3.7.20

KARDEC E HUSSERL: UM ANACRONISMO?





Publiquei no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia” um artigo no qual faço analogias entre os métodos da fenomenologia de Edmund Husserl e, bem pouco, da hermenêutica de Schleiermacher, aos trabalhos de Kardec[1]. Como Husserl é posterior a Kardec, cabe a pergunta: terei incorrido em anacronismo?

O meu companheiro Houaiss define anacronismo, no significado mais próximo que estamos empregando, como “erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra época, ou em representar, nas obras de arte, costumes e objetos de uma época a que não pertencem”.

Edmund Husserl começou a elaborar sua fenomenologia no início do século 20, décadas depois da desencarnação de Allan Kardec. Seguramente, Kardec não conhecia, nem leu Husserl, sendo impossível que os textos do autor alemão tivessem sido manuseados pelo fundador do espiritismo. Qual é o nexo entre estes dois autores que entrevimos em nosso trabalho?

Independente da questão da existência ou não dos espíritos, Allan Kardec decidiu estudar não apenas os fatos supostamente provocados por eles sobre a matéria, mas também o seu discurso através dos médiuns. As influências filosóficas de Kardec em sua época, que pretendeu dar um tratamento científico aos estudos que fez e aos dados que obteve, faziam uma clivagem entre ciência e filosofia. O positivismo de Comte, por exemplo, só considerava científico o que se referisse ao estudo da matéria e que compusesse uma explicação associativa entre acontecimentos materiais, cuja plena generalização era chamada de “lei”. A filosofia tornou-se serva desta forma de fazer ciência, muito bem-sucedida nos domínios das ciências naturais (física, química e biologia, com uma base matemática para a constatação das associações).

Allan Kardec, no entanto, não tinha acesso direto ao “mundo espiritual”, nem à “realidade espiritual” que desejava estudar. Assim como um psicólogo, ele precisava formular suas teorias sobre os espíritos, com base quase exclusiva naquilo que lhe diziam os médiuns. Pode-se dizer, portanto, que ele se propôs a estudar o discurso produzido pelos médiuns antes da formulação da psicologia como ciência e seus métodos, o que vai acontecer a partir da década seguinte à desencarnação do fundador do espiritismo.

Para fazer seu trabalho, ele teve que antecipar métodos que seriam elaborados futuramente pelas chamadas ciências humanas, e ainda sem autores que tratassem desse tipo de metodologia. Um exemplo que temos foi o chamado “controle universal do ensino dos espíritos”, que ele descreve na introdução de “O evangelho segundo o espiritismo”.

Na falta de instrumentos que permitissem a observação ou experimentação direta do mundo espiritual, Kardec tem por base de informação aquilo que os espíritos dizem através dos médiuns. Todavia, ele conhece as limitações da mediunidade, que estudou. Nem tudo o que é dito pelos médiuns é de origem espiritual, eles podem misturar suas próprias ideias aos conteúdos espirituais. Nem tudo o que é dito pelos espíritos pode ser considerado verdadeiro, porque alguns ignoram sua própria condição e estado, outros creem saber mais do que realmente sabem, e dão explicações fantasiosas para explicar suas experiências, outros ainda apresentam conhecimentos compreensíveis e racionais, tendo noção dos limites de sua capacidade de explicação. Allan Kardec pretende, então identificar esses últimos, distingui-los dos demais, e situar a doutrina espírita circunscrita ao que eles dizem e que pode ser verificado com o discurso obtido através de outros médiuns que desconheciam o que foi dito sobre o tema em estudo.

No parágrafo acima temos dois princípios de pesquisa similares aos que propôs Husserl futuramente. O primeiro é que ele sabe que não vai estudar diretamente os espíritos, nem o mundo espiritual. Ele vai estudar indiretamente, a partir do conteúdo do que dizem os médiuns. Em fenomenologia, se diz que se estuda a “consciência da realidade”, e não diretamente um objeto natural. Kardec estudou a “consciência da consciência da realidade”, ou seja, o que o médium interpreta sobre o discurso de um espírito sobre o mundo espiritual.

O segundo princípio similar é o da busca de explicações espirituais semelhantes, produzidas por espíritos capazes, através de diferentes médiuns, que de preferência não conhecem uns aos outros. Husserl denomina isso de “redução eidética”, a busca das essências, aquele conteúdo apreendido pela intuição do pesquisador após investigação fenomenológica com diversos sujeitos, cujos elementos centrais do discurso são similares. É com esse material que Kardec formula a doutrina espírita, ou, em linguagem científica, a teoria espírita.

Como Husserl, Kardec aceita que essa primeira formulação não é a definitiva. Novas incursões em relatos mediúnicos podem ser feitas e novos pontos podem ser encontrados, o que evita a “cristalização” do pensamento Kardequiano mas exige “integração” entre o já conhecido e o novo.

Essas semelhanças, entre outras, nos levaram a crer que, estudando “pessoas desencarnadas”, Kardec teve que sair das estritas proposições das ciências naturais, para adentrar um campo de pesquisa novo, fundamentado nos discursos mediúnicos e não exclusivamente na observação de fatos. Por essa razão, pela inexistência de uma epistemologia de ciências humanas na época de Kardec, não encontramos em seu texto senão uma tentativa de adaptação daquilo que se conhecia das ciências naturais para a explicação de sua metodologia pessoal de trabalho. Não há anacronismo nessa afirmação. O que dizemos, é que coisas como o “controle universal” não podem ser explicados com uma epistemologia de ciências naturais, que se constituíram em ruptura ao racionalismo (caro a Kardec), ao idealismo e a outras formas de busca da verdade no contexto filosófico. O que existe, portanto, é uma prática de pesquisa concreta, descrita ao longo do trabalho de Allan Kardec, sem termos epistemológicos vigentes em sua época, capazes de a explicarem de forma semelhante ao que fazia Lavoisier, Le Verrier e outros cientistas da natureza, de sua época.

