23.4.19

QUAL FOI O PRIMEIRO CENTRO ESPÍRITA DE MONTES CLAROS?



Conscientes da necessidade de preservação da memória do movimento espírita, alguns estudiosos têm tido a iniciativa de participar de instituições com essa finalidade e fazer comunicações de seus trabalhos.

Recebi de Wesley Soares Caldeira um artigo da revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros (Minas Gerais), no qual ele compartilha com o leitor suas pesquisas sobre a origem do espiritismo na cidade.

É um texto agradável, que explica o surgimento e o desenvolvimento de algumas das principais cidades do Norte de Minas Gerais e os olhares de autores famosos que lá estiveram, como Auguste de Saint-Hilaire.

Wesley nos mostra que a constituição de algumas das cidades pólo da região é contemporânea à publicação dos livros de Allan Kardec na França. A cultura regional é predominantemente católica e os evangélicos só chegariam a Montes Claros no século XX (Batistas em 1912 e Presbiterianos em 1945).

Dos iniciadores do espiritismo em Montes Claros, Wesley cita Augusto Dias de Abreu, ourives, que se mudou para a cidade em 1884 e que teve por filho Olympio Dias de Abreu, um dos primeiros espíritas de destaque.

"Augusto fundou o primeiro núcleo de estudos e vivência espírita da cidade, isso em 1885." (p. 99)

Caldeira encontrou em Nelson Vianna dois outros associados de Augusto. O primeiro é Eusébio Alves Sarmento, farmacêutico e também fundador da União Operária de Montes Claros entre diversas outras realizações. O segundo é o Capitão Daniel Pereira da Costa, comerciante, fazendeiro e Delegado de Polícia. Daniel desencarnou sem herdeiros e deixou seu vasto patrimônio para a Santa Casa de Misericórdia e para os moradores de rua da cidade, dissuadido que foi pelo tabelião de deixar os bens para uma sociedade espírita de São Paulo.

Wesley recuperou os nomes dos fundadores do primeiro centro espírita: Euzébio Sarmento, Augusto Dias de Abreu, Professor Cícero Pereira (muito conhecido na capital), Tenente Ulisses Pereira (PMMG?), Ezequiel Pereira e José Versiani dos Anjos. Eles teriam fundado o primeiro centro espírita (realmente espírita e não de cultos de matriz africana), que dissolveu-se posteriormente, "pelo falecimento de alguns e mudança de outros" (p. 102)

Fica ainda a dúvida para se vasculhar nos cartórios e jornais antigos: qual seria o nome desse centro espírita? Quando foi fundado? O que aconteceu com seu patrimônio, se é que tinha? Que atividades realizou? As novas questões para a continuidade da pesquisa estão sugeridas.

18.4.19

A PÁSCOA E OS ESPÍRITAS


Ícone de Barnabé

Um estudo que o Hermínio Miranda começou a fazer em vida e chegou a publicar diversos livros, foi sobre os cristãos primitivos. Como era o cristianismo nos primeiros séculos após a desencarnação de Jesus? Tenho estudado há algum tempo os escritos dos primeiros cristãos aceitos pela igreja e há um autor chamado Barnabé, que não é o colega de Paulo de Tarso em Antioquia, mas que se considera que seja um instrutor de Alexandria, que escreveu o seguinte sobre o jejum, que era palco de discussões entre os cristãos judaizantes e não judaizantes:

“... “Eis o jejum que eu escolhi”, diz o Senhor. “Desata todas as amarras da injustiça; desfaz as cordas dos contratos iníquos; envia os oprimidos em liberdade; rasga toda escritura injusta; reparte teu pão com os famintos; se vês alguém nu, veste-o; conduz para a tua casa os desabrigados; se vês algum pobre, não o desprezes; não te afastes dos membros de tua família. Então tua luz romperá pela manhã, tuas vestes rapidamente resplandecerão, a justiça irá à tua frente e a glória de Deus te envolverá. Então outra vez gritarás, e Deus te ouvirá. Ao falar, ele te dirá: Eis-me aqui!” (Carta de Barnabé, 3:3-5)

A posição dele é clara. Em vez de atos exteriores, rituais, justificados pela tradição, atos interiores, ações em consonância com as mais caras ideias do Cristo, como a caridade moral e material, atos de justiça social e de reconhecimento do próximo, do que foi abandonado pelo mundo.

Jesus se pronuncia diversas vezes sobre isso, nas querelas com os fariseus e saduceus, tão voltados à letra morta, às exterioridades, às aparências de santidade. Pessoalmente gosto muito do diálogo com a mulher samaritana. Jesus a encontra em um poço e dá mostras de ser profeta, de saber coisas sobre a vida dela, como os seus cinco maridos. Ela então lhe faz uma pergunta sobre a religião judaica, que era objeto de disputa entre judeus e samaritanos:

“Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde é necessário adorar. Jesus lhe diz: Crede em mim, mulher, porque vem a hora quando nem neste monte nem em Jerusalém adorareis ao Pai. (...) Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade. João 40:20, 21 e 24

Este é um primeiro ponto a se discutir sobre o espiritismo e a páscoa. Herdeiro de valores construídos na forja do cristianismo, a relação dos espíritas com a religião ou a religiosidade é essencialmente interior e pessoal.

A Deusa Eastre também marcava a primavera no hemisfério norte. 
Como estamos no sul, aqui seria o outono.

Contudo, vivemos em sociedade. Herdamos uma salada de tradições, algumas dos cultos de deuses antigos, outras judaicas, todas exteriores. O coelho da páscoa, que povoa nossas televisões e a fantasia dos pequenos parece ser oriundo do culto da deusa germânica Eastre. O ovo vem de uma história desta mesma deusa que transformou uma ave em lebre. O ovo está presente na ceia pascal dos judeus. O cordeiro vem dos sacrifícios aos deuses e do episódio pascal judaico, que recorda a saída do Egito, quando se matou um cordeiro e passou seu sangue nos umbrais das portas.

