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30.5.20

A HISTÓRIA DA REDAÇÃO E TRADUÇÃO DA BÍBLIA CONTADA POR HISTORIADORES


Bíblia de 1200 anos recuperada de contrabandistas


Os historiadores e arqueólogos têm se dedicado bastante a escrever uma história baseada em documentos, achados arqueológicos e história comparada do cristianismo, com bons frutos. Na França do século 19 iniciou-se o afastamento entre a teologia e a história do cristianismo, que ficou cada vez menos apologética e mais compreensiva e crítica.


A cada dia se descobre mais sobre a Bíblia e, em especial sobre os textos dos cristãos primitivos. A hipótese mais aceita pelos historiadores é que houve inicialmente uma tradição oral, que os primeiros escritos devem ter sido as Cartas de Paulo e que aos poucos surgiram registros escritos dos ensinos de Jesus. Aceita-se também, nos dias de hoje, que o primeiro evangelho escrito foi o de Marcos (64), sucedidos por Mateus e Lucas (70-80). É também aceita uma hipotética fonte Quelle, também um proto-evangelho, que teria sido consultada na formação dos dois últimos evangelhos sinóticos. Analisando o grego e as imagens contidas no evangelho segundo João (90-110), os estudiosos entendem que ele teria sido o último a ser escrito ou composto, já influenciado pelo pensamento grego. O livro de Atos dos Apóstolos seria uma espécie de continuidade do texto do evangelho segundo Lucas. 



Os historiadores não têm como afirmar quem escreveu os evangelhos que lemos hoje. Sabe-se que eles se originam da tradição oral e, talvez, escrita, daqueles que lhe compõem o nome. Assim, os evangelhos segundo Lucas e Mateus, se originariam dos ensinamentos desses dois hagiógrafos sobre Jesus, embora essa posição não seja consensual. O evangelho de Marcos, tem a influência de Pedro, com quem João Marcos conviveu bastante. O evangelho segundo João é herdeiro da experiência do apóstolo considerado “mais amado”. 



Fonte: Apresentação "O cristianismo e o cristãos primitivos", Jáder Sampaio, 2020

Os textos originais não eram divididos em capítulos e versículos. Talvez tenham sido escritos como logia, ou ditos do Senhor. Frases curtas, narrativas rápidas, que aos poucos foram compondo um livro de ensinos cristãos. Eles não foram escritos com a finalidade de fazer história, nem têm finalidade biográfica, mas a de divulgar Jesus e seus ensinamentos. 


No último século descobriram-se textos cristãos no Egito (Nag Hammadi) e em Israel (Qmram) que datam dos primeiros séculos, o que ampliou o conhecimento sobre os cristãos primitivos. Sabe-se que com a divulgação do cristianismo pelos discípulos de Jesus, formaram-se comunidades pela Ásia, pela Grécia e depois por todo o Império Romano. 


Surgiram textos e textos nessas comunidades, todos tratando de Jesus e dos apóstolos, mas compostos de informações diversas dos demais, o que promovia diferenças entre as comunidades e as ideias teológicas cristãs. Diante esta multiplicidade de textos e de ideias, buscou-se um entendimento nos primeiros séculos sobre que livros deveriam ser reconhecidos e que ideias teológicas seriam corretas. Surgiu então o debate sobre as heresias, ainda no segundo século.

Essa escolha não é uma decisão fácil de ser implementada, especialmente considerando-se que algumas comunidades aceitavam um conjunto de textos e se estruturaram em torno deles, funcionando há décadas ou séculos. Surgiram estudiosos que sofreram o ataque de filósofos gregos, munidos da razão, e alguns procuraram usar a razão como forma de diálogo, ainda que uma razão serva da fé. Até nos dias de hoje nos perguntamos se as ideias rejeitadas realmente merecem anátema, e se as ideias aprovadas são as que representam o que era veiculado pelos primeiros cristãos, e se mereceram ser transformadas em dogmas.