O filósofo e psicólogo Wilhelm Wundt (1832-1920) ficaria conhecido por demarcar, em 1873, a criação de uma nova ciência em seu livro “Princípios de Psicologia Fisiológica, no qual situa a psicologia no domínio das ciências naturais. Ele tinha uma dupla formação:  médico e filósofo (as duas origens da Psicologia nascente do século 19). Seu discípulo, Titchener (1867-1927), iria propor como objeto de estudo da psicologia a investigação dos fenômenos “com base na experiência e observação pessoal”, denominando sua escola como estruturalismo. Ambos fazem ciência com base na consciência, assim como Allan Kardec, embora suas contribuições mais conhecidas envolvam bastante os pontos de contato entre o físico-biológico e o mental. A psicologia como área de conhecimento autônomo, portanto, ficou registrada na história após Allan Kardec.

Kardec não anteviu a fenomenologia, e nem poderia fazê-lo, mas trabalhou com o objeto das ciências humanas em um tempo que elas ainda não estavam formalizadas, e desenvolveu métodos próprios que depois o filósofo alemão explicaria com uma proposição ainda mais ampla de pesquisa.




[1] Sampaio, Jáder. Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas. In: Sampaio, J., Da Fonseca, A. F., Milani, M. O espiritismo, as ciências e a filosofia. São Paulo: CCDPE-ECM e LIHPE, 2014.

29.6.20

UM DIÁLOGO SOBRE CIÊNCIA E ESPIRITISMO





Quatro professores universitários com formações diferentes tratam da questão científica do espiritismo. Afinal, o que era considerado ciência na época de Kardec?  O espiritismo pode ser considerado ciência? Qual era a influência do positivismo na época de Allan Kardec? Por que Allan Kardec afirmou que o espiritismo e a ciência caminham lado a lado? Existem pesquisas sobre temas espíritas em curso?


Um diálogo entre Sílvio Chibeni, Marco Milani, Alexandre Fontes da Fonseca e Jáder Sampaio a partir de um convite da União das Sociedades Espíritas de São Paulo - Regional Campinas.


A partir dessas questões e das posições dos convidados, inicia-se um diálogo com os participantes do evento, que lançam luz em diversos pontos de ligação da ciência e das ciências com o espiritismo. 

Confiram!

26.6.20

VOCÊ JÁ ASSISTIU AO CANAL "ESPIRITISMO EM KARDEC"?


Logo do Canal Espiritismo em Kardec no YouTube


Tenho apreciado muito o trabalho realizado em um canal do YouTube denominado Espiritismo em Kardec, capitaneado pelo Eric Pacheco. Há décadas atrás o pessoal do cinema tinha uma expressão romântica: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” era uma expressão usada para tratar do cinema novo no Brasil. 

No caso do trabalho do Eric, ele dá voz a estudiosos e trabalhadores do meio espírita que estão fazendo trabalhos interessantes, mas que não ganham as mídias espíritas ou a grande mídia brasileira, ficando na penumbra. 

Não entrem  no canal esperando uma imagem tipo “Rede Globo”, qualidade técnica impecável e recursos técnicos variados. O Eric fica ele próprio meio na “penumbra”, sem iluminação artificial, e faz uma fala com os olhos meio baixos, meio lendo, às vezes tropeçando nas palavras. Então, deve me perguntar o leitor, qual é o diferencial? Qual é o talento, ou como as gerações jovens dizem, o “superpoder” do Eric? Os roteiros.

O Eric é excelente na preparação das entrevistas. Ele parece ler, ouvir e pesquisar sobre os seus convidados. Ele é bom conhecedor da estrutura do espiritismo, que é Allan Kardec, então faz perguntas aos convidados sempre procedentes, centrais na compreensão do que ele tem a dizer, e que geram entrevistas originais e interessantes, que apresentam de forma geralmente clara e sintetizada, o que seu convidado tem a dizer.

Outro “superpoder” do Eric é a capacidade de encontrar convidados interessantes nos quatro cantos do mundo. Ele tem conseguido dar voz a espíritas em países que antes estavam atrás da cortina de ferro, da Europa e dos quatro cantos do Brasil. Ele encontra pessoas com conhecimento específico de um autor, questão ou característica do movimento espírita, e lhes dá voz.

No canal do Eric já assisti, agora no sofá da sala de estar, entrevistas com diversos pesquisadores da Liga de Pesquisadores do Espiritismo – LIHPE, nas mais diferentes áreas do conhecimento. Fiquei sabendo como o espiritismo chegou à Lituânia e à Estônia, o que fazem hoje e quais são suas lutas! Tive o prazer de conhecer o trabalho da Adriana Gomez, professora e pesquisadora de História, do Rio de Janeiro, que estudou o tempo em que o espiritismo foi criminalizado no Brasil. Via a Mary del Priori, do meio acadêmico, que notabilizou-se com um livro sobre o espiritismo, dar uns tropeções com dados e datas que são muito conhecidos pelos estudiosos espíritas (sem demérito ao trabalho dela). Vi o Tiago falando do Torterolli e da história do espiritismo. O Calsone falando de Dias da Cruz... E não vi nada. O Eric produz com qualidade e originalidade entrevistas deliciosas de se ouvir, e com uma produtividade que nos desafia a manter atualizados.

