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30.1.23

MESSE DE LUZ E OUTRAS HISTÓRIAS: UMA VIDA MARCADA PELO ESPIRITISMO E OUTRAS BOAS INFLUÊNCIAS


Capa do livro


Jáder Sampaio

“Messe de Luz” e outras histórias é o título do novo livro lançado por Elaine Alves Ribeiro do Vale, graças à dedicação e trabalho de sua filha Clícia Ribeiro do Vale e da rede de amigos, escritores, editor, revisor, artista que ela mobilizou.

Na capa, ilustrada pelo artista Heleno Nunes, há a representação de uma mulher semeadora, pano na cabeça, cristã, pés descalços, que vai lançando, curvada e sob o sol vermelho, muitas sementes no solo, que já tem alguns brotos de plantas. 

O livro tem o selo da Lachâtre, ou seja, é visto como livro espírita pelo seu conhecido editor, Pedro Camilo. 

A apresentação é de Fátima Delgado, que hoje está em nossa casa e tem anos de dedicação à creche da Sociedade Espírita Joanna de Ângelis – SEJA, na cidade de Belo Horizonte.  Na medida em que vamos lendo percebemos o laço sutil que une os participantes: a influência cultural e espiritual de Yvonne Pereira, que tem suas cartas para Elaine transcritas no livro.

A história é longa. Começa com uma obsessão de diversos familiares que suicidaram, a influência espiritual, uma experiência ruim com a medicina e a psiquiatria da época, e a voz de diversas pessoas, como a avó Querubina, que dizia: “Essa menina está é com espírito”, mesmo sendo evangélica.  A narrativa apresenta com detalhes o contato “apavorado” com diversos espíritas de cidades diferentes, muitos já esquecidos por terem “trabalhado em silêncio” e não terem sido lembrados pelos seus. A Associação Espírita Célia Xavier entra na narrativa com a saudosa figura de Virgílio de Almeida, que levou dezenas de espíritas na Fazenda da família (Belo Vale, em Pains-MG) e pôs-se ao trabalho da mediunidade e da desobsessão. Escravos, um “trabalho enterrado” e muitas outras coisas vão sendo descobertas até que o sofrimento de Elaine vai sendo mitigado.

O texto tem “o dedo” da Dra. Míriam Hermeto, hoje professora do Departamento de História, que ensinou aos espíritas da região a empregar técnicas de história oral, para a construção de livros de memória, como esse. Elaine foi contando e Clícia gravou e transcreveu, por isso o leitor tem a impressão que está ouvindo uma contadora de histórias recordando e falando, com algum suave toque de mineiridade, na medida em que vai lendo. São “causos”, como dizemos por aqui, que se enredam como uma colcha de retalhos, cujo sentido só será apreendido pelo exame da peça completa, então vamos lendo, ávidos do enredo. Para mim, tem um significado especial porque conheci pessoalmente ou ouvi as histórias de quase todos os personagens, participei de muitos dos acontecimentos que são recordados, então me sinto como se fizesse uma viagem no tempo e recordo com muito afeto de tudo o que está no livro.

Elaine tem uma habilidade que só percebi durante a leitura. Ela é capaz de aproximar pessoas notáveis que trabalharam em diferentes grupos ou espaços sociais do movimento espírita, e retirar o melhor de cada um. Fiquei muito surpreso em encontrar Honório Abreu e Damasceno Sobral, de saudosa lembrança, ao longo do texto. Ela percebeu com clareza que não havia limites para a divulgação espírita nesses dois trabalhadores, nem de distância, nem de número de assistentes, nem de dinheiro para o deslocamento, nem nada. Aposentados, eles dedicaram o corpo e a alma à divulgação do Espiritismo, da obra de Kardec e de Chico Xavier, e são respeitados por quem quer que os tenha conhecido.

O nascimento do Centro Espírita “Messe de Luz” em Pains-MG, cujo nome veio da percepção de Seu Virgílio, já no plano espiritual, retrata o preconceito e a luta, não contra as pessoas, mas contra a intolerância, a ignorância, a violência dos pequenos atos e comentários contra o que não tivesse o rótulo de católico, mesmo estando ligado aos valores cristãos, contra o medo do novo, do diferente. A voz de Elaine, agora baixinha, contrapõe violência com caridade e amor. Na história, muitas pessoas lançaram pedras (e moedas de uma unidade econômica da época, cruzeiro, cruzado, sei lá o quê!), desligaram disjuntores, quebraram vidraças, fizeram barulho para calar os expositores e outras atitudes pequenas, próprias de quem está na infância do espírito. Essas memórias são quase confessadas, recordadas, talvez com sofrimento, mas seguidas de satisfação, quando se descobre que o “centro” auxiliou mesmo quem se declarou inimigo. É lindo ler isso! Apercebo-me que convivi com uma personagem muito semelhante aos heróis cristãos, que empunham a compreensão e a disposição de ajudar como armas poderosas que quebram muralhas de medo e preconceito.