Sabemos que os livros que hoje formam o cânon, ou seja, os 27 livros do novo testamento, foram escritos em grego popular (Koiné), com algumas palavras e expressões em aramaico, a língua falada na região da Judeia, Samaria e Galileia da época de Jesus. Há também citações do Antigo Testamento nos muitos diálogos retratados, como era costume dos judeus. O grego era uma boa escolha, porque até mesmo em meio aos judeus havia os helenistas, que cresceram em ambiente grego e falavam a língua. Assim os ensinos de Jesus atingiriam mais facilmente os chamados gentios, ou não-judeus. Pode-se dizer que o grego Koiné seria uma espécie de "língua internacional" em boa parte do Oriente Médio e na Grécia. Mesmo em Roma as classes superiores estudavam o grego e muitos liam os clássicos gregos, como é o caso do imperador Augusto.


Após o fim da clandestinidade do cristianismo no Império Romano, que aconteceu durante o governo do imperador Constantino, empreendeu-se um esforço de entendimento entre os cristãos, o que era do interesse também do imperador, que não poupou esforços para interferir no meio religioso com essa finalidade. O mais importante evento patrocinado por ele foi o Concílio de Nicéia (325), que, dentre muitas resoluções, tornou heresia a teologia de Ário ou Árius, e estabeleceu ideias para o que hoje os historiadores denominam como ortodoxia cristã. Na impossibilidade de uma solução lógica ou dialógica, optou-se por uma escolha política e uma espécie de imposição da maioria, que é questionada até os dias de hoje pelos estudiosos, em função da intervenção do Estado Romano. Na literatura espírita, Wallace Leal V. Rodrigues se posiciona dessa forma no livro A esquina de pedra.



Eusébio de Cesareia, em 330, tinha uma lista de 26 livros para o Novo Testamento muito próxima da atual. Ele considera questionáveis (antilegomena) diversos livros hoje considerados pseudepígrafos ou apócrifos, e até mesmo o Apocalipse de João ficou como dúvida.



No Sínodo de Laodiceia (363-364) ficou acertado que os livros aceitos seriam os atuais, com exceção ao Apocalipse de João. Houve também a proibição dos livros não-canônicos nas igrejas, o que vai fechando a possibilidade de discussão de ideias não pertencentes ao conjunto do cristianismo chamado ortodoxo pelos historiadores. Um texto que trata claramente sobre a reencarnação, como o Apocalipse de Paulo, não pode ser lido pela comunidade de cristãos (uma vez que pela palavra igreja não se entendiam as construções ou templos, mas o conjunto de membros). Os textos de Pelágio, que defendem o livre-arbítrio também. Podemos considerar essas decisões como precursoras do Index Prohibitorum, só que ao contrário (definiram o que se pode ler, em vez de o que não se pode ler).



A criação da vulgata latina que é a Bíblia em latim, é mais ou menos próxima da época em que o Império Romano permitiu a prática do cristianismo, e depois o tornou religião oficial do império. Viu-se que a língua grega, com que haviam sido escritos os textos do Novo Testamento, atingia apenas parte do império: não era mais a língua universal dos Romanos. É possível também que os interesses em se aprovar uma teologia única para a Igreja visse na tradução para o latim uma forma de divulgar os textos que compunham o cânone por todo o império e isolar os textos escritos em grego, copta ou outras línguas, considerados apócrifos. O mais importante é que quem falava latim (todo o Império Romano, presumo) e fosse alfabetizado, poderia ler a Vulgata. Os cristãos poderiam realizar suas práticas em latim, os responsáveis pela instrução poderiam ensinar o evangelho em latim e com essa língua, todo falante de latim teria acesso ao cristianismo. A palavra “Vulgata” significa para o povo.



Os atores dessa aventura cristã foram o papa Dâmaso I (Bispo de Roma), que em 383, baseando-se nas decisões do Concílio de Roma (382). Jerônimo de Estridão corrigiu a Vetus Latina, que era uma tradução latina do Novo Testamento existente, e terminou a tradução do Antigo Testamento hebraico para o latim em 405, em sintonia com o judaísmo rabínico, que considerava inadequada a Septuaginta (o antigo testamento escrito em grego).