Outro ponto importante é a capacidade dele dar voz a pessoas com posições muito diferentes dentro do meio espírita. Ele encontra quem tem o que dizer, e deixa claro o que pensa e em que se fundamenta o pensamento do entrevistado. Não é um canal para quem não conhece Kardec e a fundamentação do espiritismo. Penso que um iniciante poderia ficar confuso diante de tanta informação. Ele produz para quem já conhece o espiritismo e gostaria de saber o que está acontecendo no meio espírita, polêmicas (de ideias), regionalismos,  história, filosofia...

Quem desejar ver por si mesmo, o canal dele pode ser acessado pela televisão ou smartphone no YouTube (Espiritismo em Kardec), ou ser acessado em notebooks e computadores via https://www.youtube.com/channel/UCb4RCch7vrsbPyO5x_0A3rw/videos
Vivemos uma época extraordinária. Não é mais necessário pedir aos grandes órgãos de comunicação que veiculem os trabalhos que nos interessam. Agora temos que sair em busca, na imensidade de opções disponíveis, o que vai de encontro às nossas preferências, gostos e cultura.

22.6.20

WALLACE FOI ESPIRITUALISTA?






Ontem falamos sobre os livros e a obra de Alfred Russel Wallace no Espiritismo.Net em rede com outros canais espíritas. Você sabia que o coautor da teoria da evolução das espécies era espiritualista? Quer saber mais? O vídeo está disponível acima, basta assistir.

20.6.20

ESTUDAR FILOSOFIA ESPÍRITA PELA INTERNET?




Minha geração estudou no Brasil em uma época na qual a filosofia e a sociologia não faziam parte do currículo do ensino médio. Talvez por isso tenhamos hoje membros do governo que confundem filosofia com ideologia e creem piamente que conhecimento verdadeiro está indissociavelmente ligado a matemática.

Essa lacuna de formação que se impôs a algumas gerações, tem um reflexo especular no meio espírita: a limitação de espaços para o conhecimento e o desenvolvimento da dimensão filosófica do espiritismo. Se considerarmos algumas exceções brasileiras  admiráveis, como boa parte do trabalho de Bezerra de Menezes, Herculano Pires, Deolindo Amorim e Carlos Imbassahy algumas iniciativas institucionais como os institutos de Cultura Espírita e o trabalho de Manuel São Marcos, os “flertes” de alguns oradores e escritores alguns trabalhos publicados pela Liga de Pesquisadores do Espiritismo na série “Pesquisas brasileiras sobre o espiritismo" e publicações/traduções de professores como Dora Incontri e Astrid Sayegh, as casas espíritas, de forma geral, não possuem espaços de formação ou debate com orientação filosófica. Perdoem-me aqueles que não foram citados, até por desconhecimento pessoal do autor dessas linhas.

Um dos riscos dessa omissão é lermos Kardec e as obras subsidiárias do espiritismo como textos religiosos, para se aprender e crer, ficando aquém da sua fundamentação filosófica, e apreendendo jargões para lidar com outras propostas religiosas e filosóficas. 

Um segundo risco, também presente em nossa sociedade, é a supervalorização das ciências, apreendendo-as como “verdade”.  e a tentativa de aproximar o conhecimento espírita ao conhecimento científico de forma apressada, desarticulada e hermética. Surgem espíritas usando o jargão da física, da psicologia, da medicina ou de outras áreas do conhecimento, baseado muitas vezes em textos de divulgação (ou seja, sem domínio das respectivas áreas) e tecendo ilações a um público leigo, incapaz de identificar ou criticar a impostura. Alguns respondem com mais hermetismo às justas críticas realizadas por quem entende, o que serve apenas como forma de impressionar os simpatizantes, que creem estar diante de um grande intelectual.

O terceiro risco, é o da construção de um discurso que só é reconhecido no contexto espírita, incapaz de dialogar com os autores do nosso tempo. Isso faz com que as próximas gerações de espíritas sejam facilmente influenciáveis por professores ateus ou agnósticos, ou ainda, incapazes de articular o conhecimento espírita com o que apreendem na universidade, passem a considerar o espiritismo como mera religião, fé de adeptos, baseada apenas nas relações sociais que os espíritas estabelecem entre si e na revelação de alguns ou de um espírito-médium“favorito”, ignorando o esforço de Allan Kardec.

Não foi com pouca satisfação que recebi o convite para participar de uma iniciativa de espíritas brasileiros (Sociedade Espírita Primavera) e ingleses (Spiritist Society of Bournemouth), capitaneada pelo competente professor Humberto Schubert, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Com sólida formação em filosofia e ciência da religião, como se pode ler em seu currículo (http://lattes.cnpq.br/5846607951367788), ele vem apresentando palestras de cerca de 40, 50 minutos sobre filosofia e espiritismo, seguidas de diálogo com os participantes. Na primeira conferência, Humberto advoga a tese da centralidade da filosofia para a compreensão do todo e da fundamentação filosófica do pensamento de Allan Kardec, ou seja, ele compreende o espiritismo como filosofia, coisa esquecida por muitos “advogados” e “críticos” do espiritismo que tratam dele como se houvesse um primado da religião para a apreensão da doutrina.

Quando o espiritismo chegou no Brasil, inexistia a universidade como entendemos hoje, com ensino, pesquisa e extensão, formadora de profissionais e técnicos de alto nível, mas também produtora de novos conhecimentos. O trabalho de Allan Kardec, que veio do meio acadêmico de sua época, chegou às mãos dos pioneiros, a quem admiramos, mas que tinham por instituições conhecidas no Brasil a Igreja Católica e faculdades independentes, de direito, medicina, engenharia e talvez educação, principalmente. Talvez por isso a leitura de Telles de Menezes e seu diálogo com Desliens, ao publicar o primeiro periódico espírita do Brasil, mostre um distanciamento da compreensão de franceses e brasileiros sobre o pensamento espírita, exposto nos livros de Allan Kardec. Entre Telles de Menezes e Bezerra de Menezes já se observa uma evolução do entendimento do espiritismo, e o “médico dos pobres” dava mostras de seu conhecimento filosófico na coleção intitulada “Estudos Filosóficos”, à época publicada em jornal de grande circulação, hoje encontrada em forma de livros organizados pela Edicel.

