Madeleine Pelletier
O fim de tarde e início de noite
de sábado, em época de pandemia, encontrou nosso grupo mediúnico reunido
através de um aplicativo de internet, em respeito ao isolamento social.
Resolvemos manter o encontro, o estudo, as preces e, caso algum dos três
médiuns psicógrafos sentisse a influência espiritual, a escrita e leitura de
textos ditados pelos espíritos.
Estamos estudando o livro
“Memórias de um suicida”, atribuído a Camilo Cândido Botelho, pseudônimo de
Camilo Castelo Branco. Uma vez por semana é atribuição de um dos membros
preparar e apresentar uma síntese narrativa de um dos capítulos, e nessa semana
a médium Ana iria fazer o estudo. Já estamos no capítulo 17, “Vinde a mim”, que
narra as instruções de Aníbal de Silas na Cidade Universitária para Camilo e
seus colegas, já bem recuperados das impressões iniciais após o ato violento
contra a própria vida.
Ana lembrou-se do estudo do livro
feito há 25 anos atrás, um quarto de século, quando outros membros de nossa
reunião ainda estavam encarnados. Ela havia guardado pequenos cartazes com um
esquema visual do Instituto Maria de Nazaré, suas seções e coordenadores.
Terminada a apresentação,
inseriu-se uma música suave, “Meditação de Taís”, de Massenet, seguida da “Ave
Maria” de Gounot, ambas instrumentais. Uma prece inicial, e os lápis correram
sobre o papel em uma das nove residências participantes. Nossa coordenadora
desencarnada enviou-nos uma mensagem, emocionada com os cartazes e as
lembranças do grupo de estudos que houvera participado enquanto encarnada.
Ainda na terceira parte, a
dirigente perguntou um a um sobre as percepções mediúnicas e imagens mentais
dos participantes durante a prece e a música. O médium Gamaliel descreveu um
espírito, denominado Pelletier, que ele percebia junto à médium Ana, durante a
exposição. Para a mediunidade, a distância e o espaço diferem dos que
percebemos com nossos cinco ou mais sentidos corporais. Pelletier se apresentou
a ele como primeira médica do sexo feminino na França. Ela trabalhou como
psiquiatra e Gamaliel lhe descreveu o cabelo curtinho, um corte quase masculino
e uma espécie de casaca curta, roupa própria dos homens.
Ela acompanhava Ana durante a
exposição, enquanto essa apresentava com clareza e concisão o capítulo de
Yvonne. Ao final da narrativa, encontrou-se a imagem de Madeleine Pelletier,
que temos acima, e o médium disse tê-la percebido como nessa imagem.
Madeleine Pelletier
Buscamos mais informações com
Gamaliel após a reunião e, generosamente, ele nos informou que notou que ela
atua “junto a profissionais que cuidam de crianças” como forma de reparação de
alguma coisa. A impressão que a energia dela repassava era de compaixão e
imensa entrega e dedicação ao trabalho, ou seja, causou uma boa impressão a
ele. Ele igualmente percebeu um “séquito de enfermeiras por ela coordenada” que
distribuía uma “chuva de luz prateada”, direcionada às cabeças dos doentes que
se encontravam em uma possível enfermaria, com leitos lado a lado.
Como já vimos bastante na
literatura espírita, e especialmente no livro que nos encontramos estudando,
nossas reuniões não afetam apenas a nós, mas costumam ser úteis nas atividades
espirituais de auxílio e recuperação de espíritos em estado de perturbação ou
sofrendo efeitos negativos das escolhas que fizeram na última encarnação. O que
falamos na reunião não fica apenas entre ouvidos humanos. Os estudos são úteis
para um número indeterminado por nós de pessoas desencarnadas. Lembrei da
expressão cunhada pelo autor materialista português: “Nossos amigos, os discípulos
de Allan Kardec”.
Madeleine Pelletier (1874-1939),
identificando-se, despertou nossa curiosidade usual. Buscando na internet,
descobrimos que foi a primeira mulher a obter o diploma de psiquiatria na
França.