Os anos se passaram, o cristianismo foi divulgado em outros povos, o Império Romano do Ocidente foi invadido por povos bárbaros, e embora muitos adotassem o latim, as línguas foram se modificando até atingir a pluralidade de línguas europeias que temos hoje. 



O império Romano do Oriente tornou-se o Império Bizantino, e a língua falada era o grego, que no início coexistiu com o latim e depois foi predominando. A igreja expandiu-se aos povos germânicos, eslavos e foi para a península escandinava e para as ilhas britânicas. Os missionários, para poder evangelizar, aprendiam e ensinavam o cristianismo nas línguas locais. A Bíblia, contudo, continuava em latim.



Passaram-se os anos e o latim era ensinado nas escolas para uma pequena elite religiosa e política e intelectual, mas não mais pelo povo. Perdeu-se o objetivo inicial, que era levar o conteúdo do texto cristão para o vulgo. Nessa história, a tradução da Bíblia para as mais diversas línguas faladas pelos cristãos só aconteceu após a reforma protestante. 



Como Lutero e os reformistas precisavam explicar ao povo a sua interpretação da Bíblia, isso só seria possível se o povo fosse capaz de ouvir e entender o que havia nas escrituras em seu próprio idioma. Foi uma das atividades que Lutero acabou realizando, após alguma relutância: traduzir a Bíblia para o alemão, o que fez em 1534. Com o surgimento da imprensa (1430), um século antes, as pessoas podiam ter mais acesso ao texto básico do cristianismo. 



Após Lutero, “protestantes” começaram a traduzir a Bíblia para seus idiomas, e, ainda assim, o Concílio de Trento (1546 – 1563) "bateu o pé", insistindo no latim. 

Li um livro  no qual os conservadores argumentavam que se a Bíblia fosse traduzida para as línguas faladas nos países, e qualquer pessoa pudesse ler, surgiriam interpretações “erradas” da leitura das traduções, o que geraria confusão [1]. A questão era tão delicada, que só no Concílio Vaticano II (1961 – 1962) a Igreja Católica declarou que as missas fossem celebradas nos respectivos idiomas das diferentes comunidades, encerrando o que se pode chamar de período latinizante.


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[1] O livro dos Mártires, John Foxe. São Paulo: Mundo Cristão. Versão Kindle.

12.5.20

AUBRÉE E A QUESTÃO DO RELIGIONÁRIO

Marion Aubrée

Há cinco anos ajudei a organizar o 1º Encontro de Cultura e Pesquisa Espírita – XII Colóquio França-Brasil, que aconteceu no auditório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Acabei ficando de “organizador fantasma”, porque o voo para o Rio atrasou e não pude participar da mesa de abertura, e nenhum dos trabalhadores do evento me reconhecia como tal. 

Tive, contudo uma experiência curiosa com a Dra. Marion Aubrée, coautora do livro “A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil”[1]. 

Sabendo da sua presença, levei um exemplar de seu livro, já esgotado em português, para ela autografar. Eu tenho uma coleção de livros autografados pelos respectivos autores e o momento de colher a dedicatória e assinatura, ainda que breve, é a oportunidade de conversar com quem lemos.

Levei o livro até ela, que para minha surpresa, me perguntou:

- Você é pesquisador ou espírita?

Diante do inusitado da questão (considerada indiscreta em nossa cultura), e da forma incisiva da pesquisadora, respondi:

- Espírita.

Não quis render o assunto.

Na verdade, me considero mais estudioso espírita que pesquisador de espiritismo. A carreira de pesquisador demanda formação, produção continuada em uma determinada linha de pesquisa, publicação em periódicos revistos por pares, interlocução com os demais pesquisadores da área e domínio da literatura até então publicada sobre seus temas de pesquisa, para começar. Acho que atendo apenas parcialmente esses critérios.