A iniciativa das duas sociedades espíritas aproxima pelo estudo grupos europeus e brasileiros, que passam a poder interagir mais pessoalmente, superando as distâncias geográficas e culturais. Ainda há a limitação do uso do português, o que dificulta a participação de espíritas europeus nativos de seus próprios países, sem domínio do idioma ibérico, mas quem pode prever o futuro?

Tendo sido levado a refletir bastante, após três sessões de “filosofia aplicada”, recomendo aos leitores do EC que se interessam pela área, essa iniciativa internacional, agradecendo ao impulso que o isolamento social deu para o desenvolvimento da educação à distância em nosso movimento.


5.6.20

A VISITANTE DESCONHECIDA

Madeleine Pelletier


O fim de tarde e início de noite de sábado, em época de pandemia, encontrou nosso grupo mediúnico reunido através de um aplicativo de internet, em respeito ao isolamento social. Resolvemos manter o encontro, o estudo, as preces e, caso algum dos três médiuns psicógrafos sentisse a influência espiritual, a escrita e leitura de textos ditados pelos espíritos.

Estamos estudando o livro “Memórias de um suicida”, atribuído a Camilo Cândido Botelho, pseudônimo de Camilo Castelo Branco. Uma vez por semana é atribuição de um dos membros preparar e apresentar uma síntese narrativa de um dos capítulos, e nessa semana a médium Ana iria fazer o estudo. Já estamos no capítulo 17, “Vinde a mim”, que narra as instruções de Aníbal de Silas na Cidade Universitária para Camilo e seus colegas, já bem recuperados das impressões iniciais após o ato violento contra a própria vida.

Ana lembrou-se do estudo do livro feito há 25 anos atrás, um quarto de século, quando outros membros de nossa reunião ainda estavam encarnados. Ela havia guardado pequenos cartazes com um esquema visual do Instituto Maria de Nazaré, suas seções e coordenadores.

Terminada a apresentação, inseriu-se uma música suave, “Meditação de Taís”, de Massenet, seguida da “Ave Maria” de Gounot, ambas instrumentais. Uma prece inicial, e os lápis correram sobre o papel em uma das nove residências participantes. Nossa coordenadora desencarnada enviou-nos uma mensagem, emocionada com os cartazes e as lembranças do grupo de estudos que houvera participado enquanto encarnada.

Ainda na terceira parte, a dirigente perguntou um a um sobre as percepções mediúnicas e imagens mentais dos participantes durante a prece e a música. O médium Gamaliel descreveu um espírito, denominado Pelletier, que ele percebia junto à médium Ana, durante a exposição. Para a mediunidade, a distância e o espaço diferem dos que percebemos com nossos cinco ou mais sentidos corporais. Pelletier se apresentou a ele como primeira médica do sexo feminino na França. Ela trabalhou como psiquiatra e Gamaliel lhe descreveu o cabelo curtinho, um corte quase masculino e uma espécie de casaca curta, roupa própria dos homens.

Ela acompanhava Ana durante a exposição, enquanto essa apresentava com clareza e concisão o capítulo de Yvonne. Ao final da narrativa, encontrou-se a imagem de Madeleine Pelletier, que temos acima, e o médium disse tê-la percebido como nessa imagem.

Madeleine Pelletier

Buscamos mais informações com Gamaliel após a reunião e, generosamente, ele nos informou que notou que ela atua “junto a profissionais que cuidam de crianças” como forma de reparação de alguma coisa. A impressão que a energia dela repassava era de compaixão e imensa entrega e dedicação ao trabalho, ou seja, causou uma boa impressão a ele. Ele igualmente percebeu um “séquito de enfermeiras por ela coordenada” que distribuía uma “chuva de luz prateada”, direcionada às cabeças dos doentes que se encontravam em uma possível enfermaria, com leitos lado a lado.

Como já vimos bastante na literatura espírita, e especialmente no livro que nos encontramos estudando, nossas reuniões não afetam apenas a nós, mas costumam ser úteis nas atividades espirituais de auxílio e recuperação de espíritos em estado de perturbação ou sofrendo efeitos negativos das escolhas que fizeram na última encarnação. O que falamos na reunião não fica apenas entre ouvidos humanos. Os estudos são úteis para um número indeterminado por nós de pessoas desencarnadas. Lembrei da expressão cunhada pelo autor materialista português: “Nossos amigos, os discípulos de Allan Kardec”.

Madeleine Pelletier (1874-1939), identificando-se, despertou nossa curiosidade usual. Buscando na internet, descobrimos que foi a primeira mulher a obter o diploma de psiquiatria na França.

Anne Pelletier teve uma vida complicada. Ficou órfã de pai aos dez anos de idade, sendo de família pobre, e abandonou os estudos na adolescência, época em que tinha muitos conflitos com a mãe cristã. Aproximou-se de grupos socialistas e anarquistas que a influenciaram a voltar a estudar aos vinte anos. Obteve o baccalauréat em 1896, equivalente ao nosso ensino médio, e inscreveu-se no PCN, um curso que certificava estudos químicos, físicos e naturais, pré-requisito para tornar-se médica. Não se sabe quando ao certo ela adotou o nome de Madeleine.

Achei curiosa a troca. Anne seria o nome da mãe de Maria, e Madeleine da apostola apostolorum, a mais reconhecida apóstola de Jesus. Haveria alguma relação na escolha do novo nome com a tradição cristã?

