e não apenas assume como heresias o que a ortodoxia vitoriosa assim o considera.

Por essa razão, é sensata a recomendação de Allan Kardec que conheçamos a época e os costumes para entender o texto bíblico e a provocação de Hermínio Miranda quando coloca no título de seu livro sobre o cristianismo a expressão “heresia católica”. 

8.2.19

COMO O ESPIRITISMO VÊ A QUESTÃO DA CATÁSTROFE DE BRUMADINHO?





Após a tragédia de Brumadinho, muitos espíritas têm se preocupado em argumentar sobre a questão da justiça divina do sofrimento coletivo. Há em Allan Kardec, contudo, outra questão importante que ele trata na Lei de Destruição (O Livro dos Espíritos), quando pergunta aos Espíritos sobre os flagelos (no sentido de catástrofe, dano coletivos): o progresso dos homens, em especial o progresso da sociedade. 

Por progresso, nesse caso, não entendemos um crescimento a partir de um sofrimento depurador, mas uma mudança de mentalidade, conhecimentos e ações coletivas para evitar no futuro novas catástrofes.

Na questão 741, Allan Kardec pergunta se é possível  ao homem afastar os flagelos e os Espíritos respondem que muitos deles “resultam da imprevidência do homem”. É o que nos parece ter acontecido nos casos de Mariana e Brumadinho-MG. Duas semanas após o rompimento da barragem de rejeitos que gerou a desencarnação violenta de muitas dezenas de pessoas na cidade próxima à capital mineira, os meios de comunicação têm dado voz a especialistas que apontam formas alternativas de lidar com os rejeitos, tecnologias de prevenção da ruptura das barragens, problemas da legislação referente à fiscalização do estado das barragens de contenção, entre outras questões. 

A ruptura da barragem de Mariana foi uma catástrofe que, se tivéssemos, como sociedade e órgãos de Estado, levado à sério, teria o papel de promover avanços capazes de evitar ou minimizar em muito os danos da ruptura da barragem 1, de Brumadinho. Uma questão que não sofreu avanços e tem sido questionada é o próprio sistema de fiscalização das barragens no qual o fiscal é ao mesmo tempo prestador de serviços diretamente contratado pela empresa mineradora, e que poderia ter sido solucionado com uma mera alteração legal.

Os Espíritos dizem a Kardec: “À medida em que adquire conhecimentos e experiência, ele pode afastar, isto é prevenir, se souber pesquisar suas causas.”
Kardec ainda comenta: “... Entretanto, não tem o homem encontrado na Ciência, nas obras de engenharia, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações, no estudo das condições higiênicas, meios de neutralizar, ou pelo menos de atenuar, tantos desastres? Certas regiões, outrora assoladas por tantos flagelos, não estão hoje livres deles?”

Esperamos que o segundo e mais grave episódio de ruptura de barragens faça acordar a população brasileira, e, em especial, a nós espíritas, para realizarmos o que é necessário: acompanhar as mudanças que evitarão ou pelo menos atenuarão novos incidentes capazes de ceifar vidas, destruir comunidades e deixar consequências no meio ambiente que talvez afetem a um grande número de seres vivos por um grande período de tempo.

30.1.19

KARDEC, A ALMA DO MUNDO E O PANTEÍSMO



Como bom pedagogo, ao escrever seus livros para o grande público, Allan Kardec discutiu com os espíritos muitos tópicos da filosofia antiga e de sua época, sem ficar citando os autores. Alguns conceitos, hoje esquecidos, deviam ser muito conhecidos no meio intelectual francês do século XIX, e vez por outra, ao pesquisar as origens, esbarro em algum filósofo importante.

Em sua primeira publicação espírita, Kardec apresenta rapidamente o conceito de “alma do mundo” – “âme du monde” (O Livro dos Espíritos, questão 144), afastando a ideia de que os planetas são seres viventes, como pensava, por exemplo, Orígenes, em seu “Tratado sobre os princípios”, no século III.

O dicionarista Ferrater Mora explica que o conceito de “alma do mundo” está em Platão, como uma “mescla harmoniosa pelo demiurgo das ideias e da matéria”. É bem possível que Kardec tenha usado o termo platônico para questionar aos Espíritos, uma vez que ele considera Platão e Sócrates como precursores do cristianismo e do espiritismo.