Outra questão pertinente, que afeta não apenas a ciência da religião, mas a ciência política e as outras ciências humanas e sociais, é a distinção entre o pesquisador e o religionário [2]  ou o cientista e o apologista de uma religião [3]. A questão não se reduz aos métodos empregados (o religionário pode usar métodos experimentais, observacionais, hermenêuticos e fenomenológicos de pesquisa), mas compreende também, como destacaria Kuhn, o diálogo com uma comunidade de cientistas da mesma área e o debate teórico (que envolve a apreensão de teorias explicativas concorrentes e uma argumentação racional).

Esta questão implica que as pessoas que estudam um determinado tema, devem ser capazes de certo afastamento dele, mas não há fronteiras rígidas sobre quem pode ou não estudá-lo. O cientista político precisa ser apolítico para ingressar nesta área do conhecimento? Quem estuda o feminino, precisa ser homem (para não estar imiscuído na condição do gênero) ou mulher (para ser capaz de identificar as idiossincrasias e valorizar as lutas do gênero)? Seria, portanto, um impedimento para um católico estudar o catolicismo e para um espírita estudar o espiritismo? 

Obviamente que não. Não há qualquer objeção para um paciente renal estudar medicina e tornar-se nefrologista. Não há questão de gênero relacionada à escolha pela ginecologia. Há, por outro lado, cuidados com o envolvimento emocional em questões da produção de conhecimento. 

Meu professor de Filosofia, Carlos Drawin, dizia que estamos imersos no positivismo. E essa distinção rigorosa entre religião, filosofia e ciência, com demérito das duas primeiras, é uma das propostas de Auguste Comte.

Não se advoga também ceticismo (radical) ou agnosticismo como cuidados para se fazer ciência da religião, posto que são posições pré-estabelecidas com relação à religião, em igual perspectiva à crença. Não importa, em física, se o cientista acredita ou não na “teoria das cordas”, ele não é obrigado a fazer uma declaração de fé (ou de isenção) para produzir conhecimento. É necessário que seu envolvimento não seja tão emocional que venha a perturbar sua avaliação, mas alguma crença na capacidade de explicação de sua teoria é até necessária para que ele se engaje no projeto de pesquisa.

A isenção não é uma atitude dada a priori, mas uma atitude que o pesquisador desenvolve, comprometendo-se a avaliar os diversos pontos de vista sobre seu objeto (ou sujeito) de pesquisa e a concluir a partir da força das evidências encontradas, da lógica empregada e de outros elementos que não a sua opinião anterior à pesquisa. O processo de pesquisa é um caminho para a construção de um conhecimento novo ou do qual o conhecimento antigo sai ainda mais confirmado.

A pergunta de Marion, portanto, poderia ter sido respondida diferentemente: sou um pesquisador que é, ao mesmo tempo, adepto do espiritismo, da mesma forma que um militante de qualquer partido político pode se tornar um cientista político (e os tínhamos na UFMG).

Bem, após ter exigido uma declaração de fé, a autora me escreveu uma dedicatória gentil: 

“Para Jáder, esse livro que mostra o estreitamento das nossas duas culturas através da crença espírita. Rio, 31/07/2015”


[1] AUBRÉE. Marion; LAPLANTINE, François. A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil. Maceió, EDUFAL, 2009. Traduzido por Maria Luíza Guarnieri Atik e outros.
[2] Do inglês religionist.
[3] CRUZ, Eduardo. Estatuto epistemológico da ciência da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.) Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013. p.47.

7.5.20

COMO PREPARAR UM EXPOSITOR PARA A CASA ESPÍRITA?