Depois do PCN, Madeleine se interessou pela antropologia, onde trabalhou com Letournou e Manouvrier nas teorias de Broca sobre o cérebro e o crânio. Observando que essas ideias eram usadas como forma de explicação da pretensa inferioridade intelectual da mulher, ela trocou seus estudos por um concurso para residência médica em asilos, para o qual teve que lutar, porque era necessário ter direitos políticos e mulheres não votavam na França, naquela época.

Ela conseguiu vencer as barreiras e, em 1903, defendeu a tese “A associação de ideias na mania aguda e no atraso mental”. Se a memória não me engana, o tema estava fervilhando na Europa, e foi estudado por Jung que fez publicações em psiquiatria com estudos experimentais de associação de ideias. O conceito de mania era diferente do atualmente empregado pelos psiquiatras.

Ela trabalhou então em dois “asilos” franceses, entrou na maçonaria e publicou artigos técnicos. Com um consultório pouco procurado, tornou-se médica de urgências, e passou a atender muitos pobres, acompanhada por um agente de polícia.

Na sua vida política, filiou-se a um movimento de mulheres (“Solidariedade das mulheres”), aproximou-se da Seção Francesa Internacional Operária (SIOF), mas os abandonou, desencantada, em 1910. Trabalhou na primeira guerra mundial pela cruz vermelha, auxiliando combatentes. Após mais um desencanto, tornou-se antimilitarista.

Ela teve uma incursão no Partido Comunista e viajou à Rússia pós-revolucionária, onde se desencantou das condições de vida da população e com a ação da polícia. De volta à França, suas publicações não agradavam muito ao partido, e ela acabou se afastando em 1926.

Ela se aproximou novamente de anarquistas e socialistas, vivendo como médica, e acompanhando a questão fascista que ganhava dimensão na Europa e mesmo na França. Em 1937, anos após ter sida acusada de praticar abortos (a acusação era sem comprovação) ela teve um AVC e ficou hemiplégica, tendo que aceitar a ajuda dos amigos. Dois anos depois, em um ambiente de “caça aos abortistas”, foi acusada de participar de um aborto de uma jovem de 13 anos, mas declarou-se inocente. Reconheceu-se que ela não poderia tê-lo realizado pela sua condição física, contudo, considerada um perigo “para si, para outrem e para a ordem pública”, foi internada em uma clínica psiquiátrica, onde desencarnou após um segundo acidente vascular cerebral. (A maioria das informações foi retirada da Wikipédia brasileira e francesa).

Ana é médica pediatra e intensivista, e atende a crianças pobres ou de classe média em um posto de saúde. Passados mais de oitenta anos da desencarnação de Pelletier, vê-la em uma reunião mediúnica, dedicando-se à infância e ao atendimento da pobreza não nos causa nenhum assombro. Sua dedicação aos pobres e à emancipação da mulher, assim como seu ideal de um mundo menos desigual, pesam na balança em seu favor.

Desnecessário dizer que Gamaliel não conhecia a história de Madeleine, que nos pôs a pensar bastante sobre nossas ações e sobre a sabedoria divina, sempre abrindo caminhos novos para seus filhos, mesmo os que não acreditam nEle. Madeleine Pelletier me fez lembrar também de outra mulher que teve passagem por organização comunista e que ficou famosa após a morte, através da mediunidade de Chico Xavier, dessa mesma época, só que brasileira e teosofista: Nina Arueira.

30.5.20

A HISTÓRIA DA REDAÇÃO E TRADUÇÃO DA BÍBLIA CONTADA POR HISTORIADORES


Bíblia de 1200 anos recuperada de contrabandistas


Os historiadores e arqueólogos têm se dedicado bastante a escrever uma história baseada em documentos, achados arqueológicos e história comparada do cristianismo, com bons frutos. Na França do século 19 iniciou-se o afastamento entre a teologia e a história do cristianismo, que ficou cada vez menos apologética e mais compreensiva e crítica.


A cada dia se descobre mais sobre a Bíblia e, em especial sobre os textos dos cristãos primitivos. A hipótese mais aceita pelos historiadores é que houve inicialmente uma tradição oral, que os primeiros escritos devem ter sido as Cartas de Paulo e que aos poucos surgiram registros escritos dos ensinos de Jesus. Aceita-se também, nos dias de hoje, que o primeiro evangelho escrito foi o de Marcos (64), sucedidos por Mateus e Lucas (70-80). É também aceita uma hipotética fonte Quelle, também um proto-evangelho, que teria sido consultada na formação dos dois últimos evangelhos sinóticos. Analisando o grego e as imagens contidas no evangelho segundo João (90-110), os estudiosos entendem que ele teria sido o último a ser escrito ou composto, já influenciado pelo pensamento grego. O livro de Atos dos Apóstolos seria uma espécie de continuidade do texto do evangelho segundo Lucas. 



Os historiadores não têm como afirmar quem escreveu os evangelhos que lemos hoje. Sabe-se que eles se originam da tradição oral e, talvez, escrita, daqueles que lhe compõem o nome. Assim, os evangelhos segundo Lucas e Mateus, se originariam dos ensinamentos desses dois hagiógrafos sobre Jesus, embora essa posição não seja consensual. O evangelho de Marcos, tem a influência de Pedro, com quem João Marcos conviveu bastante. O evangelho segundo João é herdeiro da experiência do apóstolo considerado “mais amado”. 