Leprosos (assim eram chamados os hansenianos), garimpeiros miseráveis, presidiários, pobres em sofrimento e com fome, crianças de pés descalços, vão desfilando aos olhos da nossa imaginação em cada lembrança que é contada. Eles são todos tratados como irmãos, e não como párias ou marginais. Depressão, desespero, ódio e outras doenças da alma, vão sendo tratados com o diálogo, a suave influência da imposição de mãos sobre a cabeça, a voz de espíritos bondosos e sábios, a inclusão nos grupos de trabalho a favor dos excluídos e dos que sofrem, com os livros oriundos das mãos de médiuns que dormiam tarde e acordavam cedo para realizar sua parte no pacto espírita da fraternidade. 

A narrativa sai de Minas Gerais e vai para o sul do estado do Pará, repleto de contradições, de sofrimento, de sonhos, e carente de luz, não a luz do sol, nem a luz levada pelos fios de cobre, mas a luz da alma, aquela que dá sentido à vida. Pequenos trechos de estradas malconservadas que levam dias para ser percorridos, quando aqui, no Estado de Minas Gerais, teriam sido gastas horas, e às vezes minutos. 

Os livros espíritas, que ela aprendeu a divulgar em praça pública, são levados pelos caminhos de terra, em ambiente chuvoso, por lugares inóspitos. Trens cujo ponto final está no meio da majestosa floresta amazônica, exigindo “baldeação” em veículos movidos com gasolina ou álcool, passando por estradas barrentas ou mesmo trilhas esburacadas. A criação de um centro espírita a mais, em Marabá, que se tornou um centro de luz, um lugar em que se recebem os miseráveis, diminuem a fome, fazem apologia do bem que podemos fazer e não do mal que corre de boca em boca, mesmo dos que nada testemunharam.

De volta a Minas, Elaine se recorda do Yoga, em academias, mas também em salas de aula de escolas, das muitas cidades em que ela esteve. Ela não foi apenas semeadora, foi andarilha, deixando sementes de árvores frutíferas onde passava, movida pela esperança de crescimento no futuro, que talvez, como Moisés, ela não terá o prazer de ver florescer.

Minha modesta contribuição no projeto foi com fotos e biografias: a de Virgílio de Almeida, que é apenas uma teimosia para que não se esqueçam dele, e a de Marlene Assis, outra lutadora pela doutrina.

As poesias, algumas premiadas, terminam o livro. É onde podemos ler a alma da autora, seus anseios, suas preocupações, sua visão aguçada do mundo em que viveu, sua condição de mulher. 

Foram impressos poucos livros, então só pude trazer uma dezena, para dar a alguns que viveram estas histórias, e deixar na livraria da Associação Espírita Célia Xavier para venda. Quem quiser ler, e não souber onde lançará os olhos por uma tarde, essas são minhas impressões.

14.1.23

DUAS CONCEPÇÕES DE DEUS NA BÍBLIA: A TORÁ E A EPÍSTOLA AOS GÁLATAS

 


Paulo na prisão romana

Jáder Sampaio


Lendo a epístola aos Gálatas, escrita por Paulo de Tarso, encontrei uma pérola: "E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! De  forma que não já és mais escravo, mas filho. Se és filho, és também herdeiro, graças a Deus." (Gálatas 4:6)

Esse é um versículo muito rico, que, no contexto dessa carta, nos faz tecer muitas considerações.

Como sabemos, Paulo está, ao longo da missiva, combatendo as ideias nucleares das tendências judaizantes no cristianismo primitivo. Se antes ele usou sua autoridade para dizer que era errado, agora ele argumenta teologicamente, justificando aos cristãos a diferença entre ser cristão e ser judeu.

Há alguns meses estava lendo os livros da Torá, e muitas, mas muitas vezes, se vê Yaweh afirmando: "Eu sou o Senhor". Quando se lê esses livros que contém não apenas orientações éticas de Yaweh, mas um código de leis, com estabelecimento de penas e obrigações para as vidas do povo que antes era escravo no Egito. O que se vê é que essa concepção de Deus da Torá, pressupõe um ser sobrehumano, criador, poderoso, voluntarioso, que teria libertado os hebreus mas se colocado no lugar que antes pertencia ao Faraó. Como Paulo diz, de certa forma, o Deus hebraico é o novo Senhor, o novo escravizador, e os hebreus deixaram de ser escravos do Faraó para se tornarem escravos de Deus. Esse Deus do Torá promete uma terra própria para viverem como agricultores e proteção. Ele estabelece seus representantes e o que devem fazer e exige que os hebreus sigam suas leis. Eles terão, portanto, a Terra Prometida, e a proteção dos povos vizinhos e dos conquistadores, desde que sigam a vontade de Deus.

