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12.5.20

AUBRÉE E A QUESTÃO DO RELIGIONÁRIO

Marion Aubrée

Há cinco anos ajudei a organizar o 1º Encontro de Cultura e Pesquisa Espírita – XII Colóquio França-Brasil, que aconteceu no auditório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Acabei ficando de “organizador fantasma”, porque o voo para o Rio atrasou e não pude participar da mesa de abertura, e nenhum dos trabalhadores do evento me reconhecia como tal. 

Tive, contudo uma experiência curiosa com a Dra. Marion Aubrée, coautora do livro “A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil”[1]. 

Sabendo da sua presença, levei um exemplar de seu livro, já esgotado em português, para ela autografar. Eu tenho uma coleção de livros autografados pelos respectivos autores e o momento de colher a dedicatória e assinatura, ainda que breve, é a oportunidade de conversar com quem lemos.

Levei o livro até ela, que para minha surpresa, me perguntou:

- Você é pesquisador ou espírita?

Diante do inusitado da questão (considerada indiscreta em nossa cultura), e da forma incisiva da pesquisadora, respondi:

- Espírita.

Não quis render o assunto.

Na verdade, me considero mais estudioso espírita que pesquisador de espiritismo. A carreira de pesquisador demanda formação, produção continuada em uma determinada linha de pesquisa, publicação em periódicos revistos por pares, interlocução com os demais pesquisadores da área e domínio da literatura até então publicada sobre seus temas de pesquisa, para começar. Acho que atendo apenas parcialmente esses critérios.

Outra questão pertinente, que afeta não apenas a ciência da religião, mas a ciência política e as outras ciências humanas e sociais, é a distinção entre o pesquisador e o religionário [2]  ou o cientista e o apologista de uma religião [3]. A questão não se reduz aos métodos empregados (o religionário pode usar métodos experimentais, observacionais, hermenêuticos e fenomenológicos de pesquisa), mas compreende também, como destacaria Kuhn, o diálogo com uma comunidade de cientistas da mesma área e o debate teórico (que envolve a apreensão de teorias explicativas concorrentes e uma argumentação racional).

Esta questão implica que as pessoas que estudam um determinado tema, devem ser capazes de certo afastamento dele, mas não há fronteiras rígidas sobre quem pode ou não estudá-lo. O cientista político precisa ser apolítico para ingressar nesta área do conhecimento? Quem estuda o feminino, precisa ser homem (para não estar imiscuído na condição do gênero) ou mulher (para ser capaz de identificar as idiossincrasias e valorizar as lutas do gênero)? Seria, portanto, um impedimento para um católico estudar o catolicismo e para um espírita estudar o espiritismo? 

Obviamente que não. Não há qualquer objeção para um paciente renal estudar medicina e tornar-se nefrologista. Não há questão de gênero relacionada à escolha pela ginecologia. Há, por outro lado, cuidados com o envolvimento emocional em questões da produção de conhecimento. 

Meu professor de Filosofia, Carlos Drawin, dizia que estamos imersos no positivismo. E essa distinção rigorosa entre religião, filosofia e ciência, com demérito das duas primeiras, é uma das propostas de Auguste Comte.

Não se advoga também ceticismo (radical) ou agnosticismo como cuidados para se fazer ciência da religião, posto que são posições pré-estabelecidas com relação à religião, em igual perspectiva à crença. Não importa, em física, se o cientista acredita ou não na “teoria das cordas”, ele não é obrigado a fazer uma declaração de fé (ou de isenção) para produzir conhecimento. É necessário que seu envolvimento não seja tão emocional que venha a perturbar sua avaliação, mas alguma crença na capacidade de explicação de sua teoria é até necessária para que ele se engaje no projeto de pesquisa.

A isenção não é uma atitude dada a priori, mas uma atitude que o pesquisador desenvolve, comprometendo-se a avaliar os diversos pontos de vista sobre seu objeto (ou sujeito) de pesquisa e a concluir a partir da força das evidências encontradas, da lógica empregada e de outros elementos que não a sua opinião anterior à pesquisa. O processo de pesquisa é um caminho para a construção de um conhecimento novo ou do qual o conhecimento antigo sai ainda mais confirmado.

A pergunta de Marion, portanto, poderia ter sido respondida diferentemente: sou um pesquisador que é, ao mesmo tempo, adepto do espiritismo, da mesma forma que um militante de qualquer partido político pode se tornar um cientista político (e os tínhamos na UFMG).

Bem, após ter exigido uma declaração de fé, a autora me escreveu uma dedicatória gentil: 

“Para Jáder, esse livro que mostra o estreitamento das nossas duas culturas através da crença espírita. Rio, 31/07/2015”


[1] AUBRÉE. Marion; LAPLANTINE, François. A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil. Maceió, EDUFAL, 2009. Traduzido por Maria Luíza Guarnieri Atik e outros.
[2] Do inglês religionist.
[3] CRUZ, Eduardo. Estatuto epistemológico da ciência da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.) Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013. p.47.

4 comentários:

  1. Muito interessante, tanto sua descrição do fato como as observações a respeito de pesquisa e isenção.

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  2. Seu texto é muito interessante! E mostra bem uma realidade constante nas Ciências Humanas, embora as outras ciências (exatas / biológicas) tenham também pertinência nesta questão.
    Na psicologia isto também pode acontecer.
    Conheci uma médium que fazia terapia por questões pessoais com uma psicóloga que achava uma loucura ou produto mental tudo o relacionado a espíritos, mediunidades, etc, e as questões pessoais da médium também envolviam a mediunidade, então era uma relação muito estranha. Bem, é uma questão que há muitos livros sobre isto, mas é bom que você toque nesta questão no universo do movimento espírita, para ficar claro que a isenção positivista é uma quimera. Abraços

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  3. É curioso, porque mesmo que a psicóloga não aceitasse a existência de espíritos, pessoalmente, nos dias de hoje ela deveria entender a prática da mediunidade como cultura. Assisti uma palestra do psiquiatra que inseriu cultura, espiritualidade e religiosidade como elementos distintivos na avaliação psiquiátrica (DSM-IV e DSM-V), ou seja, não devem ser confundidos com psicopatologia. Trata-se do Dr. Francis Lu, dos Estados Unidos. Não posso dizer ao certo, com base na sua narrativa, o que fez minha colega, mas independente da orientação terapêutica, distinguir cultura, espiritualidade e religiosidade de psicopatologia é muito importante para a prática clínica.

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