Anne Pelletier teve uma vida
complicada. Ficou órfã de pai aos dez anos de idade, sendo de família pobre, e
abandonou os estudos na adolescência, época em que tinha muitos conflitos com a
mãe cristã. Aproximou-se de grupos socialistas e anarquistas que a
influenciaram a voltar a estudar aos vinte anos. Obteve o baccalauréat em 1896, equivalente ao nosso ensino médio, e
inscreveu-se no PCN, um curso que
certificava estudos químicos, físicos e naturais, pré-requisito para tornar-se
médica. Não se sabe quando ao certo ela adotou o nome de Madeleine.
Achei curiosa a troca. Anne seria
o nome da mãe de Maria, e Madeleine da apostola
apostolorum, a mais reconhecida apóstola de Jesus. Haveria alguma relação
na escolha do novo nome com a tradição cristã?
Depois do PCN, Madeleine se
interessou pela antropologia, onde trabalhou com Letournou e Manouvrier nas
teorias de Broca sobre o cérebro e o crânio. Observando que essas ideias eram
usadas como forma de explicação da pretensa inferioridade intelectual da
mulher, ela trocou seus estudos por um concurso para residência médica em
asilos, para o qual teve que lutar, porque era necessário ter direitos
políticos e mulheres não votavam na França, naquela época.
Ela conseguiu vencer as barreiras
e, em 1903, defendeu a tese “A associação de ideias na mania aguda e no atraso
mental”. Se a memória não me engana, o tema estava fervilhando na Europa, e foi
estudado por Jung que fez publicações em psiquiatria com estudos experimentais
de associação de ideias. O conceito de mania era diferente do atualmente
empregado pelos psiquiatras.
Ela trabalhou então em dois
“asilos” franceses, entrou na maçonaria e publicou artigos técnicos. Com um
consultório pouco procurado, tornou-se médica de urgências, e passou a atender
muitos pobres, acompanhada por um agente de polícia.
Na sua vida política, filiou-se a
um movimento de mulheres (“Solidariedade das mulheres”), aproximou-se da Seção Francesa
Internacional Operária (SIOF), mas os abandonou, desencantada, em 1910.
Trabalhou na primeira guerra mundial pela cruz vermelha, auxiliando
combatentes. Após mais um desencanto, tornou-se antimilitarista.
Ela teve uma incursão no Partido
Comunista e viajou à Rússia pós-revolucionária, onde se desencantou das
condições de vida da população e com a ação da polícia. De volta à França, suas
publicações não agradavam muito ao partido, e ela acabou se afastando em 1926.
Ela se aproximou novamente de
anarquistas e socialistas, vivendo como médica, e acompanhando a questão
fascista que ganhava dimensão na Europa e mesmo na França. Em 1937, anos após
ter sida acusada de praticar abortos (a acusação era sem comprovação) ela teve
um AVC e ficou hemiplégica, tendo que aceitar a ajuda dos amigos. Dois anos
depois, em um ambiente de “caça aos abortistas”, foi acusada de participar de
um aborto de uma jovem de 13 anos, mas declarou-se inocente. Reconheceu-se que
ela não poderia tê-lo realizado pela sua condição física, contudo, considerada
um perigo “para si, para outrem e para a ordem pública”, foi internada em uma
clínica psiquiátrica, onde desencarnou após um segundo acidente vascular
cerebral. (A maioria das informações foi retirada da Wikipédia brasileira e
francesa).
Ana é médica pediatra e
intensivista, e atende a crianças pobres ou de classe média em um posto de
saúde. Passados mais de oitenta anos da desencarnação de Pelletier, vê-la em
uma reunião mediúnica, dedicando-se à infância e ao atendimento da pobreza não
nos causa nenhum assombro. Sua dedicação aos pobres e à emancipação da mulher,
assim como seu ideal de um mundo menos desigual, pesam na balança em seu favor.
Desnecessário dizer que Gamaliel
não conhecia a história de Madeleine, que nos pôs a pensar bastante sobre
nossas ações e sobre a sabedoria divina, sempre abrindo caminhos novos para
seus filhos, mesmo os que não acreditam nEle. Madeleine Pelletier me fez
lembrar também de outra mulher que teve passagem por organização comunista e
que ficou famosa após a morte, através da mediunidade de Chico Xavier, dessa
mesma época, só que brasileira e teosofista: Nina Arueira.