Há muitos anos, na década de 1980, fui evangelizador e depois coordenador da evangelização infantil de nossa casa, na unidade Lar Espírita Esperança. Nesta experiência, muitas vezes fiquei sem chão, porque o que eu achava que fazia bem com os filhos dos frequentadores da sede da Associação, escolarizados, de classe média, quase nunca funcionava bem com os filhos das comunidades locais.
Como exemplo, as aulas expositivas, tão bem construídas, com objetivos de aprendizagem gerais e específicos, não eram apreciadas, e, principalmente, não eram apreendidas em seus conteúdos. Uma vez, a pedido nosso, as turmas de evangelização fizeram uma avaliação somativa do que haviam ensinado ao longo do semestre, e os evangelizadores ficaram muito impressionados com a baixíssima retenção. Vimos que era necessário um novo caminho, uma nova pedagogia, ou pelo menos, uma pedagogia que pudesse se reinventar a partir da constatação de suas limitações.
Um problema que não tínhamos e que pude verificar mais recentemente, era o problema do vínculo. Quando trabalhamos com crianças de comunidade, diferentemente das crianças de classes médias, uma questão muito importante a ser conquistada ao longo do percurso, é a confiança. Uma grande ameaça para o mundo infantil, que se torna maior na medida em que as crianças são menores, é a estabilidade. Crianças que passam por famílias em contínua desagregação, na qual entram e saem pessoas, têm problemas de investimento emocional.
Vi diversas vezes pessoas da geração anterior à minha e da minha geração se queixarem dos namorados/namoradas dos filhos. Em uma época de fluidez nos relacionamentos, eles dizem:
- Não vou me ligar muito aos namorados dos meus filhos. Quando a gente começa a tratá-los como parentes, a acostumar com sua presença, o relacionamento acaba!
Se a quebra de um vínculo frágil, como o do namoro, incomoda a um adulto, já possuidor de uma rede estável de familiares e amigos, imaginem na cabeça de uma criança, muitas vezes sem esta rede de afetos.
Com certeza, não é papel do evangelizador substituir os pais e familiares ausentes, por isso é necessário estabelecer um contrato psicológico com seus alunos. Isto significa um acordo explícito, do tipo: vamos trabalhar juntos ao longo do ano, serei seu evangelizador, meu nome é fulano, e espero que vocês participem das aulas e sejam presentes ao longo do ano, para aproveitar ao máximo o que iremos fazer.
Um evangelizador, em uma comunidade, não vai apenas dar aulas, nem pode se sentir à vontade para faltar, quando outro for responsável pela aula. Ao assumir uma turma, da mesma forma que se exige presença do aluno, é necessário estar presente.
A presença, não apenas física, mas também psicológica (ou seja, em interação contínua, com alguma forma de investimento emocional), demanda dar bom dia, boa tarde, chamar pelo nome os alunos, conversar, cantar junto, rir junto, chamar a atenção (cuidado com isto, tem criança que adora ser chamada a atenção, porque não consegue reconhecimento sendo boazinha), comer junto, fazer bagunça, limpar a bagunça, arrumar a sala junto, desenhar junto, separar a briga com o colega, buscar a criança que tenta pular a janela, guardar o canivete no início da aula e devolver para a mãe ou para a criança no final da aula e todas as muitas interações, imagináveis e inimagináveis, que façam com que a criança não seja um pinto de chocadeira, mas um membro de uma ninhada.
Se o evangelizador, ou o coordenador de mocidades, ou, até mesmo, o dirigente de reuniões, é uma figura ausente, ele ensina pelo exemplo que os membros do grupo também podem ser infrequentes. Se, com suas palavras, um evangelizador pede que as crianças sejam presentes, mas, com suas ações, ele próprio falta muito às aulas, ele está promovendo de forma muito vigorosa a desagregação do grupo.
E sobrevém um círculo vicioso: a criança falta porque o evangelizador falta, e o evangelizador se desmotiva porque são poucas e infrequentes as crianças em sala. Para reverter este círculo, o evangelizador precisa ser ele a figura de referência, a primeira pessoa a estar presente.
Outra coisa importante, não se conquista a confiança de uma criança prontamente, especialmente de uma criança "escaldada", porque em seu mundo a mãe fica poucas horas com ela, entra e sai "pai" todo semestre em casa (e eles podem ser figuras psicológicas negativas), falta e muda professor todo dia na escola, isso quando elas podem se dar ao luxo de serem presentes. Da mesma forma que a namorada fica desconfiada com as promessas de um novo namorado, crianças que passam por experiências de abandono irão demorar um pouco mais e até mesmo pedir "provas de amor" de seu novo evangelizador. Vão fazer "arte" na sala de aula, vão desafiar as regras estabelecidas, vão expressar em voz alta seu descontentamento, mas, na grande maioria, irão aos poucos aceitando as regras do grupo e confiando no evangelizador, na medida em que constatam que ele "veio para ficar" e que está disposto a amá-las (amor exigente, ok?)
Quando coordenei a evangelização do Lar Espírita Esperança, tínhamos dois tipos de pessoas em sala de aula: evangelizadores e estagiários. Os estagiários eram os membros recém admitidos ao grupo, sem experiência com as atividades de evangelização. Nós geralmente os deixávamos por um mês na sala, e os passávamos ao longo do ano por várias salas de aula, para que pudessem descobrir com que idade gostariam de trabalhar, para adquirir experiência com diferentes evangelizadores e para ver se serão capazes de permanecer na equipe por um período maior, se não irão desistir diante da primeira dificuldade. Não havia muito problema com este arranjo, porque era conversado com as crianças.
Então tínhamos dois contratos psicológicos diferentes em sala de aula. O contrato do evangelizador, que é de pelo menos um ano (ou seja, a criança sabe, e deverá confirmar com o tempo, que ele irá ficar com ela por, pelo menos um ano) e o contrato do estagiário, que irá ficar por um mês, e dará ou ajudará a dar uma aula, neste período.
Os vínculos temporários, pressupõem apresentação e despedida. Vocês já viram alguma visita sair de sua casa sem despedir-se, após uma reunião íntima? O que você sentiria se deixasse uma pessoa no sofá de sua casa e logo depois ela sumisse, sem se despedir? Talvez passasse pela sua cabeça que ela se ofendeu com alguma coisa que você disse ou fez, ou que aconteceu algo muito grave que exigiu a saída repentina dela, etc. Agora imagina o que passa na cabeça de uma criança de oito, dez ou doze anos, já "escaldada" de ver pais entrarem por uma porta e saírem por outra em sua vida.
Se você quer ser um evangelizador de crianças de comunidades, tenha em mente que você tem uma responsabilidade e um contrato de um ano. Justifique suas faltas, se possível prepare as crianças para elas. Nunca as deixe com um estranho em sala de aula, nem permita que se juntem turmas sem um motivo grave. Se você sabe que vai ser infrequente ao longo do ano, então não assuma esta tarefa, ajude a equipe de outra forma, preparando material, apoiando a coordenação, servindo lanches, aplicando passes, em um lugar psicológico onde o vínculo não seja essencial.
Jáder, este texto me lembra algo que já comentei muito com amigos e é um grande diferencial em relação as igrejas evangélicas: a questão, ou melhor "a sensação" de pertencimento, de grupo.
ResponderExcluirConheço várias pessoas que se tornaram evangélicas realmente pelo grupo. Repetem o que o pastor fala e só. Mas há uma sensação de grupo, de apoio social, muito grande. E isto é muito importante, principalmente onde a realidade das famílias desestruturadas é uma realidade enorme.
Grande abraço