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6.5.23

O QUE É INTELECTUALIZAR A MATÉRIA?

 



Jáder Sampaio


Na pergunta 25 de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec está discutindo os princípios, e divide didaticamente o universo em duas substâncias (ousias) originais, essências ou princípios (alguma coisa primordial ou primitiva da qual se originam mudanças): espírito (princípio inteligente) e matéria (princípio material, que compreende as transformações de um fluido cósmico ou universal). Trata-se de posição muito similar à de René Descartes (1596-1650) adicionada a lei do progresso.

Kardec trabalhava com um conceito de matéria sem um átomo formado de prótons (isso surgiu em 1866 e foi apresentado à comunidade acadêmica por Rutherford em 1911), elétrons (surgiu com as pesquisas de Thompson em 1897, que mostrou que os raios catódicos eram formados de partículas com cargas negativas) e nêutrons (descobertos em 1932 por James Chadwick). Já existia o conceito de moléculas, que era entendido como associação de átomos (vistos como corpúsculos indivisíveis de várias formas, que se “encaixavam” uns nos outros). O átomo era conhecido como molécula elementar, ao lado das moléculas compostas, formadas de associações de diversas moléculas elementares. Moléculas elementares e compostas formavam a matéria. E aí parece termos chegado ao conceito de matéria empregado por Allan Kardec em seus escritos.

Como entender a intelectualização da matéria? Talvez tenhamos uma chave explicativa em uma pergunta geralmente mal interpretada: a questão 28, onde Kardec menciona “matéria inerte” e “matéria inteligente”. Os espíritos não se prendem à nomenclatura proposta, mas o que Kardec parece querer distinguir é, em primeiro lugar, a matéria que não tem sinal de inteligência, como uma pedra de sílex ou um arbusto, sendo que esse último reage física e quimicamente à luz, à água, e a elementos que se encontram na terra, à energia nuclear e à gravidade, por exemplo. Contudo, não há qualquer sinal de inteligência, nem de instinto. 

Em segundo lugar há seres do reino animal, que apresentam instintos (os quais Allan Kardec explicou com uma frase interessante: “inteligência sem raciocínio”, questão 73) e a inteligência, que Kardec associa, em seu primeiro livro espírita ao “pensamento, a vontade de atuar, a consciência de que existem e de que constituem uma individualidade cada um, assim como os meios de estabelecerem relações com o mundo exterior e de proverem às suas necessidades”. (questão 71).

Para explicar seres, como as plantas mesmo, que têm vida, mas não têm instinto nem inteligência, os espíritos com os quais dialoga Kardec se servem de um conceito muito usado à época e meio abandonado nos dias de hoje pelas ciências naturais: o princípio vital. 

A biologia de nossos dias não fala mais de um vitalismo (há pequenas exceções), porque desenvolveu-se o conhecimento no sentido de explicar a vida a partir da estrutura e funcionamento dos corpos e em associação com a física e a química, exclusivamente, tornando as argumentações metafísicas ou filosóficas, não baseadas em evidências, mas em princípios ideais, como não sendo conhecimento científico, de forma geral. Isso não significa que não exista algum princípio vital, apenas que a ciência decidiu mudar o rumo de sua nau e abandonou esse objetivo por considerá-lo metafísico.

Assim, as “pedras” são matéria com uma força inerte (questão 585) sem princípio vital, nem instinto, nem inteligência; as plantas têm matéria e princípio vital, algumas parecem mostrar algum instinto rudimentar, como a dionéia (questão 589), os animais têm a tal “força inerte”, o princípio vital, os instintos mais ou menos desenvolvidos e alguns têm uma inteligência rudimentar. Kardec explicita algumas características dos animais, como capazes de se comunicar, muitas vezes sem serem capazes de emitir sons (isso parece mais desenvolvido nos animais de reinos superiores na taxonomia de Lineu, do século 18), terem um livre arbítrio limitado às suas necessidades e instinto de imitação (como em papagaios, que imitam os sons, e macacos que imitam os gestos – questão 596). 

Na questão 597 temos uma afirmação que se tornou polêmica, entre os espíritas que insistem em estudar frases soltas: Kardec diz que os animais têm um princípio independente da matéria que sobrevive ao corpo. Seria uma espécie de precursor do Espírito (questão 76), uma alma muito inferior à humana (questão 597-a), que conserva sua individualidade após a morte, mas não tem consciência de si mesmo (questão 598), que não pode fazer escolhas psicológicas, por não ter livre arbítrio propriamente dito (questão 599), que tem um intervalo curto entre a desencarnação e reencarnação, controlado por espíritos responsáveis por isso (questão 600), sujeita ao progresso pela força das coisas e não por sua própria vontade (questão 602). 

A última distinção que Allan Kardec faz entre os animais e os homens diz respeito à inteligência. A inteligência que os animais (superiores) possam vir a desenvolver diz respeito exclusivo à “vida material” e a dos seres humanos abrange também a “vida moral”, entendida aqui como vida psicológica ou psíquica, que envolve escolhas morais e diversas escolhas que os animais não fazem.

Observando detidamente o todo da argumentação kardequiana, a matéria intelectualizada são os animais que apresentam inteligência rudimentar (lato sensu) e os seres humanos que se servem da inteligência (stricto sensu) e do livre-arbítrio  para atender suas necessidades e escolher uma vida moral (no sentido mais amplo, de vida psicológica). Os espíritos deles têm acesso a corpos capazes de permitir a individualidade, o movimento e outras características necessárias à ação de inteligências no meio ambiente.

Os seres materiais que não são inertes, que apresentam vida, mas não têm uma vida psicológica, seriam matéria não-intelectualizada, e dentre esses, os que vivem e morrem, não teriam ainda um espírito individual, mas seriam portadores do princípio vital.

Hoje a biologia fala em cinco ou mais reinos, na medida em que com o avanço dos conhecimentos, se tem mais informações sobre os seres para classificá-los, mas isso não é necessário à compreensão do pensamento de Allan Kardec no ponto em questão.