Fonte: Apresentação "O cristianismo e o cristãos primitivos", Jáder Sampaio, 2020

Os textos originais não eram divididos em capítulos e versículos. Talvez tenham sido escritos como logia, ou ditos do Senhor. Frases curtas, narrativas rápidas, que aos poucos foram compondo um livro de ensinos cristãos. Eles não foram escritos com a finalidade de fazer história, nem têm finalidade biográfica, mas a de divulgar Jesus e seus ensinamentos. 


No último século descobriram-se textos cristãos no Egito (Nag Hammadi) e em Israel (Qmram) que datam dos primeiros séculos, o que ampliou o conhecimento sobre os cristãos primitivos. Sabe-se que com a divulgação do cristianismo pelos discípulos de Jesus, formaram-se comunidades pela Ásia, pela Grécia e depois por todo o Império Romano. 


Surgiram textos e textos nessas comunidades, todos tratando de Jesus e dos apóstolos, mas compostos de informações diversas dos demais, o que promovia diferenças entre as comunidades e as ideias teológicas cristãs. Diante esta multiplicidade de textos e de ideias, buscou-se um entendimento nos primeiros séculos sobre que livros deveriam ser reconhecidos e que ideias teológicas seriam corretas. Surgiu então o debate sobre as heresias, ainda no segundo século.

Essa escolha não é uma decisão fácil de ser implementada, especialmente considerando-se que algumas comunidades aceitavam um conjunto de textos e se estruturaram em torno deles, funcionando há décadas ou séculos. Surgiram estudiosos que sofreram o ataque de filósofos gregos, munidos da razão, e alguns procuraram usar a razão como forma de diálogo, ainda que uma razão serva da fé. Até nos dias de hoje nos perguntamos se as ideias rejeitadas realmente merecem anátema, e se as ideias aprovadas são as que representam o que era veiculado pelos primeiros cristãos, e se mereceram ser transformadas em dogmas.


Sabemos que os livros que hoje formam o cânon, ou seja, os 27 livros do novo testamento, foram escritos em grego popular (Koiné), com algumas palavras e expressões em aramaico, a língua falada na região da Judeia, Samaria e Galileia da época de Jesus. Há também citações do Antigo Testamento nos muitos diálogos retratados, como era costume dos judeus. O grego era uma boa escolha, porque até mesmo em meio aos judeus havia os helenistas, que cresceram em ambiente grego e falavam a língua. Assim os ensinos de Jesus atingiriam mais facilmente os chamados gentios, ou não-judeus. Pode-se dizer que o grego Koiné seria uma espécie de "língua internacional" em boa parte do Oriente Médio e na Grécia. Mesmo em Roma as classes superiores estudavam o grego e muitos liam os clássicos gregos, como é o caso do imperador Augusto.


Após o fim da clandestinidade do cristianismo no Império Romano, que aconteceu durante o governo do imperador Constantino, empreendeu-se um esforço de entendimento entre os cristãos, o que era do interesse também do imperador, que não poupou esforços para interferir no meio religioso com essa finalidade. O mais importante evento patrocinado por ele foi o Concílio de Nicéia (325), que, dentre muitas resoluções, tornou heresia a teologia de Ário ou Árius, e estabeleceu ideias para o que hoje os historiadores denominam como ortodoxia cristã. Na impossibilidade de uma solução lógica ou dialógica, optou-se por uma escolha política e uma espécie de imposição da maioria, que é questionada até os dias de hoje pelos estudiosos, em função da intervenção do Estado Romano. Na literatura espírita, Wallace Leal V. Rodrigues se posiciona dessa forma no livro A esquina de pedra.



Eusébio de Cesareia, em 330, tinha uma lista de 26 livros para o Novo Testamento muito próxima da atual. Ele considera questionáveis (antilegomena) diversos livros hoje considerados pseudepígrafos ou apócrifos, e até mesmo o Apocalipse de João ficou como dúvida.



No Sínodo de Laodiceia (363-364) ficou acertado que os livros aceitos seriam os atuais, com exceção ao Apocalipse de João. Houve também a proibição dos livros não-canônicos nas igrejas, o que vai fechando a possibilidade de discussão de ideias não pertencentes ao conjunto do cristianismo chamado ortodoxo pelos historiadores. Um texto que trata claramente sobre a reencarnação, como o Apocalipse de Paulo, não pode ser lido pela comunidade de cristãos (uma vez que pela palavra igreja não se entendiam as construções ou templos, mas o conjunto de membros). Os textos de Pelágio, que defendem o livre-arbítrio também. Podemos considerar essas decisões como precursoras do Index Prohibitorum, só que ao contrário (definiram o que se pode ler, em vez de o que não se pode ler).



A criação da vulgata latina que é a Bíblia em latim, é mais ou menos próxima da época em que o Império Romano permitiu a prática do cristianismo, e depois o tornou religião oficial do império. Viu-se que a língua grega, com que haviam sido escritos os textos do Novo Testamento, atingia apenas parte do império: não era mais a língua universal dos Romanos. É possível também que os interesses em se aprovar uma teologia única para a Igreja visse na tradução para o latim uma forma de divulgar os textos que compunham o cânone por todo o império e isolar os textos escritos em grego, copta ou outras línguas, considerados apócrifos. O mais importante é que quem falava latim (todo o Império Romano, presumo) e fosse alfabetizado, poderia ler a Vulgata. Os cristãos poderiam realizar suas práticas em latim, os responsáveis pela instrução poderiam ensinar o evangelho em latim e com essa língua, todo falante de latim teria acesso ao cristianismo. A palavra “Vulgata” significa para o povo.



Os atores dessa aventura cristã foram o papa Dâmaso I (Bispo de Roma), que em 383, baseando-se nas decisões do Concílio de Roma (382). Jerônimo de Estridão corrigiu a Vetus Latina, que era uma tradução latina do Novo Testamento existente, e terminou a tradução do Antigo Testamento hebraico para o latim em 405, em sintonia com o judaísmo rabínico, que considerava inadequada a Septuaginta (o antigo testamento escrito em grego).



