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5.3.19

UMA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO SOBRE A EPÍSTOLA DE PAULO AOS CORÍNTIOS


Ruínas em Corinto

Jáder Sampaio

Ao preparar um estudo sobre o cristianismo primitivo, esbarrei na tese “Paulo e a Ekklesia de Corinto: conflitos sociais e disputas de autoridade no período paleocristão”, escrito por Simone Resende da Penha Mendes.

O trabalho é interessante, porque a autora se dispôs a articular o que se conhece em história com a interpretação do texto da epístola de Paulo aos coríntios.

Corinto era uma cidade grega importante, mercantil, situada na passagem entre o Mar Jônico e o Egeu. Foi destruída em 146 pelo general romano Lúcio Múmio, com o massacre e escravização dos gregos, tornando-se romana. A cidade que Paulo conheceu era um centro comercial habitado por romanos (pobres agraciados por César e veteranos de guerra), gregos (alguns com cidadania romana), judeus e outros estrangeiros.

As diferentes origens dos cidadãos de Corinto fez com que essa comunidade se tornasse uma espécie de “caldo de culturas”, embora as decisões políticas e o poder fossem exercidos segundo Roma. Outra questão que foi revista pela autora nos autores da historiografia, foi a relação patronal na comunidade nova. Ricos e pobres formavam a nova ekklesia fundada por Paulo.

Na perspectiva cristã, as relações sociais seriam pouco relevantes nas relações dos membros da ekklesia ou comunidade. Uma nova ética é proposta por Jesus e se impõe aos códigos de moral das diferentes culturas existentes. Apesar disso, era inevitável, que uma autoridade romana tivesse problemas de convivência no espaço da comunidade com um estrangeiro, escravo ou pobre. Era provável que houvesse também um conflito entre os costumes dos membros da comunidade, porque os costumes judaicos são bem diferentes dos romanos, por exemplo. O pensamento grego também se distingue da tradição judaica, mais interpretativo-religiosa que sistêmico-filosófica. Os pequenos conflitos começam a surgir no dia-a-dia após a criação de uma nova forma de estabelecer relações sociais em uma cidade romana.

A comunidade de Corinto foi fundada no ano 50 por Paulo de Tarso. A autora afirma que ele provavelmente ficou na cidade por 18 meses (p. 56 e Atos 18:11). Nesse tempo ele trabalhava como tecelão, fabricando tendas (Atos 18:3) com Áquila e Priscila (ou Prisca[1]). É curioso, porque na cultura hebraica, aos sacerdotes era devido algum pagamento, o que fez com que Paulo lembrasse isso à comunidade em uma de suas epístolas.

A autora discute as teorias sobre quantas epístolas Paulo realmente teria escrito. Os autores consultados falam em oito epístolas, das quais uma se perdeu e as demais foram usadas na composição dos textos das duas epístolas da Bíblia. Simone conclui que duas se perderam (p. 62), que I Coríntios é composto de duas epístolas e que II Coríntios é composto de outras quatro epístolas, em resumo. Ela, contudo, defende a autoria de Paulo.

Além de Áquila e Priscila, outros personagens são nominalmente citados nas epístolas, dentre eles, Apolo. Simone (p. 137) localiza no livro de Atos (cap. 18), que se trata de um judeu nascido em Alexandria, eloquente e versado nas escrituras. A autora explica que ele tinha habilidade retórica, possivelmente superior à do próprio Paulo, o que o levaria a justificar que seu trabalho era “anunciar o Evangelho, sem recorrer à sabedoria da linguagem” (I Coríntios). Apolo era amigo de Paulo, e é um dos que levam a ele informações sobre a comunidade cristã de Corinto. Simone Mendes especula se ele não teria sido influenciado por Filo ou por autores do paleocristianismo de Alexandria, antes de ter vindo a Corinto.

Os Conflitos

Simone classifica os conflitos da ekklesia de Corinto em dois tipos: os conflitos políticos e os de conduta.

Um dos conflitos políticos foi a divisão de alguns dos membros da comunidade entre os “de Paulo” e “de Apolo”, que a autora interpreta como sendo a origem de uma série de considerações que Paulo faz nas epístolas. Apolo teria uma formação mais filosófica e Paulo falaria mais diretamente. Simone entende que os “simpatizantes” de Apolo (I Coríntios 3:3-6) valorizavam mais a sabedoria do mundo, o que teria levado Paulo a contrapô-la com a sabedoria de Deus, revelada pelo "espírito", (I cor 1:17, 2:16 e pág. 139 da dissertação de Simone Mendes).

A autora identifica 14 conflitos políticos em seu trabalho (p. 135) que os interessados podem estudar posteriormente.

Outra categoria foi identificada como conflitos de conduta, que a autora mostra ter origem nas diferenças culturais e morais dos membros da comunidade. Assim se encontra uma discussão sobre o uso de véu nas reuniões da ekklesia, outra sobre um membro que passou a viver com a mulher do pai, o recurso a tribunais gentios, possível manutenção de relações sexuais de membros com prostitutas, questões relativas a virgindade e casamento, consume de carnes sacrificadas aos ídolos, e ocupação de lugares na ceia do senhor (não havia missa à época, mas uma refeição comunal). A explicação de cada um desses conflitos pode ser lida nas páginas 121 e seguintes da dissertação.

Costumes diferentes, ética cristã e uma nova moral

O que se observa no trabalho do Programa de Pós-Graduação em História da UFES é uma análise das epístolas de Paulo aos coríntios que mostra a dificuldade em se construir uma comunidade formada de pessoas de diferentes origens, culturas e costumes. Ao resolverem viver como comunidade, os membros de Corinto são desafiados a reconstruir seus valores em uma perspectiva cristã. Paulo age como uma liderança, discutindo os problemas que surgem à luz dos ensinos de Jesus.

As epístolas são analisadas pela autora como uma reflexão paulina diante dos desafios que o convívio entre cristãos-judeus e cristãos-gentios se amplia, em lugar de ser lidas como um código de conduta cristã. Muitas das questões de conduta, por exemplo, são de ordem prática, e não foram abordadas por Jesus em suas pregações ou em seu convívio com os apóstolos, uma vez que todos eram oriundos da cultura hebraica e não havia conflito naquilo que habitualmente já faziam da mesma forma. As soluções paulinas para os problemas da época ganharam visibilidade e aceitação pela comunidade cristã como um todo, o que mostra que eram problemas comuns e que as soluções eram bem vistas.

O estudo do cristianismo primitivo ou paleocristianismo interessa a nós, espíritas, porque há diferenças marcantes entre as comunidades primeiras e as que se formaram após a fusão entre o movimento cristão e o estado romano. Esse evento “divisor de águas” se inicia no governo de Constantino, no século IV.




[1] Πρισκιλλαν, do grego, pode ser traduzido para o latim como Prisca. As diferentes Bíblias que lenho traduzem o nome da esposa de Áquila para Priscila. Na Bíblia em latim (Sacra Vulgata), o nome se encontra grafado Priscillam.

Um comentário:

  1. http://repositorio.ufes.br/handle/10/6333

    Excelente dica. Faltou só.ente o link pra dissertação, acima.

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