No capítulo XI de A Gênese, Kardec refere-se a um conceito semelhante, o de “alma do universo” (A Gênese, capítulo XI, parágrafo 28), em francês, “âme de l’univers”.

Heráclito fala de uma “alma do universo”, que é um “todo homogêneo” para onde volta a alma humana após a morte, perdendo sua individualidade e tornando-se homogênea.

Baruch Spinoza (século XVII) entendia Deus como sendo a “alma do universo”, no sentido que era o “mecanismo imanente da natureza”, ou seja, Deus é a natureza. Trata-se de uma concepção panteísta.

Allan Kardec, contudo, deixa claro que o espiritismo não é panteísta em seu texto “As cinco alternativas da humanidade”, publicado em Obras Póstumas. É um texto que não se encontra na Revista Espírita, no período em que Kardec foi seu editor, deve ser, portanto, um texto do final de vida.

Spinoza é considerado o “monista por excelência”, porque entende que tudo é uma única substância: Deus, o universo e o ser humano. Kardec, contudo, posiciona-se como dualista ou trinitário (trindade universal), uma vez que entende que há dois princípios ou substâncias, o material e o espiritual, e “acima de tudo Deus”, cuja natureza (essência, substância) diferiria do espírito e da matéria. (O Livro dos Espíritos, questão 27)

O monismo de Spinoza pode ser lido em seu livro "Ética demonstrada à maneira dos geômetras". Na proposição XVI encontra-se a concepção de Deus como infinito, que resultaria na concepção de Deus como um intelecto infinito e causa primeira. (corolários I e III). 

Há uma conexão entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e a metafísica de Allan Kardec. 



24.1.19

A COMUNICABILIDADE DOS ESPÍRITOS É UMA PREMISSA METAFÍSICA NO ESPIRITISMO?


Mais recentemente, com o retorno da filosofia ao ensino médio brasileiro e a ampla difusão das obras de Allan Kardec, com iniciativas como as da FEB e do Instituto de Pesquisas Espíritas Allan Kardec (IPEAK), têm surgido novos debates com base em leituras, não apenas das obras básicas do fundador, mas também da Revista Espírita, no período em que ele era o editor (1858-1869), que contém contribuições que deixam mais claros alguns pontos do pensamento espírita.


Vi por esses dias um debate sobre os princípios a partir dos quais o espiritismo foi elaborado. Na filosofia, esses princípios podem ser ideias consideradas corretas (premissas ou postulados) ou justificadas racionalmente. Já os dogmas, embora tenham o sentido original de premissas de sistemas filosóficos na antiguidade, acabaram por ser entendidos como pontos de vista indiscutíveis sobre os quais se fundam as religiões, especialmente a partir do cristianismo medieval.



Um ponto aparentemente óbvio, mas que foi e parece que continua sendo fonte de debates, diz respeito à existência e comunicabilidade dos espíritos. É uma premissa adotada por Kardec como verdadeira e indiscutível (dogma) ou é o resultado de uma cuidadosa observação de fatos?



Na Revista Espírita de abril de 1869, encontra-se um artigo curioso, intitulado "Profissão de fé espírita americana", onde possivelmente Allan Kardec comenta uma publicação do jornal Salut, de New Orleans, de 1867, no qual se divulgam os resultados de um congresso espiritualista norte americano. O evento gerou uma "profissão de fé" dos espiritualistas dos Estados Unidos, e Kardec destaca as muitas semelhanças entre pontos de vista e as muito poucas diferenças. Como foram movimentos desenvolvidos separadamente, Kardec argumenta como um ponto favorável ao espiritismo.



Uma questão que ele destaca em seus comentários é a da origem da proposição da comunicabilidade dos Espíritos no espiritualismo e no espiritismo. Lê-se abaixo:



"Essa crença não é mais o resultado de um sistema preconcebido nesse país do que o Espiritismo na França. Ninguém a imaginou; viu-se, observou-se e tiraram-se conclusões. Lá, como aqui, não se partiu da hipótese dos Espíritos para explicar os fenômenos, mas dos fenômenos, como efeito, chegou-se aos Espíritos como causa, pela observação. Eis uma circunstância capital que os detratores se obstinam em não levar em conta." (Revista Espírita, abril de 1869, p. 99. Tradução de Júlio Abreu Filho pela EDICEL)


Cabe lembrar também que não se trata de crença ingênua, porque Allan Kardec examinou as diferentes formas de explicação dos fenômenos estudados, como se pode ler no capítulo IV da primeira parte de O Livro dos Médiuns (Dos sistemas), verificando a capacidade explicativa de cada um deles e delimitando os fenômenos que só seriam devidamente explicados pelas comunicabilidade dos Espíritos.