Palestra de Raul Teixeira em Austin - 2010

Uma questão em aberto nas casas espíritas é a formação das pessoas que trabalham voluntariamente como expositores espíritas em reuniões públicas. Há muitos centros espíritas que organizam uma agenda de estudos diária, ou de diversas vezes ao dia, propõem títulos ou assuntos sobre os quais se deve falar e não consideram se têm ou não expositores preparados para a realização da tarefa. Os dirigentes das reuniões têm as seguintes opções: fazer eles mesmos as palestras, buscar fora do centro espírita ou identificar no centro espírita pessoas que gostam e têm facilidade para falar, para fazer as conferências.

Nesse verdadeiro “ensaio e erro”, de se convidar pessoas desconhecidas para fazer estudos, começam a acontecer os “acidentes de percurso”. Alguns dirigentes ainda consultam amigos estudiosos da doutrina espírita em busca de referências sobre os possíveis expositores, o que não deixa de ser um avanço, mas ao mesmo tempo é um risco, porque vejo muitos estudiosos que não assistem palestras nas casas espíritas e, por isso, não conhecem os “novos valores”, ou fazem juízo apenas por uma palestra ou um estudo que viram. Essa espécie de “telefone sem fio” deveria ser apenas um ponto a mais para identificar expositores talentosos ou promissores, mas se corre o risco de, diante de um dia infeliz, que qualquer um de nós tem, um potencial palestrante ser injuriado pela rede subterrânea.

Algumas instituições de Belo Horizonte-MG fizeram listas de expositores, mas não sei como foram escolhidos e como são atualizadas. Há listas com alguma sofisticação, nas quais se identifica os dias disponíveis e os assuntos de domínio do expositor. Embora úteis, sempre fui crítico dos expositores itinerantes, aqueles que falam em todos os lugares mas não são de lugar nenhum, que não têm outros vínculos com os que o assistem e, muitas vezes, nem em quem o convida. Nada contra ter convidados, eles deveriam ser a exceção e não a regra, sob o risco extremo de termos uma casa espírita formada exclusivamente por frequentadores e "captadores" de expositores, ou seja, onde ninguém está habilitado a ensinar o espiritismo.

Em nossa casa, durante algum tempo, os expositores que iam a público foram avaliados de forma anônima e individual por algumas pessoas que assistiam à reunião, eram reconhecidas por sua sensatez e nenhum extremismo, e que preenchiam um “check list” rápido de itens, podendo fazer comentários igualmente rápidos. Eu sempre queria o resultado coletivo dessas avaliações, sem identificação dos expositores, que me dava alguma informação sobre o que melhorar nesta tarefa, mas também esse instrumento é limitado, uma vez que atender os critérios de itens como pontualidade, por exemplo, não assegura, por si, um trabalho bem feito. E o número de itens enumerados, não assegura uma avaliação completa, compreensiva, que teria uma natureza qualitativa.

Vi também muitos cursos de “expositores espíritas”, que tinham por núcleo o ensino de “técnicas de oratória”, o ensino de didática, ou de estratégias de ensino-aprendizagem. Eles têm sua utilidade, desde que não queiram “formatar um expositor”. Há muitas formas válidas e diferentes entre si de expor ou ensinar o espiritismo, e muitas personalidades diferentes. Algumas pessoas sabem contar histórias, outras falam prendendo a atenção, algumas explicam com clareza, outras usam com maestria os recursos áudio visuais, algumas usam bem o humor em sua fala, outras dialogam bem com o público e há quem consiga usar técnicas de grupo em públicos de até cem pessoas, sem prejudicar o tempo. Uma coisa é certa: todos nós temos limitações. A essência desses cursos, além de dar sugestões de aperfeiçoamento, deveria explorar a identificação e desenvolvimento de competências dos participantes, para que eles se conheçam e façam melhor o que têm potencial para fazer bem. O mero estudo da técnica oratória ou didática não assegura o conteúdo. Pode-se falar tolices muito bem, e deixar as pessoas com a sensação de que passaram um momento ótimo, sem perceberem que aprenderam coisas esdrúxulas.