Todos esses símbolos foram reapropriados pelo catolicismo e foi-lhes dado um significado cristão, ou, melhor dizendo, católico. O cordeiro hebraico passou a simbolizar a morte de Jesus no calvário para tirar os pecados dos homens. Convenhamos, isso não faz o menor sentido para o pensamento espírita. Nosso maior interesse no calvário é a demonstração inconteste da vida após a morte e da mediunidade dos que perceberam Jesus, e reconheceram que ele nos ensinou que a vida não termina no túmulo.

Refeição de páscoa judaica

Como ficamos nós, espíritas, então? Resta-nos, portanto, duas coisas:

1. Pensar no sentido da imortalidade da alma e da mediunidade, que se mostram após a desencarnação de Jesus, o que podemos fazer em família ou nos centros espíritas.

2. Aproveitar o feriado para estar junto com a família. Não vejo problemas em trocarmos ovos de páscoa com nossas crianças, em escondermos os ovos para os pequenos acharem, em deixar marcas de talco que lembram pés de coelho, em pintarmos cascas de ovos, como os católicos ucranianos, nem em fazermos juntos uma refeição, mas que isso seja uma grande brincadeira, um daqueles momentos mágicos de acolhimento que os pequenos guardarão para a idade adulta e a vida, e não um ato religioso (para que não fique dúvida, o centro espírita não é o local adequado para isso). 

Penso até que podíamos nos lembrar das “crianças sem ovos de páscoa”, das pessoas sem família, sofrendo de solidão, e abrir nossas portas a elas, ou visitá-las durante a páscoa, em memória de Jesus, se desejamos fazer algo diferente, em recordação à bela reflexão de Barnabé. 

15.4.19

CRIANÇAS E JOVENS DA CASA DO CAMINHO - MONTES CLAROS-MG



Iniciou-se o seminário “Conversando com os Espíritos” à tarde, na Associação Espírita Paulo de Tarso - CEPA em Montes Claros-MG. Além das atividades doutrinárias, os trabalhadores dessa casa auxiliam e evangelizam pessoas em situação de vulnerabilidade social em duas outras unidades, mais próximas de onde eles residem, como a Vila Telma, onde eles mantém a Casa do Caminho.

Nesse endereço se pode ter uma pequena noção sobre o trabalho assistencial que eles fazem, na voz do Prof. Ton, que nos contatou e recebeu com carinho na casa espírita. https://www.redevoluntariado.org/site/entidade/16/casa-do-caminho.html

Ton tem uma longa história com as artes cênicas, e com as artes em geral. A CEPA é uma casa imensamente simples, mas toda decorada com simplicidade e bom gosto, a partir do trabalho de artesãos e artistas. Além da área construída, áreas verdes com flores e frutos.



No auditório climatizado, sustentado por troncos de eucalipto tratado, chão de cimento vermelho, no início do evento, entram diversas crianças para cantar, vestindo a camisa da Casa do Caminho. Ton os regeu, e o ambiente se encheu de música.

Terminada a primeira canção, em que não só ouvíamos, mas víamos as reações emocionais dos “pequenos” (alguns nem tanto), veio uma salva de palmas, e me emocionou ver uma das meninas envergonhada de ser aplaudida, cobrindo o rosto com as mãos, outra bem nova, serelepe e os mais velhos concentrados na sua apresentação.

Mais uma canção e a pequenina, bem à frente, deixava o corpo acompanhar o ritmo do que cantava, meio distraída, mas todos atentos à regência do “maestro”. 



Após essa apresentação, uma jovem de 14 anos, filha de membros da casa, declamou de memória uma poesia imensa e bela, sobre a fé e as diferentes formas de fé, em um ritmo que lembra o rap. Tolerância entre as religiões, aceitação das diferenças religiosas, um discurso importante em uma época na qual falta tolerância até mesmo entre os próprios espíritas.

Eu fiquei pensando nessas crianças e jovens, nascidas e vivendo em um local onde falta o básico. Segundo o trabalho de Marcos Esdras Leite e Anete Marília Pereira (2005), o chefe das famílias que lá residem tinham uma renda média mensal entre 30 a 80 reais por mês. Eles estavam entre os onze bairros de renda mais baixa do município, identificados pelos pesquisadores.

Qual será o futuro das crianças e jovens que nasceram com acesso limitado à saúde e educação?

Ton nos explicou que a apresentação os mobilizou tanto, que alguns nem haviam almoçado. Eles saíram do palco direto para a copa, para fazer um lanche e voltar às respectivas casas.

Parece um gesto pequeno, ensinar a cantar, a participar de um pequeno coral, a ter coragem para se mostrar a um público diferente, mas aos olhos de um psicólogo, não é. É uma experiência de vida cheia de expectativas e esperanças. É o desenvolvimento de diversas competências pessoais e de participação em equipe.

Espíritas de Taiobeiras - MG, que viajaram 263 km para participar do seminário

Após o seminário à noitinha, fizemos uma roda de conversas sobre as atividades assistenciais e promocionais das três unidades do Centro Espírita Paulo de Tarso. Além de alimentar, de refletir sobre valores da vida, de fazer arte e brincar, que mais se pode fazer? Como apoiar a educação? Como preparar para o mercado de trabalho? Que parcerias poderiam ser feitas com instituições espíritas ou não, capazes de desenvolver competências e ensinar o que seu meio não lhes dá acesso? Como apoiar o acesso ao ensino superior, e mostrar a via da educação como alternativa para a vida?

