23.4.19

QUAL FOI O PRIMEIRO CENTRO ESPÍRITA DE MONTES CLAROS?



Conscientes da necessidade de preservação da memória do movimento espírita, alguns estudiosos têm tido a iniciativa de participar de instituições com essa finalidade e fazer comunicações de seus trabalhos.

Recebi de Wesley Soares Caldeira um artigo da revista do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros (Minas Gerais), no qual ele compartilha com o leitor suas pesquisas sobre a origem do espiritismo na cidade.

É um texto agradável, que explica o surgimento e o desenvolvimento de algumas das principais cidades do Norte de Minas Gerais e os olhares de autores famosos que lá estiveram, como Auguste de Saint-Hilaire.

Wesley nos mostra que a constituição de algumas das cidades pólo da região é contemporânea à publicação dos livros de Allan Kardec na França. A cultura regional é predominantemente católica e os evangélicos só chegariam a Montes Claros no século XX (Batistas em 1912 e Presbiterianos em 1945).

Dos iniciadores do espiritismo em Montes Claros, Wesley cita Augusto Dias de Abreu, ourives, que se mudou para a cidade em 1884 e que teve por filho Olympio Dias de Abreu, um dos primeiros espíritas de destaque.

"Augusto fundou o primeiro núcleo de estudos e vivência espírita da cidade, isso em 1885." (p. 99)

Caldeira encontrou em Nelson Vianna dois outros associados de Augusto. O primeiro é Eusébio Alves Sarmento, farmacêutico e também fundador da União Operária de Montes Claros entre diversas outras realizações. O segundo é o Capitão Daniel Pereira da Costa, comerciante, fazendeiro e Delegado de Polícia. Daniel desencarnou sem herdeiros e deixou seu vasto patrimônio para a Santa Casa de Misericórdia e para os moradores de rua da cidade, dissuadido que foi pelo tabelião de deixar os bens para uma sociedade espírita de São Paulo.

Wesley recuperou os nomes dos fundadores do primeiro centro espírita: Euzébio Sarmento, Augusto Dias de Abreu, Professor Cícero Pereira (muito conhecido na capital), Tenente Ulisses Pereira (PMMG?), Ezequiel Pereira e José Versiani dos Anjos. Eles teriam fundado o primeiro centro espírita (realmente espírita e não de cultos de matriz africana), que dissolveu-se posteriormente, "pelo falecimento de alguns e mudança de outros" (p. 102)

Fica ainda a dúvida para se vasculhar nos cartórios e jornais antigos: qual seria o nome desse centro espírita? Quando foi fundado? O que aconteceu com seu patrimônio, se é que tinha? Que atividades realizou? As novas questões para a continuidade da pesquisa estão sugeridas.

18.4.19

A PÁSCOA E OS ESPÍRITAS


Ícone de Barnabé

Um estudo que o Hermínio Miranda começou a fazer em vida e chegou a publicar diversos livros, foi sobre os cristãos primitivos. Como era o cristianismo nos primeiros séculos após a desencarnação de Jesus? Tenho estudado há algum tempo os escritos dos primeiros cristãos aceitos pela igreja e há um autor chamado Barnabé, que não é o colega de Paulo de Tarso em Antioquia, mas que se considera que seja um instrutor de Alexandria, que escreveu o seguinte sobre o jejum, que era palco de discussões entre os cristãos judaizantes e não judaizantes:

“... “Eis o jejum que eu escolhi”, diz o Senhor. “Desata todas as amarras da injustiça; desfaz as cordas dos contratos iníquos; envia os oprimidos em liberdade; rasga toda escritura injusta; reparte teu pão com os famintos; se vês alguém nu, veste-o; conduz para a tua casa os desabrigados; se vês algum pobre, não o desprezes; não te afastes dos membros de tua família. Então tua luz romperá pela manhã, tuas vestes rapidamente resplandecerão, a justiça irá à tua frente e a glória de Deus te envolverá. Então outra vez gritarás, e Deus te ouvirá. Ao falar, ele te dirá: Eis-me aqui!” (Carta de Barnabé, 3:3-5)

A posição dele é clara. Em vez de atos exteriores, rituais, justificados pela tradição, atos interiores, ações em consonância com as mais caras ideias do Cristo, como a caridade moral e material, atos de justiça social e de reconhecimento do próximo, do que foi abandonado pelo mundo.

Jesus se pronuncia diversas vezes sobre isso, nas querelas com os fariseus e saduceus, tão voltados à letra morta, às exterioridades, às aparências de santidade. Pessoalmente gosto muito do diálogo com a mulher samaritana. Jesus a encontra em um poço e dá mostras de ser profeta, de saber coisas sobre a vida dela, como os seus cinco maridos. Ela então lhe faz uma pergunta sobre a religião judaica, que era objeto de disputa entre judeus e samaritanos:

“Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde é necessário adorar. Jesus lhe diz: Crede em mim, mulher, porque vem a hora quando nem neste monte nem em Jerusalém adorareis ao Pai. (...) Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade. João 40:20, 21 e 24

Este é um primeiro ponto a se discutir sobre o espiritismo e a páscoa. Herdeiro de valores construídos na forja do cristianismo, a relação dos espíritas com a religião ou a religiosidade é essencialmente interior e pessoal.

