Páginas

28.11.18

O EVANGELHO POR FORA?




Estive lendo o livro Hermenêutica Avançada, escrito por Henry Virkler e publicado pela editora Vida Acadêmica. O autor propõe diversos cuidados para a interpretação do texto bíblico em geral, desenvolvendo uma espécie de pequeno curso de interpretação das escrituras.

Durante o texto o autor debate a diferença entre a exegese e a eisegese. Ele afirma que o prefixo “ex” significando “fora de”, “para fora” ou “de”, significa que “o intérprete está tentando derivar seu entendimento do texto, em vez de ter seu significado no (“para dentro”) texto (eisegese)” (Virkler, 2001, p. 11)

A partir dessa leitura penso que dá para supor por que Canuto Abreu deu o nome de “O Evangelho por Fora” para seu livro, e mais especificamente para a primeira parte do seu livro. É um dos poucos livros, que trata de hermenêutica e exegese bíblicas no meio espírita. 

Wilson Garcia apresenta em seu blog um livro de mesmo título escrito por Júlio Abreu Filho, mas explica que ele sucedeu a Canuto no curso de aprendizes do evangelho da FEESP. (http://www.expedienteonline.com.br/entre-tracas-poeira-e-paginas-rotas)

Kardec emprega técnicas de hermenêutica e exegese para a interpretação dos textos do antigo e novo testamentos que encontramos em “O evangelho segundo o espiritismo”, mas não se aprofunda na técnica, e, sim, na harmonização entre o pensamento cristão e os princípios espíritas, o que pode ser chamado de exegese espírita, como bem o diz Canuto Abreu.

Quando o autor destaca que o livro aborda o evangelho por fora, estaria ensinando ao leitor os caminhos para se entender o evangelho a partir do seu próprio texto, da intenção dos autores e não para obter um apoio forçado para suas ideias pessoais (que seria, então, o evangelho por dentro).
Abreu trata de três dos sentidos empregados para interpretação, a hermenêutica e suas regras, as críticas (histórica, dogmática, racionalista, evangélica e bíblica), dos evangelhos canônicos, além de questões linguísticas e da tradição verbal. Um exemplo curioso em que emprega seus conhecimentos está na análise da palavra Evangelho e seus significados, literal, espiritual e anagógico.

Não é um livro de fácil leitura, já que foi escrito por um erudito para mostrar alguns de seus caminhos no entendimento do evangelho, mas é uma leitura importante para quem se propõe ao estudo bíblico no meio espírita. 

25.11.18

O DÉCIMO SEGUNDO: UM FILME SOBRE A DOR




Acabo de assistir “O Décimo Segundo”, um filme de Cristiane Miranda que aborda a temática da escolha pelo suicídio, com uma ótica espírita.

É um filme experimental, de baixo orçamento, nada que lembre um filme hollywoodiano. O som ambiente incomoda no início, a iluminação contrasta com as imagens que parecem ser vistas pessoalmente, nos filmes profissionais, Quem assiste é remetido aos personagens e suas emoções diante de pressões do dia-a-dia. O risco de identificar-se com alguma das situações em foco é muito grande, porque os dilemas que surgem são comuns, e alguns não são atuais, mas fazem parte da alma humana.

O filme fala principalmente da temporalidade da dor. O que nos parece a destruição da vida que construímos, é apenas uma crise, um momento de transformação. Se soubermos enxergar um segundo além da crise, o suicídio se torna um ato insensato.

Cristiane inseriu muitos símbolos e sinais do espiritismo ao longo do filme, mas seus esquetes não são ideológicos, talvez cristãos (em um sentido bem amplo) porque remetem ao dilema universal da alma diante da dor.

As locações são em Belo Horizonte, o que me causa ao mesmo tempo uma sensação de familiaridade e estranhamento, porque quase nunca vemos a capital mineira e seus espaços na telona ou nas telinhas. O filme, contudo, não faz da capital mineira uma personagem, escolhe lugares que poderiam representar lugares comuns.

Pensando no público espírita, para quem escrevo, o filme é um apoio interessante para um debate sobre o suicídio, podendo ser projetado e discutido nas casas espíritas.

Uma questão permanece ao longo do filme e gostaria de compartilhar com os leitores do Espiritismo Comentado: quem é o décimo segundo?