Confesso que fiquei muito satisfeito em ver uma organização espírita fazendo a diferença em sua cidade. Pessoas de diferentes origens sociais se unindo para fazer algo, por mais simples que seja. Desejo de superar a assistência e atingir a promoção social no futuro. Que nossos amigos desencarnados continuem apoiando essa e outras casas espíritas, para que seus membros nunca se esqueçam de fazer um pequeno esforço para que nossas famílias vulneráveis possam ter um presente menos difícil e um futuro melhor.

11.4.19

ENCONTRANDO JESUS A PARTIR DA ANÁLISE DOS EVANGELHOS





Ante a sugestão do Marcelo Bernardo, tenho lido nas horas vagas os livros de Bart Ehrman, um historiador e teólogo norte-americano, agora agnóstico, especializado no Novo Testamento e no cristianismo primitivo.

Ehrman tem um livro sobre a existência de Jesus (o Jesus humano e histórico). Há alguns autores defendendo a ideia de que Jesus seria um mito, oriundo de outros mitos divinos, sobre o qual os cristãos contaram histórias entre si e “inventaram” o cristianismo.

Um texto como costumo publicar no Espiritismo Comentado não tem tamanho suficiente (e se tivesse, não teria leitores...) para apresentar toda a discussão da questão, que envolve um grande número de argumentos, e, portanto, um debate significativo.

Uma das evidências que Ehrman usa para defender a existência de Jesus é a análise do texto evangelhos. Todos sabemos que os evangelhos foram escritos em grego. Como os escritores eram “bons de escrita”, possivelmente eruditos, os historiadores entendem que não devem ter sido os apóstolos, que eram possivelmente iletrados e que falavam aramaico (exceto Paulo e Lucas, que não conviveram com Jesus). Eles teriam dificuldade para aprender, falar e escrever corretamente o grego. Esse assunto também é polêmico, mas para entender Ehrman, vamos prosseguir desse ponto.

Um dos argumentos dele é a existência de palavras em aramaico no meio da narrativa grega. Dificilmente um escritor grego conheceria qualquer coisa de aramaico. Os evangelhos trazem, no entanto, palavras como rabi, talita cumi, messias, Cefas (o nome que Jesus deu a Pedro), entre outras. Não bastasse a existência das palavras, muitas vezes os escritores dos evangelhos a traduzem para o leitor, certos de que ele não entenderia seu significado.

Esta é uma das dezenas de evidências que as narrativas em torno de Jesus, surgiram na Palestina e eram faladas em aramaico, e que posteriormente os autores dos evangelhos ouviram e recontaram em grego. Se Jesus e os apóstolos fossem um mito, uma história baseada em histórias de deuses, considerando a amplitude das comunidades cristãs no século I, cada uma teria criado histórias próprias, sem um núcleo comum, totalmente diferentes umas das outras, o que não acontece nem mesmo nos evangelhos considerados apócrifos, que trazem em si muito dos textos dos outros evangelhos (como O evangelho de Tomé).

As palavras em aramaico, e os textos comuns, levam necessariamente o início do cristianismo para a região da Judeia, Galileia, Samaria, em torno dos anos 30 (outro ponto a ser sustentado, com as cartas de Paulo), por pessoas que originalmente falavam o aramaico e que depois se espalharam por cidades ao redor do mediterrâneo e dos países vizinhos aos antigos reinos de Israel e Judá.

Como disse acima, o livro é repleto de debates com os miticistas (pessoas que defendem que Jesus era um mito) e tem argumentação bem fundamentada. Quem se interessar pelo assunto leia:




Ehrman, Bart. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014. [Tradução da editora Nova Fronteira, feita por Anthony Cleaver]


31.3.19

"QUEM FOI JESUS" É ENCENADO EM BH, E EU FUI VER...



Jáder Sampaio


André Marinho esteve ontem em Belo Horizonte, graças aos esforços da Associação Médico Espírita de Minas Gerais, que nos acolheu no auditório do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Minas Gerais. Quando se fala em seminário, é com a licença da palavra, porque André preparou para a parte expositiva uma espécie de monólogo teatral, no qual ele às vezes é ele mesmo e às vezes encarna um personagem que vai narrando histórias e parábolas do Jesus mais-que-histórico, o Jesus homem, Jesus de Nazaré.

Como um fenômeno mediúnico ao contrário, ele nos coloca na pele de Jesus, fazendo-nos ver com seus olhos, temer seus medos, entender com sua mente e sofrer, sofrer muito suas dores. Ele faz uma diferença magistral entre o homem Jesus e o Jesus mitificado, tornado divino, transformado em messias ou, no jargão espírita, o governador terrestre. Alguém tão acima da condição humana, que torna impossível aos homens alguma empatia.

Ao mesmo tempo, não sei se fui apenas eu, ou se muitos passaram pela mesma impressão, ele interpreta o discurso forte de Jesus contra os que se sentem superiores, os fariseus, os saduceus, e depois na história, os próprios cristãos, perdidos nos delírios de superioridade que às vezes um cargo, uma função ou um lugar em uma instituição nos fazem ter. Senti-me assim, pequeno por me julgar eventualmente superior, seja pela racionalidade, seja pelas realizações, seja pelo trabalho que realizei ou as conquistas que empreendi ao longo da vida da qual me recordo. “Ai de vós fariseus, que amais os primeiros assentos nas sinagogas e as saudações nas praças” (Lc 11:43)

Outro momento marcante é a relação de Jesus com os excluídos. Marinho consegue fazer uma espécie de passagem no tempo. Em um momento, estamos diante da mulher adúltera, na Palestina do século I, no outro, estamos diante de um imigrante muçulmano, na orla do Rio de Janeiro do século XX, e eles não são diferentes. É uma história que aproxima, que identifica, e não uma história que isola, que distingue inconciliavelmente as sociedades.