Camille Flammarion não ficou satisfeito com este trabalho de Allan Kardec e continuou estudando empiricamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos de forma geral. Publicou em 1865 o livro "As forças naturais desconhecidas", no qual analisa e considera verdadeiros diversos fenômenos estudados, mas ainda não conclui pela indubitabilidade da comunicação dos espíritos. Essa conclusão veio em 1922, quando publicou o terceiro livro de "A morte e seu mistério".

Vê-se, portanto, que seria um erro entender que o Espiritismo propõe a comunicabilidade dos Espíritos apenas como ideia ou princípio metafísico, mas que se trata do resultado de observações de fenômenos psicológicos (ou parapsicológicos, como queira o leitor) e que não nega a possibilidade de outras explicações, exigindo do seu observador uma análise cuidadosa para não levar "gato por lebre", ou seja, não confundir com as produções do inconsciente, com a imaginação ativa, com a fantasia, fraudes intencionais ou não e outras explicações possíveis.

11.1.19

O PADRE QUEVEDO E A PARAPSICOLOGIA



Oscar Quevedo


Desencarnou no dia 9 de janeiro de 2019 o Padre Oscar González Quevedo Bruzán, jesuíta conhecido pelo emprego de ideias parapsicológicas em articulação com sua fé católica. Quevedo foi crítico a-priori das ideias espíritas, e teve muitos interlocutores em nosso movimento, como Carlos Imbassahy, Herculano Pires e outros. Um exemplo é o livro A farsa escura da mente, escrito por Imbassahy para discutir o livro "A face oculta da mente" publicado pelo jesuíta.

O site G! assim apresenta Quevedo:

"Natural de Madri e naturalizado brasileiro, Padre Quevedo é considerado um dos maiores especialistas do mundo na área de parapsicologia e autor de dezenas de livros, muitos dos quais traduzidos para outras línguas, como "O que é parapsicologia", "A Face Oculta da Mente" e "As Forças Físicas da Mente". Além de parapsicologia, era formado em filosofia, teologia e humanidades clássicas."(https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/01/10/corpo-de-padre-quevedo-e-enterrado-em-belo-horizonte.ghtml)

Ao procurar o nome de Quevedo, contudo, na base Periódicos Capes, uma das usadas para a pesquisa em milhares de revistas científicas, inclusive do campo da parapsicologia, encontrei apenas uma citação em um texto de um parapsicólogo, membro da Parapsychological Association, nos Estados Unidos, que diz:

"Outro exemplo mais extremo é a parapsicolgia-baseada-no-catolicismo desenvolvida por Oscar González Quevedo, um parapsicólogo e jesuíta espanhol que vive no Brasil." Alvarado discute a questão do critério de demarcação entre o sobrenatural (influência direta de Deus no mundo) e dos fenômenos de percepção extra-sensorial como propriedades da alma (não perceptíveis organicamente), bem como a recomendação do religioso de não se desenvolverem fenômenos psíquicos. Outra crítica de Alvarado é o não desenvolvimento de pesquisa empírica pelos seguidores de Quevedo, baseando sua produção apenas no que já foi publicado.

Outras reticências são propostas ao trabalho de Quevedo, e Alvarado assim conclui sua argumentação:

"Felizmente para o futuro da parapsicologia no Brasil, essa forma arcaica do campo está rapidamente em declínio".

(Alvarado, Carlos S. Reflections on being a parapsychologist. The journal of parapsychology, v. 67, fall 2003, p, 211-148)

Respeito a fé do padre e compreendo sua dedicação à igreja, à qual se ligou desde a adolescência. Gostaria de externar aos familiares e aos amigos dele, meus sentimentos nesse momento de perda da presença da pessoa que lhes foi importante. 