Outra coisa que me auxiliou nesse percurso foi a crítica de pessoas que eu respeitava, como estudiosos da doutrina e expositores experientes. Eles tiveram a caridade de me procurar em particular e expor pontos que eu poderia modificar ou melhorar. Algumas críticas se baseavam em uma forma muito pessoal de ver o trabalho de exposição, mas outras eram muito perceptivas e bem fundamentadas. Há o que conseguimos melhorar e o que não conseguimos, paciência.

Em um seminário que fiz recentemente, uma das participantes percebeu que minha esposa desempenhava esse papel, às vezes fazia sinais quase imperceptíveis de sugestões para o que eu falava ou como eu falava. Ela me procurou no intervalo e me disse, de forma amigável e bem humorada: 

- Ela é a sua “Joanna de Ângelis”, não é? Só que encarnada...

Juselma Coelho

Nas reuniões de quintas-feiras, dirigidas por Juselma Coelho em nossa casa, vi uma prática formadora muito interessante. Havia pessoas que frequentavam há muito tempo a reunião e que foram se sentindo à vontade com o grupo, a casa e a doutrina. Ela pedia que as pessoas lessem em casa um texto pequeno e o expusessem por quinze minutos, no início da reunião. Assim, em um lugar secundário, a pessoa ia desenvolvendo suas competências de expositor, protegida dos erros e do lugar central do estudo da noite.

Penso que todo espírita deveria ter uma visão do espiritismo como um todo. Conhecer as teorias que formam o espiritismo, sua fundamentação, os autores principais e até mesmo as polêmicas, sem se esquecer da história do espiritismo. Não dá para pensar em um expositor que não tenha esse tipo de conhecimento como um pré-requisito para a plena realização de sua tarefa. Como alguém vai expor algo que desconhece? Uma forma que a Federação Espírita Brasileira tem incentivado nas casas espíritas é o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita – ESDE e sua sequência, o Estudo Avançado da Doutrina Espírita - EADE. Penso que esse é um espaço interessante para se desenvolver competências de expositor, uma vez que é um lugar menos formal, com a presença de responsáveis pelo estudo, em que as pessoas podem preparar algo e apresentar, em um ambiente participativo. Aí cada um vai percebendo se a exposição espírita é uma atividade que as desafia, agrada e que podem fazer bem.

Vendo como a formação dos expositores espíritas é informal, e muitas vezes inexistente, passo a pensar como seria o futuro. Surgiram algumas faculdades oferecendo cursos de teologia espírita, embora todos saibamos esses cursos não se destinam a formar profissionais para um mercado, já que toda modalidade de ensino ligada ao espiritismo tem sido voluntária, pelo menos nos centros espíritas. Espero que não haja profissionalização desses trabalhadores, como no movimento espiritualista moderno dos países de língua inglesa, em que pese algumas iniciativas de seminários pagos de professores que tratam de temática espírita.  

Além das experiências citadas continua havendo um desafio para as instituições espíritas, e até mesmo diante de uma tendência de mudanças que hora acontecem, como a educação à distância e as novas tecnologias. Elas, ao mesmo tempo em que são capazes de levar ao mundo o trabalho de um estudioso local, acabam colocando milhares ou milhões de publicações, tornando-as de difícil acesso. Considerando que se constrói uma relação de confiança com um expositor com o tempo, é muito possível que um trabalho de qualidade fique na rede sendo acessado apenas por amigos e colegas, assim como livros que autores desconhecidos publicam. Outro problema também é preparar os expositores para essa nova mídia. Uma boa exposição feita presencialmente, pode ser inadequada a esse novo formato, porque a relação do “navegador” com as mídias é diferente da do assistente na sala ou auditório presencial, a começar do vínculo emocional e do comportamento esperado quando se está no meio de outras pessoas.

Como preparar os expositores então? Como desenvolver suas competências? Quais são suas competências e para quais contextos? O que deve conhecer um expositor para fazer seu trabalho de forma bem fundamentada? Estas perguntas continuam em aberto, espero que o texto, grande para um blog, seja um incentivo para pensarmos de forma mais substancial sobre a questão. Fale um pouco de sua experiência e contribua com o debate.