Jesus é o redentor, não porque é o “cordeiro de Deus” abatido na cruz, um sacrifício humano, bem ao gosto dos cultos pagãos, mas porque devolve a vida aos leprosos (mortos pela lei), santifica um centurião romano (impuros pela lei), resgata o pecador na narrativa do filho pródigo (auto-exilado pela lei), exime da culpa a mulher adúltera (condenada pela lei). Ele age, atua, desde o tempo em que se torna homem público. André destaca bem que Jesus sabia do sacrifício, não por ser espírito puro e superior, mas por ter visto a condenação do Batista, nem por conhecer as profecias do messias, mas por conhecer a insanidade dos poderosos com sua lei e seu estilo de vida.

Vendo o Jesus nazareno, o Jesus humano, e o contraponto feito com a dureza dos corações dos fariseus, entendemos a mensagem do amor, da compaixão, e porque Jesus foi, na palavra de Allan Kardec, a segunda revelação. Todavia, ao contrário do que pensam alguns, creio que precisamos das três revelações. Precisamos da justiça, mas não apenas dela. Precisamos do amor, para tornar felizes os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os pacificadores, os limpos de coração (mas talvez impuros aos olhos da lei) e para redimir os pecadores (excluídos pela justiça ou por não ter tido o mínimo para ter direito a ela), porque só o amor cobre a multidão dos pecados (1 Pedro 4:8), mas não só dele, e precisamos da verdade (Jo 8:32), para obter, por fim, a libertação.

Resta ainda falar do livro “Quem foi Jesus?”, publicado pela Lachâtre e escrito por ele, que ainda não concluí a leitura. Não dá para falar pouco dele, porque ele fala muito de muitas coisas importantes. Então farei como o André em seu monólogo e direi apenas a fala meio infantil que ele usa para nos fazer voltar à cena. Seu personagem diz, enfático, algo assim:  “Mas é tão legal!!!!!!!!!!!!”


19.3.19

AINDA CONVERSANDO COM OS ESPÍRITAS EM BELO HORIZONTE




Nesse último domingo estivemos no Cenáculo Espírita Thiago Maior para fazer pela quinta vez o nosso seminário "Conversando com os espíritos". 

O evento foi organizado com muita dedicação pelos trabalhadores da casa espírita que fica em Belo Horizonte, na movimentada avenida Afonso Pena. Os participantes chegaram cedo e organizaram café, procuraram livros, abraçaram-se. Foi muito bom encontrar companheiros de outras casas espíritas, atraídos pela facilidade da inscrição via Sympla. Ainda na chegada vi nossos colegas trocando informações.


Agradeço à equipe do Thiago Maior o espaço para exposição dos livros da LIHPE, e à cuidadosa Maria, a organização e o empenho com o atendimento aos interessados. 

A primeira parte acabou se tornando uma espécie de simpósio, porque boa parte dos presentes haviam lido o livro, e queriam tirar dúvidas, apresentar experiências, levantar questões, dar contribuições. 


O intervalo foi regado a um lanche simples, mas muito concorrido. Quando assentei-me com o copo de café bem cheiroso, eis que vêm os pedidos de autógrafos e as conversas rápidas ao pé da mesa.

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As histórias rápidas são deliciosas. Amigos do Rio de Janeiro presentes, Taiobeiras (no Norte de Minas Gerais), gente que conviveu com Seu Virgílio (um dos biografados no livro), colegas do Célia Xavier de há muito tempo, amigos dos ciclos de estudos do Grupo Scheilla, irmãos espirituais do Grupo Espírita André Luiz e os amigos do Thiago, claro! Perdoem se estou me esquecendo de alguma casa espírita.


Maria havia preparado uma estante com os livros da Lachàtre e outra exposição em uma mesinha no auditório. Para minha surpresa, ainda no intervalo ela chega preocupada e me pergunta quais livros podiam ser levados para a venda. Quase do que livro do Jáder Cabral é vendido pela segunda vez...

Aos poucos, comecei a ouvir os lamentos. "O observador" havia esgotado. O remédio era comprar depois na União Espírita Mineira. Acho que "Conversando com os espíritos" também acabou. A casa havia feito uma venda prévia de dezenas de livros e trouxe mais algumas dezenas para o dia do seminário. Muita gente chegou com o livro "a tiracolo". Muitos livros foram comprados para presentear amigos que também trabalham com o atendimento aos espíritos em reuniões mediúnicas.

As perguntas foram inteligentes e levantaram temas para serem pesquisados depois. Uma delas foi sobre as crianças na espiritualidade, o que nos levou a reler a questão 381 de O Livro dos Espíritos e a 154 de O que é o espiritismo. 



Marival Veloso, veio com sua larga experiência e bom humor. Os irmãos do Grupo Espírita André Luiz participaram bastante e aproveitaram para almoçar juntos depois do seminário. Senti uma fraternidade enorme entre eles, e um entendimento enorme do propósito do trabalho: mais trocar experiências que dizer o que cada casa deve fazer.

Um tema que apareceu no seminário e é recorrente, causando interesse, são as comunicações múltiplas que adotamos em nosso grupo. Muitos grupos adotam a prática das comunicações sucessivas, em vez das simultâneas. E esta escolha gera consequências na rotina das reuniões. Isso ficou muito claro na medida em que conversávamos ao longo do seminário.

O seminário estendeu-se até depois das 13 horas. Apesar da extensão e da fome, acho que muitos ficaram com o gostinho de quero mais. Estendemos a conversa após o encerramento, e acho que só saí após as 14:30 horas da casa espírita, sem nenhuma pressa da parte dos organizadores. Tão bom este "fim de festa" espiritual!