Os anos se passaram, o cristianismo foi divulgado em outros povos, o Império Romano do Ocidente foi invadido por povos bárbaros, e embora muitos adotassem o latim, as línguas foram se modificando até atingir a pluralidade de línguas europeias que temos hoje. 



O império Romano do Oriente tornou-se o Império Bizantino, e a língua falada era o grego, que no início coexistiu com o latim e depois foi predominando. A igreja expandiu-se aos povos germânicos, eslavos e foi para a península escandinava e para as ilhas britânicas. Os missionários, para poder evangelizar, aprendiam e ensinavam o cristianismo nas línguas locais. A Bíblia, contudo, continuava em latim.



Passaram-se os anos e o latim era ensinado nas escolas para uma pequena elite religiosa e política e intelectual, mas não mais pelo povo. Perdeu-se o objetivo inicial, que era levar o conteúdo do texto cristão para o vulgo. Nessa história, a tradução da Bíblia para as mais diversas línguas faladas pelos cristãos só aconteceu após a reforma protestante. 



Como Lutero e os reformistas precisavam explicar ao povo a sua interpretação da Bíblia, isso só seria possível se o povo fosse capaz de ouvir e entender o que havia nas escrituras em seu próprio idioma. Foi uma das atividades que Lutero acabou realizando, após alguma relutância: traduzir a Bíblia para o alemão, o que fez em 1534. Com o surgimento da imprensa (1430), um século antes, as pessoas podiam ter mais acesso ao texto básico do cristianismo. 



Após Lutero, “protestantes” começaram a traduzir a Bíblia para seus idiomas, e, ainda assim, o Concílio de Trento (1546 – 1563) "bateu o pé", insistindo no latim. 

Li um livro  no qual os conservadores argumentavam que se a Bíblia fosse traduzida para as línguas faladas nos países, e qualquer pessoa pudesse ler, surgiriam interpretações “erradas” da leitura das traduções, o que geraria confusão [1]. A questão era tão delicada, que só no Concílio Vaticano II (1961 – 1962) a Igreja Católica declarou que as missas fossem celebradas nos respectivos idiomas das diferentes comunidades, encerrando o que se pode chamar de período latinizante.


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[1] O livro dos Mártires, John Foxe. São Paulo: Mundo Cristão. Versão Kindle.

12.5.20

AUBRÉE E A QUESTÃO DO RELIGIONÁRIO

Marion Aubrée

Há cinco anos ajudei a organizar o 1º Encontro de Cultura e Pesquisa Espírita – XII Colóquio França-Brasil, que aconteceu no auditório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Acabei ficando de “organizador fantasma”, porque o voo para o Rio atrasou e não pude participar da mesa de abertura, e nenhum dos trabalhadores do evento me reconhecia como tal. 

Tive, contudo uma experiência curiosa com a Dra. Marion Aubrée, coautora do livro “A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil”[1]. 

Sabendo da sua presença, levei um exemplar de seu livro, já esgotado em português, para ela autografar. Eu tenho uma coleção de livros autografados pelos respectivos autores e o momento de colher a dedicatória e assinatura, ainda que breve, é a oportunidade de conversar com quem lemos.

Levei o livro até ela, que para minha surpresa, me perguntou:

- Você é pesquisador ou espírita?

Diante do inusitado da questão (considerada indiscreta em nossa cultura), e da forma incisiva da pesquisadora, respondi:

- Espírita.

Não quis render o assunto.

Na verdade, me considero mais estudioso espírita que pesquisador de espiritismo. A carreira de pesquisador demanda formação, produção continuada em uma determinada linha de pesquisa, publicação em periódicos revistos por pares, interlocução com os demais pesquisadores da área e domínio da literatura até então publicada sobre seus temas de pesquisa, para começar. Acho que atendo apenas parcialmente esses critérios.

Outra questão pertinente, que afeta não apenas a ciência da religião, mas a ciência política e as outras ciências humanas e sociais, é a distinção entre o pesquisador e o religionário [2]  ou o cientista e o apologista de uma religião [3]. A questão não se reduz aos métodos empregados (o religionário pode usar métodos experimentais, observacionais, hermenêuticos e fenomenológicos de pesquisa), mas compreende também, como destacaria Kuhn, o diálogo com uma comunidade de cientistas da mesma área e o debate teórico (que envolve a apreensão de teorias explicativas concorrentes e uma argumentação racional).

Esta questão implica que as pessoas que estudam um determinado tema, devem ser capazes de certo afastamento dele, mas não há fronteiras rígidas sobre quem pode ou não estudá-lo. O cientista político precisa ser apolítico para ingressar nesta área do conhecimento? Quem estuda o feminino, precisa ser homem (para não estar imiscuído na condição do gênero) ou mulher (para ser capaz de identificar as idiossincrasias e valorizar as lutas do gênero)? Seria, portanto, um impedimento para um católico estudar o catolicismo e para um espírita estudar o espiritismo? 

Obviamente que não. Não há qualquer objeção para um paciente renal estudar medicina e tornar-se nefrologista. Não há questão de gênero relacionada à escolha pela ginecologia. Há, por outro lado, cuidados com o envolvimento emocional em questões da produção de conhecimento. 

Meu professor de Filosofia, Carlos Drawin, dizia que estamos imersos no positivismo. E essa distinção rigorosa entre religião, filosofia e ciência, com demérito das duas primeiras, é uma das propostas de Auguste Comte.