3.5.20

REVISÃO DO CRISTIANISMO: A HERANÇA MÁGICA

Capa antiga do livro "Revisão do Cristianismo"


Herculano Pires não escolheu arbitrariamente o título de seu livro. Na história, o revisionismo é um “reexame crítico de fatos históricos presumidos e da historiografia existente.” Ele pode surgir do uso de novas fontes (por exemplo, o conhecimento do cristianismo primitivo após a descoberta de novos documentos em Qmram e Nag Hammadi), novas perspectivas ou visões (por exemplo, a história da escravidão da ótica dos escravos), pela mudança do zeitgeist (em um tempo diferente o historiador pode valorizar o que era considerado pouco importante por gerações passadas, por exemplo, a questão de gênero na história) ou mesmo pelo surgimento de novos conhecimentos científicos (o surgimento da técnica de datação a partir do carbono 14 alterou, por exemplo, muito do que se afirmava sobre história natural e sobre objetos atribuídos a personalidades históricas). Ele se propõe a fazer revisões do conteúdo e das formas que o cristianismo assumiu com o passar da história. 

No capítulo 3 do livro Revisão do Cristianismo, ele busca rever o que entende ser uma herança dos tempos da magia no cristianismo. Por magia não se entendam as bruxas da idade média, ou os textos de Papus no século 19, mas uma prática de sociedades ditas primitivas. Ele mesmo a descreve como o uso de palavras, objetos e ritos com base na crença de que atuem de forma misteriosa na matéria. A magia pressupõe um poder oculto às pessoas, mas conhecido e dominado por iniciados. Herculano explica assim o emprego de palavras, ritos e objetos mágicos: “A magia das palavra socorria a escassez do saber.” (p. 14)

A representação do mago em cartas de Tarô. Há semelhanças entre o mago e o padre na missa.

Na revisão do cristianismo uma das propostas de Herculano é retirar todos os elementos mágicos de suas palavras e práticas. Ele entende que a proposta de Jesus de Nazaré para a religião é completamente espiritual, nada exterior e nada mágica.

Onde se veria magia mesclada à prática cristã? O autor dá vários exemplos: 

- Na analogia entre o sangue do cristo e o sangue redentor dos sacrifícios de animais realizados pelo judaísmo de sua época;

- no uso de objetos considerados sagrados, como cruzes, medalhas, escapulários, bentinhos, rosários, fitas, velas, véus, paramentos, cálices e outros; (p. 14)

- no batismo, como rito de passagem, e no emprego de água e sal (mesmo simbólico) na criança;

- Em outros ritos de passagem que foram introduzidos sob a forma de cerimônias, como o matrimônio religioso (que não existia nem na cultura judaica), a crisma e a extrema-unção com seus óleos;

- na hóstia consagrada, que se supõe transubstanciada (ou mesmo consubstanciada, se entendido como união mágica entre a farinha de trigo e o corpo de Cristo) ou transformada no corpo de Jesus de Nazaré, que o crente ingere;

- e quando um padre diz a um crente: “Seus pecados estão perdoados”.

Diversas outros exemplos, da ordem do ritual, das promessas de curas e dos objetos sagrados merecem ser revistos, para que o cristianismo seja visto como algo espiritual, próprio ao sujeito, e não algo mágico, concepção que teria sido construída aos poucos, após o cristianismo primitivo, com a finalidade de fazer com que uma população de mentalidade mágica e mítica aceitasse o cristianismo como identidade.

Parece algo básico, mas ainda nos dias de hoje, no meio espírita, algumas pessoas vindas de outras tradições religiosas ou espiritualistas, que não refletiram a diferença entre magia e espiritualidade, desejam realizar sincretismos, que as façam relembrar ou reviver experiências vividas algures, como uma casa espírita que fazia um momento eucarístico com pão e vinho, aos moldes da prática católica, como relatou meu pai em viagens feitas ao interior mineiro para a divulgação do espiritismo.