Muita gente não entende o que os espíritas estariam fazendo em uma manhã chuvosa de domingo, acordando cedinho, na casa espírita. A alegria do encontro, só entende quem participa...

As próximas edições do seminário já estão agendadas para Montes Claros - MG e Conselheiro Lafaiete - MG. Darei notícias.

5.3.19

UMA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE A EPÍSTOLA DE PAULO AOS CORÍNTIOS


Ruínas em Corinto

Jáder Sampaio

Ao preparar um estudo sobre o cristianismo primitivo, esbarrei na tese “Paulo e a Ekklesia de Corinto: conflitos sociais e disputas de autoridade no período paleocristão”, escrito por Simone Resende da Penha Mendes.

O trabalho é interessante, porque a autora se dispôs a articular o que se conhece em história com a interpretação do texto da epístola de Paulo aos coríntios.

Corinto era uma cidade grega importante, mercantil, situada na passagem entre o Mar Jônico e o Egeu. Foi destruída em 146 pelo general romano Lúcio Múmio, com o massacre e escravização dos gregos, tornando-se romana. A cidade que Paulo conheceu era um centro comercial habitado por romanos (pobres agraciados por César e veteranos de guerra), gregos (alguns com cidadania romana), judeus e outros estrangeiros.

As diferentes origens dos cidadãos de Corinto fez com que essa comunidade se tornasse uma espécie de “caldo de culturas”, embora as decisões políticas e o poder fossem exercidos segundo Roma. Outra questão que foi revista pela autora nos autores da historiografia, foi a relação patronal na comunidade nova. Ricos e pobres formavam a nova ekklesia fundada por Paulo.

Na perspectiva cristã, as relações sociais seriam pouco relevantes nas relações dos membros da ekklesia ou comunidade. Uma nova ética é proposta por Jesus e se impõe aos códigos de moral das diferentes culturas existentes. Apesar disso, era inevitável, que uma autoridade romana tivesse problemas de convivência no espaço da comunidade com um estrangeiro, escravo ou pobre. Era provável que houvesse também um conflito entre os costumes dos membros da comunidade, porque os costumes judaicos são bem diferentes dos romanos, por exemplo. O pensamento grego também se distingue da tradição judaica, mais interpretativo-religiosa que sistêmico-filosófica. Os pequenos conflitos começam a surgir no dia-a-dia após a criação de uma nova forma de estabelecer relações sociais em uma cidade romana.

A comunidade de Corinto foi fundada no ano 50 por Paulo de Tarso. A autora afirma que ele provavelmente ficou na cidade por 18 meses (p. 56 e Atos 18:11). Nesse tempo ele trabalhava como tecelão, fabricando tendas (Atos 18:3) com Áquila e Priscila (ou Prisca[1]). É curioso, porque na cultura hebraica, aos sacerdotes era devido algum pagamento, o que fez com que Paulo lembrasse isso à comunidade em uma de suas epístolas.

A autora discute as teorias sobre quantas epístolas Paulo realmente teria escrito. Os autores consultados falam em oito epístolas, das quais uma se perdeu e as demais foram usadas na composição dos textos das duas epístolas da Bíblia. Simone conclui que duas se perderam (p. 62), que I Coríntios é composto de duas epístolas e que II Coríntios é composto de outras quatro epístolas, em resumo. Ela, contudo, defende a autoria de Paulo.

Além de Áquila e Priscila, outros personagens são nominalmente citados nas epístolas, dentre eles, Apolo. Simone (p. 137) localiza no livro de Atos (cap. 18), que se trata de um judeu nascido em Alexandria, eloquente e versado nas escrituras. A autora explica que ele tinha habilidade retórica, possivelmente superior à do próprio Paulo, o que o levaria a justificar que seu trabalho era “anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem” (I Coríntios). Apolo era amigo de Paulo, e é um dos que levam a ele informações sobre a comunidade cristã de Corinto. Simone Mendes especula se ele não teria sido influenciado por Filo ou por autores do paleocristianismo de Alexandria, antes de ter vindo a Corinto.

Os Conflitos

Simone classifica os conflitos da ekklesia de Corinto em dois tipos: os conflitos políticos e os de conduta.

Um dos conflitos políticos foi a divisão de alguns dos membros da comunidade entre os “de Paulo” e “de Apolo”, que a autora interpreta como sendo a origem de uma série de considerações que Paulo faz nas epístolas. Apolo teria uma formação mais filosófica e Paulo falaria mais diretamente. Simone entende que os “simpatizantes” de Apolo (I Coríntios 3:3-6) valorizavam mais a sabedoria do mundo, o que teria levado Paulo a contrapô-la com a sabedoria de Deus, revelada pelo "espírito", (I cor 1:17, 2:16 e pág. 139 da dissertação de Simone Mendes).

A autora identifica 14 conflitos políticos em seu trabalho (p. 135) que os interessados podem estudar posteriormente.

Outra categoria foi identificada como conflitos de conduta, que a autora mostra ter origem nas diferenças culturais e morais dos membros da comunidade. Assim se encontra uma discussão sobre o uso de véu nas reuniões da ekklesia, outra sobre um membro que passou a viver com a mulher do pai, o recurso a tribunais gentios, possível manutenção de relações sexuais de membros com prostitutas, questões relativas a virgindade e casamento, consume de carnes sacrificadas aos ídolos, e ocupação de lugares na ceia do senhor (não havia missa à época, mas uma refeição comunal). A explicação de cada um desses conflitos pode ser lida nas páginas 121 e seguintes da dissertação.