Publico esse texto em um momento sensível, talvez inoportuno, para questionar a imagem projetada por um dos meios de comunicação mais influentes em nosso país, apresentando uma segunda visão, produzida por um especialista reconhecido no campo da parapsicologia na atualidade.

8.1.19

COMO FOI E VEM SENDO CONSTRUÍDO O MOVIMENTO ESPÍRITA NO ESTADO DE SÃO PAULO?





Recebi da USE-SP, ano passado, esse livro que é um trabalho de recuperação da memória da instituição.

O organizador, Rubens Toledo, deixa ao leitor um texto fácil de ler, que vai apresentando uma linha do tempo que vai do surgimento do Espiritismo no Brasil, passando pelos congressos, decisões e eventos que constituíram a USE. É uma história interessante de se ler, os olhos de um mineiro, porque o estado de São Paulo teve pelo menos quatro instituições disputando a representatividade das casas espíritas.

O texto é ilustrado, e reconhece desde pessoas famosas no movimento, como Herculano Pires, até outros trabalhadores que dedicaram-se sem notoriedade pública, realizando atividades que devem ser feitas sem muita exposição ao público.

Não é uma narrativa chata, daquelas de listas de nomes e datas infindáveis, que após dez minutos de leitura não se tem nada em mente. Rubens conseguiu dar protagonismo aos espíritas paulistas e paulistanos, e àqueles que, mesmo sendo de fora, passaram a participar da comunidade espírita de São Paulo. O leitor vê as coisas acontecerem, as instituições se formarem, os presidentes e seus projetos, as realizações em nascimento, curso e, às vezes, morte. 

A segunda parte do livro trata das regionais, descrevendo-as e fazendo justiça ao que fizeram mais recentemente.

Vivemos um momento em que há muitas críticas pessoais e mal fundamentadas, dirigidas às casas espíritas, de dentro do próprio meio espírita. Críticas voltadas mais ao culto do ego do crítico que às reformas institucionais, por vezes necessárias. Algumas são pessoais e ferinas, outras sem fundamento que não a opinião pessoal ou eventos reais isolados, tratados como se fossem regra. Críticas vazias de evidências, arrogantes... 

A contribuição desse tipo de trabalho não deve ser subestimada, mas devidamente examinada e valorizada. Quiçá difundida por outras regiões do Brasil e do exterior.

Título: USE 70 anos: Passado, Presente e Futuro em Nossas Mãos
Organizador: Rubens Toledo
Edições USE
Junho de 2017
304 p.

21.12.18

DOIS INDÍCIOS DA IDENTIDADE DE BEZERRA DE MENEZES NO LIVRO "DRAMAS DA OBSESSÃO"





A expulsão dos judeus em 1497



Estamos estudando o livro “Dramas da Obsessão”, ditado pelo Espírito Bezerra de Menezes a Yvonne Pereira. Como a leitura é feita aos poucos em nosso grupo de estudos (um pequeno capítulo por sessão), conseguimos observar alguns detalhes que geralmente escapam a uma leitura do livro como romance apenas.

A trama do romance, desde o início, remete o leitor ao livro “A Loucura sob Novo Prisma”, publicado postumamente. Nesse livro, o médico cearense defende a tese da existência de pessoas avaliadas como loucas por médicos da época, que na verdade sofreriam apenas a obsessão espiritual (provocada por espíritos inferiores). A história, que parece ter origem em fatos reais, trata de suicidas que foram levados ao ato por obsessão espiritual.

Durante a narrativa se descobre que os obsessores do livro haviam sido convertidos compulsoriamente ao cristianismo no século XVI, e depois torturados e mortos apenas por terem fortuna, sob o pretexto de cultuarem sua religião em segredo.

Na narrativa, Bezerra mostra como eles foram obrigados a adotar nomes cristãos após a conversão. O rabino Timóteo Aboab passou a ser chamado de Silvério Fontes Oliveira, seus filhos Joel, Saulo e Rubem, tiveram que adotar os nomes de Henrique, José e Joaquim, respectivamente.

Nas páginas 66 e 67 da minha edição, Bezerra traça uma explicação sobre o significado hebraico dos nomes da família, voltando até mesmo à descendência de Israel (ou Jacó). A mudança obrigatória de nomes é, portanto, uma violência simbólica e uma tentativa de apagar as origens judaicas da família.

