Marcel Souto Maior publicou há pouco uma biografia de Allan
Kardec, e acabo de ler. No movimento espírita há muitos trabalhos biográficos
sobre o pesquisador que desenvolveu a doutrina espírita, em uma época com muita
experimentação e curiosidade, e pouca predisposição ao estudo, especialmente na
Europa.
O trabalho de Marcel é diferente, por exemplo, da minuciosa biografia
de Zêus Wantuil e outros, que dá luz a informações de pesquisa e focaliza questões polêmicas no
movimento espírita.
“Kardec, a biografia”, publicado pela editora Record, tem
algumas características distintivas. Foi escrito por um autor que não crê, nem
descrê no Espiritismo, o que aparece nas entrelinhas do texto. Como Kardec não
é visto como herói, nem como ingênuo ou mau caráter, ele o humaniza ao máximo.
Humaniza ao ponto de imaginar reações que ele teria ante os muitos eventos que
o atropelaram ao longo de sua “segunda vida”, a vida espírita.
Há muito fôlego na pesquisa do livro, que não se reduz à
pessoa de Kardec, mas a sua época e às pessoas que o cercaram. Marcel faz algo
que o movimento espírita deveria ter feito há muito: pesquisa na Revista
Espírita os principais acontecimentos envolvendo, Gaby, os médiuns da Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, os críticos e perseguidores, o ambiente social
da França, compondo um quadro delicioso de se acompanhar.
O livro, com muitos capítulos curtos (três ou quatro páginas
apenas), ganha um tom de roteiro ou de pré-roteiro, o que talvez venha a
acontecer, considerando os comentários na introdução que reportam a uma
encomenda de Wagner de Assis, diretor de Nosso Lar, se a memória não me engana.
Não entendi a fixação de Marcel com a questão financeira.
Ele repete diversas vezes a frase de Kardec, quando responde à acusação leviana
de ter ganhado milhões com o espiritismo. Ele explica que não é verdade, mas
aceita que recebe dinheiro da venda da Revista Espírita e dos livros que ele
escreveu, mas que entende como sendo trabalho dele próprio, e que parece ser
dedicado aos projetos ligados à construção institucional do Espiritismo. Marcel
repete mais de uma vez a frase “Ninguém tem nada com isso”, que é empregada
pelo codificador quando se refere ao dinheiro auferido com seu próprio
trabalho. Achei que Marcel se deteria mais, ao final do livro, na trajetória do
patrimônio deixado por Kardec , mas ele fica apenas no relato do que se
adquiriu, na comissão central do espiritismo e na gestão de Gabrielle Boudet
após a desencarnação do marido.
Algumas pessoas tiveram uma participação apagada no livro,
como é o caso de Camille Flammarion e Victorien Sardou. Alexandre Delanne
aparece apenas como o homem que socorreu
Kardec no momento da desencarnação. Nenhuma citação a Léon Denis. Assim, os que
deram continuidade ao movimento espírita francês ficam apagados na biografia de
Kardec, “mas eu não devo ter nada com isso”.
Recomendo a leitura do livro, que, por sinal, é muito
prazerosa. Marcel usa suas habilidades de roteirista e praticamente prende o
leitor ao texto. Como grande parte dos episódios são pouco divulgados nas
palestras sobre Kardec que assistimos no movimento espírita, penso que o leitor
terá aquela impressão de aventura, de estar entrando em um mundo novo e pouco
conhecido. Quanto às opiniões discretas que são depreendidas da narrativa,
penso que vale a frase de Leopoldo Machado: “Julga, leitor, por ti mesmo.”
Bom dia, Jáder!
ResponderExcluirTerminei de ler o livro na semana passada. Estava aguardando comentários de pessoas mais competentes que eu neste tipo de análise.
Gostei do livro, a qualidade do texto prende o leitor.
Ficou um gostinho ou pensamento de "quero mais" ou "ué, acabou?".
Considerando que se apresenta como biógrafo não espírita, senti falta de considerações ou indicativos mais abundantes dos críticos da época (os bons e os maus).
Senti muita falta de aprofundamento a respeito da Sra. Rivail (Gabi), por quem tenho uma admiração não muito justificada por não conhecê-la direito. Único livro que li sobre ela é o do Eugenio Lara (Amélie Boudet, Uma Mulher de Verdade). Sempre alimento a convicção (ou ilusão) de que ela foi muito mais importante para a compreensão (codificação) do então nascente Espiritismo que a história registra. Comentando com um amgio, me arrisquei a dizer que, quando da desencarnação do marido, se ela fosse mais nova (com mais vigor e saúde) e tivesse apoio para superar os preconceitos de gênero de então (conseguindo legitimar sua liderança doutrinária), os rumos do nascente movimento seriam mais consistentes e Leymarie e demais companheiros não dariam suas mancadas, facilitando constrangimentos como o que foi conhecido como o Processo dos Espíritas. Novamente, não tenho maiores bases para esse tipo de assertiva, mas sempre tenho essa pulga atrás da orelha.
Você bem comentou: e os recursos deixados para os projetos, inclusive patrimoniais do movimento? Maiores considerações sobre os desentendimentos internos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e como Kardec se equilibrou nesse meio? Será que não tem material sobre isso?
E durante alguns momentos do livro, e ao final principalmente, algo me preocupou: será que o autor não está ficando muito próximo do Espiritismo, perdendo a qualidade como pesquisador que admirei no trabalho sobre o Chico?
E você puxou um assunto que talvez tenha resolvido outro desconforto meu: mais um projeto cinematográfico, em torno da temática espírita, baseado nesse livro. Será que ao prepará-lo já estava pensando no roteiro do filme, a ponto de prejudicar sua concentração e atenção na obra em curso, o livro?!
Concluindo: o livro é bom, mas fiquei um pouco frustrado.
Abraços!
Ricardo.