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23.3.18

ABSTENÇÃO DE CARNE NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO


Família


Chegamos ao interior de Minas Gerais em plena sexta-feira da paixão. Nos anos 1950, mais de 90% da população brasileira era católica e os ritos e recomendações eclesiásticos eram seguidos. Neste feriado eram fechados quase todos os estabelecimentos das cidades, e era amplamente difundida a abstenção do uso de carnes vermelhas e de aves.

O movimento da cidade se parecia com o de um sábado normal, com o comércio aberto e os bancos e escolas fechados. Os ovos de chocolate tiveram um ano tímido e amargo. Os problemas com a economia e a esperança de conseguir uns trocados foram maiores que o apelo da fé e o ambiente de silêncio respeitoso pela lembrança da crucificação do Rabi tornado deus pelos interesses dos imperadores romanos do século IV.

Meu sogro sempre nos conta uma história do passado, com um tom um pouco maroto, no qual ele e os amigos, na juventude, combinaram com o dono de um pequeno restaurante do interior preparar carne de boi. O dono se recusou, mas aceitou recebê-los no botequim após a meia noite. Na hora combinada, eles foram chegando, aos poucos, abrindo a porta encostada e se assentando para consumir a iguaria. Só depois da meia noite se ouvia o chiado da carne sendo passada e os amigos felizes, prestes a consumir uma ceia inesperada. Roma locuta, causa finita.

A abstenção da carne

A abstenção do consumo de carnes na sexta-feira da paixão é uma orientação da igreja católica. Procurei as origens desta prática, mas não encontrei nada conclusivo. O consumo de peixes (e em uma fonte encontrei também outras carnes de animais como rãs, ostras, etc.) é justificado por alguns autores em função da etimologia latina da palavra, que vem de carnis, e que seria empregada apenas para animais de sangue vermelho. Portanto, nesta acepção, a abstenção de carne não atingiria peixes, anfíbios e répteis. O blog Aleteia[1] dá outra explicação. Diz tratar-se de proibição das carnes de animais criados sobre a terra (incluindo aves...) e destaca que as carnes eram usadas como objeto de celebração (o bezerro cevado, da parábola do filho pródigo, por exemplo), não sendo correto celebrar-se a sofrida morte de Jesus.

A explicação mais comum é que se trataria de uma espécie de privação voluntária, com a intenção de recordar o sofrimento de Jesus, da via dolorosa ao falecimento na cruz. Na idade média a carne vermelha seria um alimento nobre e caro, e sua abstenção tem o sentido de renúncia. Hoje, a industrialização tornou as carnes bem mais acessíveis, especialmente em nosso país, onde ela é muito produzida. Há carnes vermelhas de preços muito variados, ao mesmo tempo em que peixes e derivados podem ser bem sofisticados e caros. Imagine um cristão que se abstém de carne e consome caviar, em seu lugar, ou um corte importado de bacalhau. A prática exterior, portanto, perdeu seu sentido original.

O consumo de bacalhau no Brasil parece vir da culinária portuguesa, já que em outros países não há qualquer recomendação do uso desta forma de preparo de peixe e a abstenção da sexta-feira da paixão. Ouvi rumores que havia interesses econômicos da Igreja por detrás da recomendação do consumo de peixes, mas não encontrei nenhum registro disto.

Nem no templo, nem no monte

Quanto mais estudamos, mais se vê que a abstenção do uso de carnes foi perdendo seu sentido original e seu contexto. É o risco das práticas exteriores, que se tornam uma espécie de costume vazio do seu significado original.

Para nós, espíritas, as práticas exteriores devem ceder lugar à interioridade. Para Jesus, também. Quando questionado pela mulher samaritana sobre as diferenças de culto exterior entre judeus e samaritanos[2] o mestre ensinou:

“Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:21-24)

Concluindo

A abstenção da carne, ato exterior, é pouco importante para os cristãos-espíritas. A data, e o feriado religioso, cada vez mais são usados para o descanso do trabalho, o lazer e o encontro com os familiares, assim como outras datas religiosas, cada vez mais vazias do significado religioso.

Uma vez que entendemos Jesus como modelo e mestre da humanidade, qual seria o nosso papel, como comunidade espírita, nesta e em outras datas? Em uma sociedade que vive cada vez mais em torno do dinheiro, do trabalho e do consumo, talvez haja uma oportunidade para recordar o Jesus que mostrou de forma marcante que a vida não se encerra na cruz do Gólgota e um incentivo para reunir-se a família.




[2] Os judeus, na época de Jesus, adoravam a Iavé no Templo de Salomão, em Jerusalém. Os samaritanos construíram um templo no monte Garizim (ou Gerizim) após o exílio, que teria sido destruído em 126 a.C., mas cujo local continuava sendo usado para sacrifícios e cultos. 


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