Curiosamente, Bezerra faz um comentário muito relevante, relacionado a este fato:

“Nestas páginas, não obstante, continuaremos a tratar nossas personagens pelos seus nomes de origem, uma vez que, liberais que deveremos ser, respeitaremos o direito que eles têm, ou quem quer que seja, de se nomearem conforme lhes aprouver.”

Por isso, ele continua chamando os autores com seus nomes hebraicos durante a narrativa.

Vemos, portanto, que o autor espiritual admite a influência das ideias liberais, que ele defendeu pela política quando estava encarnado. Bezerra era político do partido liberal, na segunda metade do século XIX. Embora pontual, não deixa de ser uma marca de identidade do autor.

O tema do livro, como uma ilustração de uma tese que ele quase defendeu quando encarnado[1] e sua identificação com as ideias liberais, são dois pontos que trazem a marca de Adolfo Bezerra de Menezes no livro ditado a Yvonne Pereira.

Bezerra de Menezes (espírito). Dramas da Obsessão. 4 ed. Rio de Janeiro: FEB, 1981. [psicografado por Yvonne A. Pereira]




[1] Segundo Luciano Klein Filho, Bezerra escreveu “A loucura sob novo prisma” para apresentar como tese no Congresso Espírita e Espiritualista Internacional em Paris-França, em 1900, mas desencarnou antes do evento.

17.12.18

JOÃO (DE DEUS?)


Apesar do uso de palavras e da imagem de pessoas do espiritismo, a instituição criada por João de Deus não leva o indicativo de espírita.

O assunto da semana em diversos círculos que frequento têm sido as acusações de assédio sexual a João de Deus. O volume de denúncias e detalhes veiculados pela mídia em geral é imenso, e é muito difícil no momento acreditar que possa ser alguma espécie de conspiração contra esse homem, ou algum fenômeno de massas. Até ontem, eram mais de trezentas denúncias vindas de diversos lugares do Brasil e do exterior. Aguardemos, contudo, a confirmação que virá pelo trabalho da justiça.

Enquanto isso, tenho acompanhado com interesse as declarações que vão surgindo, e, em paralelo a elas os comentários e opiniões dos entrevistados. É verdade que tenho ouvido muito dos católicos e evangélicos do meu círculo de conhecimentos que aquilo não se parece com o espiritismo e com os espíritas brasileiros. O espiritismo desfruta de boa reputação diante da população em geral.

Exploração da Fé

Considerando factíveis os relatos, todos se perguntam como uma pessoa conseguiu enganar a tantos por tanto tempo. Ao contrário do que pensa a coach Ammy que levava estrangeiros para Abadiânia, não se trata de doutrinação[1], mas de exploração da fé ingênua ou acrítica.

Manipulação da ignorância

Boa parte das mulheres foram atrás da faculdade de João de Abadiânia esperando encontrar uma espécie de homem-santo, um profeta, alguém que cura gratuitamente, praticante da caridade e digno de confiança. Ele se apresenta à sociedade como um médium, e se identifica com a expressão João de Deus. Como ele afirma curar, e tem uma reputação confirmada até mesmo por jornalistas mundialmente famosos como Oprah  Winfrey[2], é visto também com algumas licenças que concedemos aos médicos, como o acesso ao corpo para fins de promoção da saúde.

Outra coisa que facilita a manipulação das vítimas é a imagem que se criou do Dr. Fritz, através de outros médiuns, um alemão rude, que dá ordens, desafia as autoridades presente e exige obediência, mas que no final obtém a cura. É mais uma concessão a ser tolerada na espera de um resultado que desafia as melhores práticas da medicina. É algo bem diferente da racionalidade, afetividade e respeito às pessoas, características que encontramos no espiritismo ao se referir aos espíritos superiores.

A ignorância do espiritismo age contra as vítimas. O médium acusado de assédio diz que vai fazer um “alinhamento de chacras”[3], que vai “desbloquear um chacra”, coisas inexistentes na literatura espírita, mas que são ouvidas como uma espécie de procedimento médico espiritual. Na leitura das denúncias, João parece não se preocupar, ou mais, se servir da confusão do emprego de palavras de doutrinas orientais pouco conhecidas pelo grande público para que a vítima não se assegure do óbvio: ela estaria sofrendo abuso sexual.

