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3.7.20

KARDEC E HUSSERL: UM ANACRONISMO?





Publiquei no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia” um artigo no qual faço analogias entre os métodos da fenomenologia de Edmund Husserl e, bem pouco, da hermenêutica de Schleiermacher, aos trabalhos de Kardec[1]. Como Husserl é posterior a Kardec, cabe a pergunta: terei incorrido em anacronismo?

O meu companheiro Houaiss define anacronismo, no significado mais próximo que estamos empregando, como “erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra época, ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de uma época a que não pertencem”.

Edmund Husserl começou a elaborar sua fenomenologia no início do século 20, décadas depois da desencarnação de Allan Kardec. Seguramente, Kardec não conhecia, nem leu Husserl, sendo impossível que os textos do autor alemão tivessem sido manuseados pelo fundador do espiritismo. Qual é o nexo entre estes dois autores que entrevimos em nosso trabalho?

Independente da questão da existência ou não dos espíritos, Allan Kardec decidiu estudar não apenas os fatos supostamente provocados por eles sobre a matéria, mas também o seu discurso através dos médiuns. As influências filosóficas de Kardec em sua época, que pretendeu dar um tratamento científico aos estudos que fez e aos dados que obteve, faziam uma clivagem entre ciência e filosofia. O positivismo de Comte, por exemplo, só considerava científico o que se referisse ao estudo da matéria e que compusesse uma explicação associativa entre acontecimentos materiais, cuja plena generalização era chamada de “lei”. A filosofia tornou-se serva desta forma de fazer ciência, muito bem-sucedida nos domínios das ciências naturais (física, química e biologia, com uma base matemática para a constatação das associações).

Allan Kardec, no entanto, não tinha acesso direto ao “mundo espiritual”, nem à “realidade espiritual” que desejava estudar. Assim como um psicólogo, ele precisava formular suas teorias sobre os espíritos, com base quase exclusiva naquilo que lhe diziam os médiuns. Pode-se dizer, portanto, que ele se propôs a estudar o discurso produzido pelos médiuns antes da formulação da psicologia como ciência e seus métodos, o que vai acontecer a partir da década seguinte à desencarnação do fundador do espiritismo.

Para fazer seu trabalho, ele teve que antecipar métodos que seriam elaborados futuramente pelas chamadas ciências humanas, e ainda sem autores que tratassem desse tipo de metodologia. Um exemplo que temos foi o chamado “controle universal do ensino dos espíritos”, que ele descreve na introdução de “O evangelho segundo o espiritismo”.

Na falta de instrumentos que permitissem a observação ou experimentação direta do mundo espiritual, Kardec tem por base de informação aquilo que os espíritos dizem através dos médiuns. Todavia, ele conhece as limitações da mediunidade, que estudou. Nem tudo o que é dito pelos médiuns é de origem espiritual, eles podem misturar suas próprias ideias aos conteúdos espirituais. Nem tudo o que é dito pelos espíritos pode ser considerado verdadeiro, porque alguns ignoram sua própria condição e estado, outros creem saber mais do que realmente sabem, e dão explicações fantasiosas para explicar suas experiências, outros ainda apresentam conhecimentos compreensíveis e racionais, tendo noção dos limites de sua capacidade de explicação. Allan Kardec pretende, então identificar esses últimos, distingui-los dos demais, e situar a doutrina espírita circunscrita ao que eles dizem e que pode ser verificado com o discurso obtido através de outros médiuns que desconheciam o que foi dito sobre o tema em estudo.

No parágrafo acima temos dois princípios de pesquisa similares aos que propôs Husserl futuramente. O primeiro é que ele sabe que não vai estudar diretamente os espíritos, nem o mundo espiritual. Ele vai estudar indiretamente, a partir do conteúdo do que dizem os médiuns. Em fenomenologia, se diz que se estuda a “consciência da realidade”, e não diretamente um objeto natural. Kardec estudou a “consciência da consciência da realidade”, ou seja, o que o médium interpreta sobre o discurso de um espírito sobre o mundo espiritual.

O segundo princípio similar é o da busca de explicações espirituais semelhantes, produzidas por espíritos capazes, através de diferentes médiuns, que de preferência não conhecem uns aos outros. Husserl denomina isso de “redução eidética”, a busca das essências, aquele conteúdo apreendido pela intuição do pesquisador após investigação fenomenológica com diversos sujeitos, cujos elementos centrais do discurso são similares. É com esse material que Kardec formula a doutrina espírita, ou, em linguagem científica, a teoria espírita.

Como Husserl, Kardec aceita que essa primeira formulação não é a definitiva. Novas incursões em relatos mediúnicos podem ser feitas e novos pontos podem ser encontrados, o que evita a “cristalização” do pensamento Kardequiano mas exige “integração” entre o já conhecido e o novo.

Essas semelhanças, entre outras, nos levaram a crer que, estudando “pessoas desencarnadas”, Kardec teve que sair das estritas proposições das ciências naturais, para adentrar um campo de pesquisa novo, fundamentado nos discursos mediúnicos e não exclusivamente na observação de fatos. Por essa razão, pela inexistência de uma epistemologia de ciências humanas na época de Kardec, não encontramos em seu texto senão uma tentativa de adaptação daquilo que se conhecia das ciências naturais para a explicação de sua metodologia pessoal de trabalho. Não há anacronismo nessa afirmação. O que dizemos, é que coisas como o “controle universal” não podem ser explicados com uma epistemologia de ciências naturais, que se constituíram em ruptura ao racionalismo (caro a Kardec), ao idealismo e a outras formas de busca da verdade no contexto filosófico. O que existe, portanto, é uma prática de pesquisa concreta, descrita ao longo do trabalho de Allan Kardec, sem termos epistemológicos vigentes em sua época, capazes de a explicarem de forma semelhante ao que fazia Lavoisier, Le Verrier e outros cientistas da natureza, de sua época.

O filósofo e psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920) ficaria conhecido por demarcar, em 1873, a criação de uma nova ciência em seu livro “Princípios de Psicologia Fisiológica, no qual situa a psicologia no domínio das ciências naturais. Ele tinha uma dupla formação:  médico e filósofo (as duas origens da Psicologia nascente do século 19). Seu discípulo, Titchener (1867-1927), iria propor como objeto de estudo da psicologia a investigação dos fenômenos “com base na experiência e observação pessoal”, denominando sua escola como estruturalismo. Ambos fazem ciência com base na consciência, assim como Allan Kardec, embora suas contribuições mais conhecidas envolvam bastante os pontos de contato entre o físico-biológico e o mental. A psicologia como área de conhecimento autônomo, portanto, ficou registrada na história após Allan Kardec.

Kardec não anteviu a fenomenologia, e nem poderia fazê-lo, mas trabalhou com o objeto das ciências humanas em um tempo que elas ainda não estavam formalizadas, e desenvolveu métodos próprios que depois o filósofo alemão explicaria com uma proposição ainda mais ampla de pesquisa.




[1] Sampaio, Jáder. Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas. In: Sampaio, J., Da Fonseca, A. F., Milani, M. O espiritismo, as ciências e a filosofia. São Paulo: CCDPE-ECM e LIHPE, 2014.

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