Costumes diferentes, ética cristã e uma nova moral

O que se observa no trabalho do Programa de Pós-Graduação em História da UFES é uma análise das epístolas de Paulo aos coríntios que mostra a dificuldade em se construir uma comunidade formada de pessoas de diferentes origens, culturas e costumes. Ao resolverem viver como comunidade, os membros de Corinto são desafiados a reconstruir seus valores em uma perspectiva cristã. Paulo age como uma liderança, discutindo os problemas que surgem à luz dos ensinos de Jesus.

As epístolas são analisadas pela autora como uma reflexão paulina diante dos desafios que o convívio entre cristãos-judeus e cristãos-gentios se amplia, em lugar de ser lidas como um código de conduta cristã. Muitas das questões de conduta, por exemplo, são de ordem prática, e não foram abordadas por Jesus em suas pregações ou em seu convívio com os apóstolos, uma vez que todos eram oriundos da cultura hebraica e não havia conflito naquilo que habitualmente já faziam da mesma forma. As soluções paulinas para os problemas da época ganharam visibilidade e aceitação pela comunidade cristã como um todo, o que mostra que eram problemas comuns e que as soluções eram bem vistas.

O estudo do cristianismo primitivo ou paleocristianismo interessa a nós, espíritas, porque há diferenças marcantes entre as comunidades primeiras e as que se formaram após a fusão entre o movimento cristão e o estado romano. Esse evento “divisor de águas” se inicia no governo de Constantino, no século IV.




[1] Πρισκιλλαν, do grego, pode ser traduzido para o latim como Prisca. As diferentes Bíblias que lenho traduzem o nome da esposa de Áquila para Priscila. Na Bíblia em latim (Sacra Vulgata), o nome se encontra grafado Priscillam.

16.2.19

SAIU A CHAMADA DE TRABALHOS DO 15 ENLIHPE





15º ENCONTRO NACIONAL DA LIGA DE PESQUISADORES DO ESPIRITISMO
Tema central: Kardec: 150 anos depois
24 e 25 de agosto de 2019
Fortaleza-CE

CHAMADA DE TRABALHOS

Apresentação
O Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo (ENLIHPE) é um espaço privilegiado no contexto brasileiro para apresentação e discussão de propostas e trabalhos de investigação científica sobre a temática espírita. O sucesso alcançado nos anos anteriores tem atraído pesquisadores de todo o Brasil, interessados na divulgação e discussão de seus estudos.
Um dos diferenciais do ENLIHPE é o seu formato, o qual incentiva a formação de redes de pesquisa e promove a aproximação de estudiosos de diferentes áreas do conhecimento.

Instruções aos autores

A data final para submissão de trabalhos é 30 de abril de 2019. A confirmação do recebimento e o parecer da Comissão Científica sobre o artigo serão enviados eletronicamente ao email do remetente.
A avaliação será feita utilizando-se o sistema Double Blind Review, no qual o trabalho é avaliado anonimamente por 2 por membros da Comissão Científica do encontro.
Os trabalhos podem ser submetidos em qualquer área do conhecimento, desde que relacionado à temática espírita, em forma de artigo científico, conforme procedimentos definidos a seguir:

Artigo científico
•O artigo deverá ser gravado em 2 arquivos:
ARQUIVO 1 – contendo o nome do(s) autor(es), o título do trabalho e o resumo;
ARQUIVO 2 – contendo o título e o texto integral do artigo sem qualquer identificação de autoria.

Submissões de trabalhos
Envie os arquivos para 15ENLIHPE@gmail.com

Formato do Trabalho:
Editor de textos: Word for Windows 6.0 ou Posterior
Número máximo de páginas: 15 (quinze)
Configuração das páginas
Margens: superior 3cm; inferior 2 cm; esquerda 3cm; direita 2 cm.
Tamanho do papel: A4 (largura 21 cm; altura 29,7 cm)
Fonte: Times New Roman, tamanho 12
Formato do parágrafo: Recuo especial: primeira linha 1,25 cm
Espaçamento entre linhas: simples.
Figuras, tabelas e gráficos: Fonte Times New Roman, tamanho 8 a 12
Resumo: Mínimo de 1150 caracteres (aproximadamente 10 linhas), máximo de 1750 caracteres (aproximadamente 15 linhas)
Revisão ortográfica a cargo dos autores

Informações adicionais: Acesse www.lihpe.net ou envie uma mensagem para contato@lihpe.net

Local do evento: Federação Espírita do Estado do Ceará – FEEC. Rua Princesa Isabel, 255 – Centro -  Fortaleza/CE

14.2.19

DARWIN, DEÍSTA; KARDEC, CRISTÃO-ESPÍRITA





Allan Kardec tem um texto publicado em Obras Póstumas que sempre me intrigou, denominado “As cinco alternativas da humanidade”. Confesso que nunca entendi direito os deístas e porque Kardec denominou “doutrina dogmática” à dos católicos e protestantes, sem menção ao cristianismo.

Ele coloca em uma posição diversa o espiritismo, confrontando-o com as demais doutrinas, nos aspectos que selecionou delas.

Já levantamos em outra publicação do Espiritismo Comentado, a questão do panteísmo e de sua relação com o pensamento de Baruch Spinoza.

Hoje eu estou lendo o livro “Dispelling the Darkness: Voyage in the Malay Archipelago and the Discovery of evolution by Wallace and Darwin”, de John Van Wyhe, que trata do tema de forma interessante.

Ele diz que Darwin também “pensava muito sobre religião” e que foi durante a pesquisa e teorização intensa que ele fez à bordo do Beagle que ele passou a desacreditar “na cristandade e divina revelação. Não havia simplesmente nenhuma evidência. Ele desceu um nível e se tornou um deísta. Ele ainda acreditava em um criador sobrenatural que estabeleceu as leis da natureza em primeiro lugar, mas tanto quanto Darwin pensava, a natureza trabalhava de acordo com as leis naturais.”