Outro desconhecimento do espiritismo é bem manipulado por João: a mediunidade. Mediunidade é uma faculdade, uma capacidade das pessoas em geral, independentemente de sua ética. A cura por meios espirituais na tradição judaica, no entanto, é atribuída a Deus através de seus profetas ou emissários, e na tradição cristã-católica, aos homens santos. Como João cura (e há inúmeros relatos de pacientes que não melhoraram com a medicina e que melhoram após participar das reuniões de João[4]), ele toma emprestada a “aura de santidade”, que, ante as mentes ingênuas, lhe traz uma reputação de confiabilidade. Poucos tornam públicas, contudo, das pessoas que não obtiveram melhoras orgânicas, nem do comércio que alguns denunciam existir por detrás dos grandes espetáculos públicos de mediunidade[5], tão condenados pelas instituições espíritas sérias.

Outra coisa que João consegue com mentiras é a fragilização dos vulneráveis. “Feche os olhos, porque a luz é muito forte e pode cegar”, ele diz a uma mulher. [6]

Diante de uma menor aos gritos, assustada com a óbvia violação da intimidade, João não se alteraria. Ele diz que se trata de uma obsessão e pede à sogra que a acompanhava, para não abrir os olhos[7], e, de certa forma, ignorar o pedido de ajuda da jovem.

Para quem resiste: intimidação

Uma forma de intimidação simbólica é a ameaça da volta da doença[8]. João foi acusado de fazer isso com uma mulher que o procurou com câncer de mama, como se ele tivesse o poder sobre a saúde e a doença, ou autoridade a partir de um conhecimento sobre a psicogênese das doenças.

Outra acusação de possíveis vítimas de João de Deus é a de intimidação. Na denúncia da filha, que se afirma abusada na infância, entre os dez e os quatorze anos, se encontra uma acusação de ameaça de morte[9].

A questão da reputação

Li nos relatos jornalísticos sobre o caso a alegação de medo[10], diante da reputação social que João tem, especialmente em Abadiânia, uma cidade na qual a Casa de Dom Inácio é muito influente e economicamente importante[11].

Por que não denunciaram antes?

Vulnerabilidade, manipulação da ignorância, desconhecimento do espiritismo e dos orientalismos empregados, medo, ameaças... todas essas razões e talvez outras ainda não exploradas vão criando o ambiente para que um abusador possa ter cometido com tantas mulheres, atos libidinosos não consentidos.

Mesmo ante tantas acusações, ainda não podemos escrever que João de Deus cometeu os atos descritos. Todavia, confiamos no trabalho da justiça e da polícia para avaliar os relatos, levantar evidências e esclarecer por completo o triste escândalo que envolveu um médium famoso, uma instituição percebida pela população como espírita, toda uma comunidade no interior de Goiás e pessoas vulneráveis vindas dos quatro cantos do mundo em busca de saúde e espiritualidade.





[1] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/mulheres-relatam-abusos-sexuais-do-medium-joao-de-deus-em-atendimentos-espirituais.ghtml
[2] A apresentadora manifestou-se após saber das acusações e declarou “esperar que a justiça seja feita”.  (Folha de São Paulo - https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2018/12/espero-que-a-justica-seja-feita-diz-oprah-winfrey-sobre-joao-de-deus.shtml)
[3] https://vejario.abril.com.br/blog/beira-mar/banho-de-cristal-do-medium-joao-de-deus-conquista-elite-carioca/
[4] https://vejasp.abril.com.br/cidades/joao-de-deus-relatos-de-cura/
[5] https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-escolha-de-rezende/
[6] https://extra.globo.com/noticias/brasil/menores-de-idade-estariam-entre-as-vitimas-de-joao-de-deus-23293609.html
[7] https://guiame.com.br/gospel/noticias/crimes-sexuais-fazem-do-guru-espiritual-joao-de-deus-o-maior-abusador-conhecido-do-pais.html
[8] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/

[9] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/
[10] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/ex-funcionaria-diz-ter-sido-abusada-por-joao-de-deus-durante-atendimentos-na-casa-dom-inacio-de-loyola.ghtml
[11] https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/12/08/interna_nacional,1011637/moradores-de-abadiania-dizem-nao-acreditar-em-denuncias-contra-joao-de.shtml