Ontem fizemos uma exposição sintética do livro “Revisão do cristianismo” a convite da Fundação Maria Virgínia e Herculano Pires (https://www.youtube.com/watch?v=eIB1YtN75gg). Dentre as muitas coisas que Herculano convida a rever no cristianismo, um grande conjunto delas tem um impacto muito grande sobre o nosso entendimento dos ensinamentos do mestre galileu: os mitos.
Influenciado pelo convite Kardequiano de analisar racional e historicamente os evangelhos e documentos dos primeiros cristãos, Herculano mergulhou nas reflexões que os autores do final do século 19 e início do século 20 fizeram a partir de uma mudança de atitude na pesquisa da história do cristianismo. Em vez de fazer uma história atrelada à teologia, autores como Guignebert trabalharam na desvinculação das duas e na construção de uma história baseada na historiografia da época, nas descobertas arqueológicas, na limitada documentação ainda existente, e na comparação do cristianismo com outras religiões, ou seja, concebendo-o como uma religião e não como a religião.
Na medida em que o cristianismo deixa de ser contado como uma “vinda de Deus à Terra” e passa a ser visto como um movimento dos homens, algumas ideias até então interditas ao historiador do cristianismo começam a ser percebidas.
Uma delas é bem simples: os evangelhos não foram feitos a partir do registro exato do que disse Jesus e de sua preservação para o futuro. Os discípulos de Jesus o conheceram e ouviram o que ele ensinava. Com a morte e a percepção de Jesus após a desencarnação, os discípulos entenderam que a mensagem dele deveria ser divulgada, e começaram a ensinar, primeiro aos judeus e depois a todos os que se interessassem, o que eles se recordavam ou entenderam que havia sido ensinado.
Dos evangelistas que eram alfabetizados, talvez Mateus tenha feito anotações de suas memórias, sob a forma de logia, frases ou pequenos períodos encadeados. Hoje os historiadores propõem que o evangelho de Marcos teria vindo da tradição de Pedro, ou seja, João Marcos, ou os hagiógrafos que escreveram o texto desse evangelho, teriam ouvido e escrito os ensinamentos cristãos cuja tradição remonta ao pescador de Cafarnaum.
Além de não serem registros históricos, de serem textos posteriores às cartas de Paulo, e de serem registros de ensinos orais dos discípulos, concluídos anos ou décadas após o episódio do Gólgota, é bem possível que estejam entremeados com mitos judaicos ou pagãos, é o que reflete Herculano Pires ao longo do seu livro.
O mito não é, em si, uma falsidade, uma irrealidade, como nos explica o filósofo paulistano, mas uma proto-explicação ou explicação não racional, que se origina no interior da alma humana. Enxergar Jesus como o messias, o “ungido”, aquele que veio salvar o povo hebreu da escravidão e associá-lo aos sinais entrevistos na leitura e interpretação dos profetas, seria uma primeira “tentação” dos apóstolos ou dos que participaram da redação dos textos que posteriormente foram escolhidos para compor o Novo Testamento.
Herculano não se propõe a separar o mito da narrativa nos evangelhos, mas faz algumas análises. Ele entende que boa parte da natividade pode ser mítica, porque apresenta eventos improváveis e que “ajustam” a figura de Jesus à do messias. O nascimento em Belém, por exemplo, o “censo” que exigiria que os habitantes saíssem de suas cidades para as cidades onde nasceram, a declaração de morte das crianças por Herodes, a estrela de Belém que guia os Reis magos e a fuga para o Egito fazem parte dessa mitologia tardia inserida nos evangelhos. Herculano busca mitologemas semelhantes em outras religiões da época para mostrar que é possível que tenha havido uma interpolação de mitos e histórias sagradas na história de Jesus para que ele pudesse ser considerado o messias dos Judeus ou um Deus para os gregos ou romanos. A partir do século quarto, muitos elementos do paganismo irão ser empregados pelas comunidades cristãs para que seus concidadãos aceitem mais facilmente o prestígio do cristianismo junto ao Imperador Constantino, até tornar-se religião oficial do império romano, décadas depois.
Não seria demérito que Jesus tivesse nascido em Nazaré, filho de Maria e José, com irmãos e tivesse vivido no lar de um carpinteiro. Mais humano, ele se torna mais extraordinário aos nossos olhos, porque nessas condições desfavoráveis ele se torna capaz de interlocução com os estudiosos de sua cultura e de sua época, e é capaz de elaborar uma proposta de ser humano, de vida e de sociedade completamente diferente daquilo que existia e que se vivia em seu tempo. Cercado por socidades que "naturalizaram" a instituição da escravidão, por exemplo, Jesus propõe tratarmos a todos como pessoas, filhos do pai. É uma concepção além do tempo e do lugar em que Jesus viveu, além das escrituras judaicas e, incomodamente possível.
Essa abordagem racional e histórica não nos leva a desvalorizar os evangelhos, as cartas dos apóstolos e os documentos que os cristãos produziram nos primeiros séculos, mas exige uma leitura crítica, um olhar histórico, capaz de entender que o texto, quando se aproxima do mito, não é um conjunto de “verdades ocultas” cujas alegorias devem ser descobertas pelo leitor, mas uma expressão vívida dos ensinos de Jesus, a par com o desejo de reconhecimento do mestre pela sociedade da época por seus apóstolos e discípulos.
A proposta de Herculano é intelectualmente corajosa, porque é revisionista não só do cristianismo das igrejas, mas por propor aos espíritas uma atitude mais racional no que tange ao estudo dos evangelhos. Concordando ou não com Herculano Pires, o livro merece ser estudado, debatido e entendido por nós sem a pretensão de verdade absoluta, mas com a pretensão de rigor e honestidade intelectuais.
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