Por outro lado, a concepção de Deus pregada por Jesus é a de Pai, que ele chama de Abba, uma palavra hebraica (אבא) que significa Pai. Nessa concepção cristã (que é o que Paulo está desenvolvendo nessa epístola), somos filhos do mesmo pai, herdeiros, portanto, e não mais escravos.

Mas na sequência do texto, Paulo mostra que durante a infância, os filhos ou herdeiros seriam como os escravos, no sentido de terem que obedecer as autoridades que se responsabilizam por eles até tornarem-se adultos. (Gl 4:1-3) Ele faz uma imagem, a das crianças que ficam sobre o cuidado do pedagogo (ou aio, na tradução de Ferreira de Almeida) até serem entregues ao Mestre (Jesus). Ele usa essa analogia para explicar a necessidade de viver sob a lei (uma espécie de infância espiritual) e de depois substituir a lei pela fé em Jesus Cristo (uma nova lógica de vida, que dispensa a observação estrita às exigências da lei e dos profetas)

A relação do homem com Deus, portanto, vai da submissão-obediência infantis, repleta de prescrições comportamentais, para a autonomia em Jesus, que trabalha em nível de atitudes. Isso também traz novas luzes para distinguir entre a "obra da lei" (Gl 3:2) e a "fé cristã".

Esse entendimento paulino, também nos permite discutir a expressão "Filho Unigênito", filho de mulher, e a dogmática da concepção divina de Jesus, mas isso fica para o futuro.

6.1.23

POR QUE O LIVRO DE CANUTO ABREU SE CHAMA "O EVANGELHO POR FORA"?


Capa de "O evangelho por fora"

Li este livro pela primeira vez há décadas. O autor, Canuto Abreu, era um intelectual espírita muito interessado na questão evangélica, que resolveu estudar mais a fundo o cristianismo e as escrituras. Na década de 50 ele já tinha domínio de hermenêutica bíblica, de grego, de latim e outros conhecimentos que cada dia mais têm sido desvalorizados, com o avanço do individualismo e da cultura de base materialista. Esses conhecimentos estão presentes nos temas que ele escolhe desenvolver. Até mesmo o entendimento de "evangelho" como significando Boa Nova, é discutido e ampliado.

Sempre me questionei por que ele denominou o livro como "O evangelho por fora", e hoje tenho pelo menos uma hipótese para explicar o significado do título.

Estava lendo o livro "Orígenes: uma introdução à sua vida e pensamento", de Heine (2019) e vi que o autor de Alexandria, Orígenes, um dos grandes estudiosos do evangelho e da filosofia dos séculos 2 e 3, se deteve em uma passagem do Apocalipse, no qual se diz o seguinte:

"E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos." Apocalipse 5:1 (Tradução de Ferreira de Almeida)

Orígenes entende que o livro se tratava da Bíblia “o que estava revelado pelo livro estava escrito por fora, porque sua interpretação era fácil e o que estava escrito por dentro, é porque era oculto e espiritual”. (HEINE, 2019, p. 62) Cabe como comentário que Orígenes foi um dos primeiros cristãos a usar o Antigo Testamento para compreender determinadas passagens do Novo Testamento (Evangelho), e já tinha consciência que interpretando literalmente, muitas passagens históricas dos Hebreus e muitas narrativas não seriam nem lógicas, nem reais. Elas, portanto, teriam que ser interpretadas para que se compreendesse seu sentido oculto.

Não tenho como afirmar com certeza, mas ao falar de "O Evangelho por fora", estaria Canuto Abreu referindo-se à interpretação literal do Novo Testamento? Ele apresenta no conteúdo do livro seu entendimento e adesão de diferentes níveis de interpretação do Evangelho, quando trata da hermenêutica, mas esse não é o núcleo do livro. Seria o livro uma espécie de introdução, para um trabalho maior que ele pretendia fazer? 

Deixo as questões aos leitores, em busca de mais entendimento do livro e do pensamento de Canuto Abreu.


Referências

ABREU, Canuto. O evangelho por fora. São Paulo, LFU, 1996.

HEINE, Ronald. Origen: an introdution to his life and thought. OR-USA: Cascade Books, 2019.