A Deusa Eastre também marcava a primavera no hemisfério norte. 
Como estamos no sul, aqui seria o outono.

Contudo, vivemos em sociedade. Herdamos uma salada de tradições, algumas dos cultos de deuses antigos, outras judaicas, todas exteriores. O coelho da páscoa, que povoa nossas televisões e a fantasia dos pequenos parece ser oriundo do culto da deusa germânica Eastre. O ovo vem de uma história desta mesma deusa que transformou uma ave em lebre. O ovo está presente na ceia pascal dos judeus. O cordeiro vem dos sacrifícios aos deuses e do episódio pascal judaico, que recorda a saída do Egito, quando se matou um cordeiro e passou seu sangue nos umbrais das portas.

Todos esses símbolos foram reapropriados pelo catolicismo e foi-lhes dado um significado cristão, ou, melhor dizendo, católico. O cordeiro hebraico passou a simbolizar a morte de Jesus no calvário para tirar os pecados dos homens. Convenhamos, isso não faz o menor sentido para o pensamento espírita. Nosso maior interesse no calvário é a demonstração inconteste da vida após a morte e da mediunidade dos que perceberam Jesus, e reconheceram que ele nos ensinou que a vida não termina no túmulo.

Refeição de páscoa judaica

Como ficamos nós, espíritas, então? Resta-nos, portanto, duas coisas:

1. Pensar no sentido da imortalidade da alma e da mediunidade, que se mostram após a desencarnação de Jesus, o que podemos fazer em família ou nos centros espíritas.

2. Aproveitar o feriado para estar junto com a família. Não vejo problemas em trocarmos ovos de páscoa com nossas crianças, em escondermos os ovos para os pequenos acharem, em deixar marcas de talco que lembram pés de coelho, em pintarmos cascas de ovos, como os católicos ucranianos, nem em fazermos juntos uma refeição, mas que isso seja uma grande brincadeira, um daqueles momentos mágicos de acolhimento que os pequenos guardarão para a idade adulta e a vida, e não um ato religioso (para que não fique dúvida, o centro espírita não é o local adequado para isso). 

Penso até que podíamos nos lembrar das “crianças sem ovos de páscoa”, das pessoas sem família, sofrendo de solidão, e abrir nossas portas a elas, ou visitá-las durante a páscoa, em memória de Jesus, se desejamos fazer algo diferente, em recordação à bela reflexão de Barnabé. 

15.4.19

CRIANÇAS E JOVENS DA CASA DO CAMINHO - MONTES CLAROS-MG



Iniciou-se o seminário “Conversando com os Espíritos” à tarde, na Associação Espírita Paulo de Tarso - CEPA em Montes Claros-MG. Além das atividades doutrinárias, os trabalhadores dessa casa auxiliam e evangelizam pessoas em situação de vulnerabilidade social em duas outras unidades, mais próximas de onde eles residem, como a Vila Telma, onde eles mantém a Casa do Caminho.

Nesse endereço se pode ter uma pequena noção sobre o trabalho assistencial que eles fazem, na voz do Prof. Ton, que nos contatou e recebeu com carinho na casa espírita. https://www.redevoluntariado.org/site/entidade/16/casa-do-caminho.html

Ton tem uma longa história com as artes cênicas, e com as artes em geral. A CEPA é uma casa imensamente simples, mas toda decorada com simplicidade e bom gosto, a partir do trabalho de artesãos e artistas. Além da área construída, áreas verdes com flores e frutos.



No auditório climatizado, sustentado por troncos de eucalipto tratado, chão de cimento vermelho, no início do evento, entram diversas crianças para cantar, vestindo a camisa da Casa do Caminho. Ton os regeu, e o ambiente se encheu de música.

Terminada a primeira canção, em que não só ouvíamos, mas víamos as reações emocionais dos “pequenos” (alguns nem tanto), veio uma salva de palmas, e me emocionou ver uma das meninas envergonhada de ser aplaudida, cobrindo o rosto com as mãos, outra bem nova, serelepe e os mais velhos concentrados na sua apresentação.

Mais uma canção e a pequenina, bem à frente, deixava o corpo acompanhar o ritmo do que cantava, meio distraída, mas todos atentos à regência do “maestro”. 



Após essa apresentação, uma jovem de 14 anos, filha de membros da casa, declamou de memória uma poesia imensa e bela, sobre a fé e as diferentes formas de fé, em um ritmo que lembra o rap. Tolerância entre as religiões, aceitação das diferenças religiosas, um discurso importante em uma época na qual falta tolerância até mesmo entre os próprios espíritas.

Eu fiquei pensando nessas crianças e jovens, nascidas e vivendo em um local onde falta o básico. Segundo o trabalho de Marcos Esdras Leite e Anete Marília Pereira (2005), o chefe das famílias que lá residem tinham uma renda média mensal entre 30 a 80 reais por mês. Eles estavam entre os onze bairros de renda mais baixa do município, identificados pelos pesquisadores.