Ficha Técnica

O décimo segundo
Roteiro e Direção: Cristiane Miranda
Música: Tim
Produção: BH Brasil
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 25 minutos
Áudio: Português

Onde comprar?
Livraria Ysnard Machado Ennes
Associação Espírita Célia Xavier

Rua Coronel Pedro Jorge 314, Prado - Belo Horizonte-MG Brasil
3334-5787

17.11.18

TRÊS INICIATIVAS DE RESGATE DA MEMÓRIA ESPÍRITA EM BELO HORIZONTE-MG




Nos últimos dois anos, vieram à luz três livros que tratam da memória do meio espírita em Minas Gerais.

Pelas comemorações dos 50 anos do Hospital Espírita André Luiz, em Belo Horizonte, Lucrécia Valle e Roberto Lúcio Vieira de Souza publicaram o livro “Hospital Espírita André Luiz: da revelação espiritual à prática clínica”.

O livro traz em seu corpo uma pesquisa documental e em jornais de época sobre a criação e a trajetória do Hospital Psiquiátrico desde sua concepção até a comemoração dos 50 anos de atividades.


O livro trata também do serviço de saúde do Hospital e dos avanços realizados com o passar dos cinquenta anos, na medida em que a psiquiatria e as ciências da saúde também avançavam.

Observa-se que o hospital é fruto do esforço de pessoas de diversos grupos espíritas da capital mineira, que se organizaram em torno do projeto de oferecer tratamento psiquiátrico e de saúde à população em situação de vulnerabilidade social. Vê-se que as lideranças que se aproximaram desse ambicioso projeto, estavam em plena atividade em seus centros espíritas e com atividades diversas, quando se depara com os dois outros livros publicados.

O Cenáculo Espírita Thiago Maior foi local das primeiras reuniões de diretoria do hospital, enquanto o terreno era adquirido, e logo após o Centro Oriente (p. 34) Juntou-se aos diretores um grupo ligado à União Espírita Mineira e a Chico Xavier: Peralva, Salvador Schembri, Osório Morais e Virgílio Almeida. Emmanuel, através do lápis do médium de Pedro Leopoldo, dá diversas orientações para o futuro hospital que vão sendo publicadas em boletins e mensagens, lidos em reuniões de diretoria. Os Espíritos Joseph Gleber e Irmã Scheilla também se manifestam e orientam.




Sergito de Souza Cavalcanti, professor aposentado da Escola de Veterinária da UFMG, publicou agora em agosto de 2018 o livro “Oriente de Luz”, que trata especificamente do Grupo Scheilla, mas de forma geral do movimento da fraternidade em Belo Horizonte. Sergito apresenta em linguagem simples e direta os trabalhos realizados pelo Grupo Scheilla e o Centro Espírita André Luiz, com estatísticas entremeadas por histórias de fundadores e trabalhadores.

Jair, Ênio, Dante são alguns dos trabalhadores que participam também do HEAL. Em alguns momentos, há conexões entre os dois livros de instituições diferentes, mas com partilha de trabalhadores.




Por fim, alguns dos personagens da capital mineira surgem novamente no nosso Conversando com os espíritos. Virgílio Almeida, Ysnard Machado Ennes, Oswaldo e Honório Abreu, presentes no HEAL, estão novamente sendo lembrados pelos seus trabalhos, uns no Grupo Emmanuel e outros na Associação Espírita Célia Xavier.

Um tanto negligenciada, pelo desejo dos trabalhadores de ficarem anônimos enquanto encarnados, a memória vai sendo resgatada de forma ainda amadora, mas relevante para a compreensão das organizações que formam o movimento espírita nas Minas Gerais. Tomara que outras iniciativas, com documentos, registros em jornais e método de história oral, continuem resgatando a memória do Lete do esquecimento, dando sentido e significado às ações empreendidas no passado e herdadas no presente pelos trabalhadores espíritas.


14.11.18

TRABALHOS DO 14 ENLIHPE PUBLICADOS NO YOUTUBE



Abaixo estão as exposições de trabalhos do 14o. ENLIHPE e seus respectivos links para o youtube.


Mesa de Abertura

Humberto Schubert Coelho - A importância da fundamentação transcendental e idealista para a ideia de importalidade do espírito.


Alexandre Fontes da Fonseca - O que não comprova a existência da alma?


