Páginas

10.10.21

ALLAN KARDEC ADVOGA UMA CERTEZA INSTINTIVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS?



Jáder Sampaio


Vi recentemente uma palestra em um centro espírita intitulada "Fé: a certeza instintiva da existência de Deus", em uma semana de comemoração do nascimento de Allan Kardec.

Em Kardec, a expressão “certeza instintiva” seria vista como um paradoxo, uma contradição em si, porque ele advoga a certeza como fruto da razão e o instinto como uma “inteligência sem raciocínio”. Uma certeza instintiva, seria, em tese, uma certeza que não se obtém através do raciocínio, mas que se nasce com ela, uma espécie de crença inata, e que, por isso, não é fruto da razão.

É por isso que não se encontra em nenhum dos escritos publicados de Kardec a expressão “certeza instintiva”, mas se encontra duas vezes “crença instintiva” e se encontra "sentimento instintivo". 

O instinto é uma palavra usada em filosofia e em psicologia para explicar o comportamento animal, principalmente o comportamento que não foi fruto de aprendizagem. As fêmeas dos mamíferos, quando têm seus filhotes, devoram suas placentas, os lambem até limpá-los e os amamentam. Pelo menos as de ratos, cães e gatos fazem uma espécie de ninhos, que têm papel de proteger os filhotes de predadores e de facilitar seu aquecimento. Esses comportamentos não foram aprendidos, e um mamífero não “sabe” porque age assim, mas todos eles agem da mesma forma, conforme as condições oferecidas pelo ambiente em que se encontram. Isso é instinto, uma “compulsão” à ação sem qualquer raciocínio, que um ser humano pode até explicar e mostrar sua finalidade, sua utilidade, seu papel na sobrevivência, mas que os animais fazem automaticamente, sem certamente pensar: “estou grávida, o que devo fazer?”

A razão é um termo ou expressão que se confunde com a história da filosofia. Ela é empregada, de uma forma clássica, para explicitar um conjunto de operações mentais lógicas e consistentes, realizadas pelos seres humanos, que substituíram com vantagem uma forma mágica de conhecimento, mítica, na qual se contavam histórias para explicar, por exemplo, como o homem aprendeu a utilizar o fogo (na cultura grega Prometeu roubou esse segredo dos deuses). A razão exige argumentos, provas, raciocínios segundo regras, na busca da verdade. É uma operação essencialmente consciente, que afeta o domínio afetivo do qual participa a fé, a crença. O ser humano não é essencialmente racional, então ele pode se mover por crenças racionais ou irracionais. 

De volta a Kardec, ele advoga uma fé raciocinada, ou seja, do domínio da razão, capaz de diálogo com quem quer que apresente contra-argumentos dentro das regras da lógica (ou das diversas lógicas aceitas pelo grande guarda-chuva que chamamos de filosofia). O ser humano deve crer com a anuência de sua razão e não porque outros homens também creem. De uma certa forma, Kardec é um filósofo, nesse ponto, semelhante a Kant, que convida a humanidade a acordar do seu “sono dogmático”, ou seja, das ideias compartilhadas por sua família, comunidade religiosa, comunidade política, por seus amigos, mas que não são sustentadas pela razão do próprio sujeito.

A fé, portanto, é passível de crítica, e a crítica não é mal vista, mas entendida como a identificação de um obstáculo para a explicação racional. Quando a crítica é acolhida como ato de agressão, de mera desconformidade, estamos no domínio da fé em dogmas, que Kardec denomina como fé cega, em seu O evangelho segundo o espiritismo. 

Todavia, me dirão, Kardec advoga que há uma crença em Deus partilhada pelas diversas culturas do mundo, até mesmo de povos que apenas recentemente haviam entrado em contato com a cultura ocidental e a cultura oriental. Seria um sentimento instintivo de Deus, como bem colocado na pergunta 6 de “O livro dos espíritos”. Os espíritos usam esse conceito como base de um dos argumentos que sustenta a existência de Deus. Seria algo assim: se todos os povos, incluídos os primitivos (os que mesmo em nossa época mantém suas crenças e costumes bem próximos dos de dezenas de séculos atrás) têm um sentimento instintivo de Deus e o manifestam em sua cultura, e se o ateísmo e o agnosticismo são fruto da aprendizagem, da formulação humana de uma incerteza da existência de Deus, é mais provável que Deus exista. Esse não é um argumento final, nem um argumento único em Allan Kardec, mas se soma à explicação de sua defesa da existência de um Deus transcendente.

Perceba o leitor que sentimento instintivo, crença instintiva e ideias inatas, todas essas expressões usadas por Allan Kardec, não são o mesmo que certeza instintiva. Se é instintivo, é irracional, e o que é do domínio do irracional não gera certeza, a não ser em uma perspectiva que Kardec critica e denuncia como fazendo parte da “fé cega”, e Kant denuncia como um estado de “sono dogmático”, atitudes que o espiritismo reconhece existirem, mas evita ao máximo que estejam na fundamentação de suas afirmações.

Entendo que os expositores às vezes façam afirmações de boa vontade, sem intenção de conflito nem de rigor filosófico, mas é necessário evitarmos a confusão de palavras ao máximo, sob a pena de sermos mal entendidos e de levar as pessoas que estão aprendendo o espiritismo a uma visão contrária à de Kardec.