Os deístas entendem, em geral, que se pode estudar a divindade a partir do conhecimento da natureza, e não da teologia cristã. No caso de Darwin, ele fez uma ruptura com o pensamento cristão, após começar a perceber que existia a evolução das espécies a partir da seleção natural, que induziu, assim como Wallace, da leitura de Thomas Malthus, curiosamente.

Da mesma forma que Darwin, em sua autobiografia, Flammarion rompe com o cristianismo ainda na adolescência, após estudar os avanços da ciência e os erros da Bíblia no que concerne à idade do mundo, formação da humanidade e outros temas que emergiram nas ciência no final do século XVIII e início do século XIX.

Nesse ponto, há alguma relação entre Darwin e Kardec, porque Kardec entendia as leis naturais como criadas por Deus, e por isso as chamava de “Lei Divina ou Natural”, mas Kardec propõe leis que vão além de Darwin, e aceita um providencialismo que não é divino, mas espiritual.

Outra diferença entre o deísta Darwin e o espírita Allan Kardec, é que este se entendia como cristão espírita, ou seja, ele não abriu mão do cristianismo como base ética, nem do estudo histórico do cristianismo, nem da possibilidade de explicar passagens da vida de Jesus e dos apóstolos consideradas milagres com a nova perspectiva obtida a partir dos estudos dos fenômenos espirituais.

Na classificação de Kardec, Darwin seria um deísta independente, e não providencialista.

Considerando a classificação de Kardec de espírita-cristão, o espiritismo teria uma dimensão religiosa, como entendia Flammarion em seu livro "As Forças Naturais Desconhecidas".

11.2.19

A ESCRITURA INTERPRETA A ESCRITURA?




Estou lendo a dissertação de mestrado “Orígenes ensinou a reencarnação? Uma resposta às teorias neo-gnósticas da reencarnação cristã com referência particular a Orígenes e ao segundo concílio de Constantinopla (553)”, escrita por Dan Schlesinger. Ela foi defendida no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de Glasgow, na Escócia, em 2016.

Trata-se de um belo texto, bem fundamentado de um estudioso da área, simpático ao pensamento ortodoxo cristão que entende que não se deve entender que haja reencarnação no Novo Testamento.

Há muito que comentar e discutir na argumentação do mestre Schlesinger, se puder, vou pinçar alguns argumentos polêmicos e comentá-los no Espiritismo Comentado.

Um ponto interessante que ele apresenta é o que ele denomina como princípio básico de hermenêutica (interpretação dos textos bíblicos) aceita pelos teólogos cristãos em geral: “a escritura interpreta a escritura”. Isso significa que, como bem explica o autor, “onde as passagens são isoladas, obscuras ou aparentemente contraditórias”, interpreta-se levando em conta outras passagens e regras de interpretação bíblica que se referem ao texto. Ele diz que os neo-gnósticos (ele chama de neo-gnósticos os autores do movimento new age, e não dá mostras de conhecer o espiritismo) fazem eisegese (interpretar um texto dando ideias do próprio leitor) e não exegese (interpretação minuciosa do texto).

Em outras palavras, ele diz que os membros do movimento new age fazem uma interpretação forçada dos evangelhos para acomodar suas próprias crenças, e, portanto, defende que a teologia tradicional não faz isso, possivelmente por causa da coerência interna das interpretações com os textos das escrituras e possivelmente com a tradição cristã, que supõe remontar à interpretação dos apóstolos e dos primeiros cristãos.

Olhando com algum afastamento, acho essa argumentação bem falaciosa, em função de alguns argumentos que passo a apresentar.

O primeiro é que o conjunto de livros que compõem o Novo Testamento foram objeto de escolha no final do século IV e início do século V, por Jerônimo (considerado santo), a pedido do papa Dâmaso I, e logo a seguir traduzidos para o latim, compondo a Vulgata. Ele consultou outros cânones existentes, mas teria comentado, segundo Léon Denis, que ele estava ciente que sua escolha não seria aceita pelas diversas comunidades cristãs ao redor do mundo na época.

O argumento que se emprega em defesa do trabalho de Jerônimo, é que ele escolheu apenas os textos que eram coerentes entre si, que não eram contraditórios.

Então, a regra da hermenêutica incorre na chamada “petição de princípio”, que é uma falácia, citada pelo próprio autor contra os “neo-gnósticos” e contra nós, porque uma pessoa escolheu os textos da escritura, mas só se pode interpretar as passagens obscuras usando-se os textos que ele escolheu. Em outras palavras, a compreensão de Jerônimo e de sua tradição se torna, na verdade, um critério para a interpretação dos evangelhos. Temos, então uma regra que impõe uma hermenêutica dos vitoriosos da história, já que havia um número enorme de textos (como o Pastor de Hermas que foi usado por muito tempo pelos cristãos primeiros e depois retirado do cânone) e de interpretações (as mais “populares e discordantes” foram consideradas heresias).

Repetindo, é um erro lógico também chamado de circularidade. Eu só posso interpretar usando os textos que alguém escolheu como certos porque são considerados coerentes entre si, com critérios que Jerônimo considerou.

Esse é um ponto importante, porque permite a consideração e análise de outros textos produzidos nos primeiros séculos, como fontes para a compreensão do que os primeiros cristãos pensavam, para fins do entendimento possível do que Jesus deve ter ensinado aos apóstolos. É uma abordagem hermenêutica que inclui estudos históricos e a necessidade de compreensão de como os grupos cristãos foram se formando, e não apenas assume como heresias o que a ortodoxia vitoriosa assim o considera.