Julia Nezu - A relação entre a Liga de Pesquisadores do Espiritismo e o Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo 

Marcelo Gulão - As investigações sobre a sobrevivência da alma

Marco Milani e Samuel Magalhães - Mesa de debates: A Gênese

Homenagem a Alfred Russel Wallace

Raphael Vivacqua Carneiro - Evocação de pessoas falecidas utilizando a prece e a varredura medianímica

Leandro Santos Franco de Aguiar - Mediunidade e sobrevivência: um século de investigações: a contribuição de Alan Gauld para o estudo da imortalidade

Luiz Fernando Bandeira de Melo - A sobrevivência da alma e o progresso moral em Sócrates

Elton Rodrigues - Ensaio sobre as anotações do Dr. Kerner com respeito aos fenômenos psíquicos da Sra. Frederica hauffe

Eric Vinícius Ávila Pires - Cesare Lombroso: da biografia à transição paradigmática

10.11.18

A CIÊNCIA COMO EMPREENDIMENTO COLETIVO





Uma das propostas que vou tentar realizar no Espiritismo Comentado é a discussão da dimensão científica do espiritismo. Antes disso, temos que entrar em um entendimento comum sobre: "o que é ciência?"

Um dos primeiros temas a se discutir é que a ciência é um empreendimento coletivo, articulado e falível. Penso são adjetivos de ampla aceitação pela comunidade científica, e que nos possibilita discutir algumas concepções muito equivocadas que as pessoas em geral têm do conceito de ciência. Vou falar um pouco das chamadas ciências naturais.

Ao contrário do que se imagina, quando se vê um grande cientista como Einstein ou Pasteur, a ciência não é fruto de uma grande inteligência individual que teve uma espécie de “iluminação” que revoluciona o que se sabia antes. Thomas Edison dizia que “a genialidade é 99% de transpiração”, ou seja, muito trabalho duro, muita leitura e estudo, para, ao final, conseguir um momento de inspiração.

O cientista, portanto, lê o que outros cientistas publicam. Ele passa muitas horas estudando um tema antes de poder escrever sobre ele. É o que se chama de “estado da arte”, “revisão bibliográfica”, “revisão sistemática”, com pequenas diferenças entre essas expressões.

Quando se vai escrever um artigo, para comunicar alguma coisa, normalmente se lê o que foi escrito nos últimos cinco anos sobre o tema (esse tempo é variável), sem contar os anos de estudo de um especialista sobre os conhecimentos da sua área para ser considerado como tal.

Hoje isso é bem mais complicado, porque há milhares de cientistas trabalhando ao redor do mundo, e cada vez surgem mais revistas especializadas. As publicações têm sido feitas em inglês, principalmente, que acabou sendo considerado o idioma mais dominado pelos cientistas, pelo menos ocidentais.

Suponha que o tema em estudo seja a “reencarnação”, como o fizemos há alguns anos no Encontro Nacional da LIHPE. O que se escreveu sobre reencarnação em revistas científicas analisadas por pares? Por incrível que pareça, ao contrário do que se pensa, há muita coisa sendo escrita e produzida sobre esse tema, com métodos aceitos pelos cientistas, e publicado. A velha afirmação que os cientistas não estudam reencarnação e não aceitam que se estude o tema não se sustenta, embora seja válida para muitos que consideram o tema metafísico.

Essa revisão não visa apenas ao conhecimento dos fatos registrados, por exemplo, crianças que se lembram de ter vivido anteriormente, mas também de todas as explicações possíveis para esse fato, após constatado, que é o que se chama de teoria científica. A análise das teorias, o jogo de aceitação e refutação das explicações existentes e a formulação final, após todos esses estudos, é o que se chama de conhecimento científico.

Obviamente, após anos de trabalho e publicação, alguns cientistas se tornam notáveis por todas as contribuições que deram às suas áreas. Alguns são até considerados gênios, porque conseguiram uma nova e melhor forma de explicar um conjunto de fatos que não era percebido por seus pares. Obviamente, são inteligentes, mas não chegaram lá apenas por serem inteligentes, mas por terem feito seus 99% de esforço, lendo, observando, experimentando, escrevendo, reescrevendo, criticando o que existe e não está bem elaborado, identificando falhas nos estudos já realizados, entre outras atividades.

Mas a ciência é falível? Não é a verdade? Isso fica para outro post.

8.11.18

ESPIRITISMO: CIÊNCIA NATURAL OU FILOSOFIA?