Qual será o futuro das crianças e jovens que nasceram com acesso limitado à saúde e educação?

Ton nos explicou que a apresentação os mobilizou tanto, que alguns nem haviam almoçado. Eles saíram do palco direto para a copa, para fazer um lanche e voltar às respectivas casas.

Parece um gesto pequeno, ensinar a cantar, a participar de um pequeno coral, a ter coragem para se mostrar a um público diferente, mas aos olhos de um psicólogo, não é. É uma experiência de vida cheia de expectativas e esperanças. É o desenvolvimento de diversas competências pessoais e de participação em equipe.

Espíritas de Taiobeiras - MG, que viajaram 263 km para participar do seminário

Após o seminário à noitinha, fizemos uma roda de conversas sobre as atividades assistenciais e promocionais das três unidades do Centro Espírita Paulo de Tarso. Além de alimentar, de refletir sobre valores da vida, de fazer arte e brincar, que mais se pode fazer? Como apoiar a educação? Como preparar para o mercado de trabalho? Que parcerias poderiam ser feitas com instituições espíritas ou não, capazes de desenvolver competências e ensinar o que seu meio não lhes dá acesso? Como apoiar o acesso ao ensino superior, e mostrar a via da educação como alternativa para a vida?

Confesso que fiquei muito satisfeito em ver uma organização espírita fazendo a diferença em sua cidade. Pessoas de diferentes origens sociais se unindo para fazer algo, por mais simples que seja. Desejo de superar a assistência e atingir a promoção social no futuro. Que nossos amigos desencarnados continuem apoiando essa e outras casas espíritas, para que seus membros nunca se esqueçam de fazer um pequeno esforço para que nossas famílias vulneráveis possam ter um presente menos difícil e um futuro melhor.

11.4.19

ENCONTRANDO JESUS A PARTIR DA ANÁLISE DOS EVANGELHOS





Ante a sugestão do Marcelo Bernardo, tenho lido nas horas vagas os livros de Bart Ehrman, um historiador e teólogo norte-americano, agora agnóstico, especializado no Novo Testamento e no cristianismo primitivo.

Ehrman tem um livro sobre a existência de Jesus (o Jesus humano e histórico). Há alguns autores defendendo a ideia de que Jesus seria um mito, oriundo de outros mitos divinos, sobre o qual os cristãos contaram histórias entre si e “inventaram” o cristianismo.

Um texto como costumo publicar no Espiritismo Comentado não tem tamanho suficiente (e se tivesse, não teria leitores...) para apresentar toda a discussão da questão, que envolve um grande número de argumentos, e, portanto, um debate significativo.

Uma das evidências que Ehrman usa para defender a existência de Jesus é a análise do texto evangelhos. Todos sabemos que os evangelhos foram escritos em grego. Como os escritores eram “bons de escrita”, possivelmente eruditos, os historiadores entendem que não devem ter sido os apóstolos, que eram possivelmente iletrados e que falavam aramaico (exceto Paulo e Lucas, que não conviveram com Jesus). Eles teriam dificuldade para aprender, falar e escrever corretamente o grego. Esse assunto também é polêmico, mas para entender Ehrman, vamos prosseguir desse ponto.

Um dos argumentos dele é a existência de palavras em aramaico no meio da narrativa grega. Dificilmente um escritor grego conheceria qualquer coisa de aramaico. Os evangelhos trazem, no entanto, palavras como rabi, talita cumi, messias, Cefas (o nome que Jesus deu a Pedro), entre outras. Não bastasse a existência das palavras, muitas vezes os escritores dos evangelhos a traduzem para o leitor, certos de que ele não entenderia seu significado.

Esta é uma das dezenas de evidências que as narrativas em torno de Jesus, surgiram na Palestina e eram faladas em aramaico, e que posteriormente os autores dos evangelhos ouviram e recontaram em grego. Se Jesus e os apóstolos fossem um mito, uma história baseada em histórias de deuses, considerando a amplitude das comunidades cristãs no século I, cada uma teria criado histórias próprias, sem um núcleo comum, totalmente diferentes umas das outras, o que não acontece nem mesmo nos evangelhos considerados apócrifos, que trazem em si muito dos textos dos outros evangelhos (como O evangelho de Tomé).

As palavras em aramaico, e os textos comuns, levam necessariamente o início do cristianismo para a região da Judeia, Galileia, Samaria, em torno dos anos 30 (outro ponto a ser sustentado, com as cartas de Paulo), por pessoas que originalmente falavam o aramaico e que depois se espalharam por cidades ao redor do mediterrâneo e dos países vizinhos aos antigos reinos de Israel e Judá.

Como disse acima, o livro é repleto de debates com os miticistas (pessoas que defendem que Jesus era um mito) e tem argumentação bem fundamentada. Quem se interessar pelo assunto leia:




Ehrman, Bart. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014. [Tradução da editora Nova Fronteira, feita por Anthony Cleaver]