Por essa razão, é sensata a recomendação de Allan Kardec que conheçamos a época e os costumes para entender o texto bíblico e a provocação de Hermínio Miranda quando coloca no título de seu livro sobre o cristianismo a expressão “heresia católica”. 

8.2.19

COMO O ESPIRITISMO VÊ A QUESTÃO DA CATÁSTROFE DE BRUMADINHO?





Após a tragédia de Brumadinho, muitos espíritas têm se preocupado em argumentar sobre a questão da justiça divina do sofrimento coletivo. Há em Allan Kardec, contudo, outra questão importante que ele trata na Lei de Destruição (O Livro dos Espíritos), quando pergunta aos Espíritos sobre os flagelos (no sentido de catástrofe, dano coletivos): o progresso dos homens, em especial o progresso da sociedade. 

Por progresso, nesse caso, não entendemos um crescimento a partir de um sofrimento depurador, mas uma mudança de mentalidade, conhecimentos e ações coletivas para evitar no futuro novas catástrofes.

Na questão 741, Allan Kardec pergunta se é possível  ao homem afastar os flagelos e os Espíritos respondem que muitos deles “resultam da imprevidência do homem”. É o que nos parece ter acontecido nos casos de Mariana e Brumadinho-MG. Duas semanas após o rompimento da barragem de rejeitos que gerou a desencarnação violenta de muitas dezenas de pessoas na cidade próxima à capital mineira, os meios de comunicação têm dado voz a especialistas que apontam formas alternativas de lidar com os rejeitos, tecnologias de prevenção da ruptura das barragens, problemas da legislação referente à fiscalização do estado das barragens de contenção, entre outras questões. 

A ruptura da barragem de Mariana foi uma catástrofe que, se tivéssemos, como sociedade e órgãos de Estado, levado à sério, teria o papel de promover avanços capazes de evitar ou minimizar em muito os danos da ruptura da barragem 1, de Brumadinho. Uma questão que não sofreu avanços e tem sido questionada é o próprio sistema de fiscalização das barragens no qual o fiscal é ao mesmo tempo prestador de serviços diretamente contratado pela empresa mineradora, e que poderia ter sido solucionado com uma mera alteração legal.

Os Espíritos dizem a Kardec: “À medida em que adquire conhecimentos e experiência, ele pode afastar, isto é prevenir, se souber pesquisar suas causas.”
Kardec ainda comenta: “... Entretanto, não tem o homem encontrado na Ciência, nas obras de engenharia, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações, no estudo das condições higiênicas, meios de neutralizar, ou pelo menos de atenuar, tantos desastres? Certas regiões, outrora assoladas por tantos flagelos, não estão hoje livres deles?”

Esperamos que o segundo e mais grave episódio de ruptura de barragens faça acordar a população brasileira, e, em especial, a nós espíritas, para realizarmos o que é necessário: acompanhar as mudanças que evitarão ou pelo menos atenuarão novos incidentes capazes de ceifar vidas, destruir comunidades e deixar consequências no meio ambiente que talvez afetem a um grande número de seres vivos por um grande período de tempo.

30.1.19

KARDEC, A ALMA DO MUNDO E O PANTEÍSMO



Como bom pedagogo, ao escrever seus livros para o grande público, Allan Kardec discutiu com os espíritos muitos tópicos da filosofia antiga e de sua época, sem ficar citando os autores. Alguns conceitos, hoje esquecidos, deviam ser muito conhecidos no meio intelectual francês do século XIX, e vez por outra, ao pesquisar as origens, esbarro em algum filósofo importante.

Em sua primeira publicação espírita, Kardec apresenta rapidamente o conceito de “alma do mundo” – “âme du monde” (O Livro dos Espíritos, questão 144), afastando a ideia de que os planetas são seres viventes, como pensava, por exemplo, Orígenes, em seu “Tratado sobre os princípios”, no século III.

O dicionarista Ferrater Mora explica que o conceito de “alma do mundo” está em Platão, como uma “mescla harmoniosa pelo demiurgo das ideias e da matéria”. É bem possível que Kardec tenha usado o termo platônico para questionar aos Espíritos, uma vez que ele considera Platão e Sócrates como precursores do cristianismo e do espiritismo.

No capítulo XI de A Gênese, Kardec refere-se a um conceito semelhante, o de “alma do universo” (A Gênese, capítulo XI, parágrafo 28), em francês, “âme de l’univers”.

Heráclito fala de uma “alma do universo”, que é um “todo homogêneo” para onde volta a alma humana após a morte, perdendo sua individualidade e tornando-se homogênea.

Baruch Spinoza (século XVII) entendia Deus como sendo a “alma do universo”, no sentido que era o “mecanismo imanente da natureza”, ou seja, Deus é a natureza. Trata-se de uma concepção panteísta.

Allan Kardec, contudo, deixa claro que o espiritismo não é panteísta em seu texto “As cinco alternativas da humanidade”, publicado em Obras Póstumas. É um texto que não se encontra na Revista Espírita, no período em que Kardec foi seu editor, deve ser, portanto, um texto do final de vida.

Spinoza é considerado o “monista por excelência”, porque entende que tudo é uma única substância: Deus, o universo e o ser humano. Kardec, contudo, posiciona-se como dualista ou trinitário (trindade universal), uma vez que entende que há dois princípios ou substâncias, o material e o espiritual, e “acima de tudo Deus”, cuja natureza (essência, substância) diferiria do espírito e da matéria. (O Livro dos Espíritos, questão 27)

O monismo de Spinoza pode ser lido em seu livro "Ética demonstrada à maneira dos geômetras". Na proposição XVI encontra-se a concepção de Deus como infinito, que resultaria na concepção de Deus como um intelecto infinito e causa primeira. (corolários I e III). 

Há uma conexão entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e a metafísica de Allan Kardec.