Em uma das palestras que fiz recentemente, surgiu uma questão interessante sobre o status epistemológico do espiritismo. Não dava para desenvolver a questão nas condições em que nos encontrávamos, então deixei para tratar aqui, no Espiritismo Comentado.

Meu interlocutor via, de um lado as ciências (entendidas como as ciências naturais) e de outro a filosofia (com suas subáreas tradicionais, menos a psicologia). Ele argumentava que o espiritismo devia tender, portanto, para a filosofia, que possivelmente teria um poder explicativo melhor. 

Contudo, na universidade contemporânea, entre a filosofia e as ciências naturais encontram-se as ciências humanas e sociais. São áreas de conhecimento desenvolvidas geralmente a partir do século XIX, que estudam o homem, sua cultura, suas organizações e sociedade. 

No princípio, as ciências humanas tentaram empregar métodos das ciências naturais para esses estudos, como se pode ver em Durkheim (ciências sociais), os autores estruturalistas e funcionalistas (psicologia), entre outros. Como os avanços fossem modestos e contraditórios, diferentemente da física, por exemplo, logo se viu que o objeto de estudo desses cientistas era capaz de se modificar, o que ele fazia através da linguagem.

Por esse motivo, as ciências humanas avançaram (para alguns cientistas não), e englobaram métodos de estudo de base hermenêutica e fenomenológica, que consideram a apreensão do significado da linguagem humana e suas consequências, entre outras contribuições que hoje se costuma chamar de métodos qualitativos, e que vão além da observação. Autores com De Bruyne, denominam essa abordagem como abordagem da compreensão (que envolve uma busca rigorosa do significado do que fala o sujeito e suas implicações), em oposição à abordagem da explicação, das ciências naturais (que envolvem, leis, descritas matematicamente, de forma exata ou probabilística, explicando eventos que seguem a regularidade matemática encontrada). 

Allan Kardec desde o princípio de seus estudos, percebeu que o método das ciências naturais era insuficiente para obter respostas para as questões investigativas que tinha a propor para as “inteligências desencarnadas”. Ele manteve o indutivismo das ciências naturais, mas percebeu que como os espíritos tinham diferentes capacidades de descrever o mundo em que viviam, era necessário classificá-los, o que fez com a escala espírita, para estudar apenas os relatos dos espíritos superiores.

Outra coisa que ele fez, muito semelhante à pesquisa fenomenológica, que só foi estabelecida anos depois, foi buscar na narrativa dos espíritos superiores, aquilo que lhes era comum. Ele denominou seu método, na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de “controle universal do ensino dos espíritos”. Com isso, ele buscava conteúdos semelhantes através de médiuns diferentes, de preferência os que desconheciam as contribuições dadas pelos demais, como forma de controle da interferência do médium na comunicação. Em fenomenologia, isso se chama “redução fenomenológica”. Outro ponto do método de Kardec era evitar ideias pré-concebidas e ater-se aos conteúdos colhidos. Em fenomenologia isso se chama “suspensão de juízo”.

O mestre francês sempre analisava o conteúdo do que lhe era dito de forma compreensiva (o que significa o que o espírito disse? Está de acordo com os demais espíritos superiores? Faz sentido?) e utilizava a razão como forma de análise e comparação.

Em um artigo já publicado, desenvolvemos mais esse ponto de vista. Está no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia”, publicado pela parceria CCDPE-ECM e LIHPE, e é intitulado “Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”.



Se aceita essa argumentação, entendemos que do ponto de vista metodológico e epistemológico, há conhecimentos no corpo da doutrina espírita que se desenvolveram com base na observação e experimentação (ciências naturais), há outros conhecimentos que são fruto da argumentação racional (filosofia), mas boas parte do corpo doutrinário repousa em uma análise fenomenológica daquilo que os espíritos disseram aos estudiosos do século XIX e que foi analisado por Allan Kardec (métodos qualitativos de ciências humanas). Boa parte da ética espírita tem uma dupla origem como conhecimento: os relatos da vida após a morte e das consequências das ações em vida (análise fenomenológica de Kardec), e a análise da ética cristã como referência ética para a humanidade (o que constitui parte do aspecto religioso do espiritismo, considerando-se, contudo, que Kardec busca uma fé raciocinada, ou seja, com contribuições dos métodos filosóficos, e não apenas uma “fé cega”)