Não se advoga também ceticismo (radical) ou agnosticismo como cuidados para se fazer ciência da religião, posto que são posições pré-estabelecidas com relação à religião, em igual perspectiva à crença. Não importa, em física, se o cientista acredita ou não na “teoria das cordas”, ele não é obrigado a fazer uma declaração de fé (ou de isenção) para produzir conhecimento. É necessário que seu envolvimento não seja tão emocional que venha a perturbar sua avaliação, mas alguma crença na capacidade de explicação de sua teoria é até necessária para que ele se engaje no projeto de pesquisa.

A isenção não é uma atitude dada a priori, mas uma atitude que o pesquisador desenvolve, comprometendo-se a avaliar os diversos pontos de vista sobre seu objeto (ou sujeito) de pesquisa e a concluir a partir da força das evidências encontradas, da lógica empregada e de outros elementos que não a sua opinião anterior à pesquisa. O processo de pesquisa é um caminho para a construção de um conhecimento novo ou do qual o conhecimento antigo sai ainda mais confirmado.

A pergunta de Marion, portanto, poderia ter sido respondida diferentemente: sou um pesquisador que é, ao mesmo tempo, adepto do espiritismo, da mesma forma que um militante de qualquer partido político pode se tornar um cientista político (e os tínhamos na UFMG).

Bem, após ter exigido uma declaração de fé, a autora me escreveu uma dedicatória gentil: 

“Para Jáder, esse livro que mostra o estreitamento das nossas duas culturas através da crença espírita. Rio, 31/07/2015”


[1] AUBRÉE. Marion; LAPLANTINE, François. A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil. Maceió, EDUFAL, 2009. Traduzido por Maria Luíza Guarnieri Atik e outros.
[2] Do inglês religionist.
[3] CRUZ, Eduardo. Estatuto epistemológico da ciência da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.) Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013. p.47.

7.5.20

COMO PREPARAR UM EXPOSITOR PARA A CASA ESPÍRITA?


Palestra de Raul Teixeira em Austin - 2010

Uma questão em aberto nas casas espíritas é a formação das pessoas que trabalham voluntariamente como expositores espíritas em reuniões públicas. Há muitos centros espíritas que organizam uma agenda de estudos diária, ou de diversas vezes ao dia, propõem títulos ou assuntos sobre os quais se deve falar e não consideram se têm ou não expositores preparados para a realização da tarefa. Os dirigentes das reuniões têm as seguintes opções: fazer eles mesmos as palestras, buscar fora do centro espírita ou identificar no centro espírita pessoas que gostam e têm facilidade para falar, para fazer as conferências.

Nesse verdadeiro “ensaio e erro”, de se convidar pessoas desconhecidas para fazer estudos, começam a acontecer os “acidentes de percurso”. Alguns dirigentes ainda consultam amigos estudiosos da doutrina espírita em busca de referências sobre os possíveis expositores, o que não deixa de ser um avanço, mas ao mesmo tempo é um risco, porque vejo muitos estudiosos que não assistem palestras nas casas espíritas e, por isso, não conhecem os “novos valores”, ou fazem juízo apenas por uma palestra ou um estudo que viram. Essa espécie de “telefone sem fio” deveria ser apenas um ponto a mais para identificar expositores talentosos ou promissores, mas se corre o risco de, diante de um dia infeliz, que qualquer um de nós tem, um potencial palestrante ser injuriado pela rede subterrânea.

Algumas instituições de Belo Horizonte-MG fizeram listas de expositores, mas não sei como foram escolhidos e como são atualizadas. Há listas com alguma sofisticação, nas quais se identifica os dias disponíveis e os assuntos de domínio do expositor. Embora úteis, sempre fui crítico dos expositores itinerantes, aqueles que falam em todos os lugares mas não são de lugar nenhum, que não têm outros vínculos com os que o assistem e, muitas vezes, nem em quem o convida. Nada contra ter convidados, eles deveriam ser a exceção e não a regra, sob o risco extremo de termos uma casa espírita formada exclusivamente por frequentadores e "captadores" de expositores, ou seja, onde ninguém está habilitado a ensinar o espiritismo.

Em nossa casa, durante algum tempo, os expositores que iam a público foram avaliados de forma anônima e individual por algumas pessoas que assistiam à reunião, eram reconhecidas por sua sensatez e nenhum extremismo, e que preenchiam um “check list” rápido de itens, podendo fazer comentários igualmente rápidos. Eu sempre queria o resultado coletivo dessas avaliações, sem identificação dos expositores, que me dava alguma informação sobre o que melhorar nesta tarefa, mas também esse instrumento é limitado, uma vez que atender os critérios de itens como pontualidade, por exemplo, não assegura, por si, um trabalho bem feito. E o número de itens enumerados, não assegura uma avaliação completa, compreensiva, que teria uma natureza qualitativa.

Vi também muitos cursos de “expositores espíritas”, que tinham por núcleo o ensino de “técnicas de oratória”, o ensino de didática, ou de estratégias de ensino-aprendizagem. Eles têm sua utilidade, desde que não queiram “formatar um expositor”. Há muitas formas válidas e diferentes entre si de expor ou ensinar o espiritismo, e muitas personalidades diferentes. Algumas pessoas sabem contar histórias, outras falam prendendo a atenção, algumas explicam com clareza, outras usam com maestria os recursos áudio visuais, algumas usam bem o humor em sua fala, outras dialogam bem com o público e há quem consiga usar técnicas de grupo em públicos de até cem pessoas, sem prejudicar o tempo. Uma coisa é certa: todos nós temos limitações. A essência desses cursos, além de dar sugestões de aperfeiçoamento, deveria explorar a identificação e desenvolvimento de competências dos participantes, para que eles se conheçam e façam melhor o que têm potencial para fazer bem. O mero estudo da técnica oratória ou didática não assegura o conteúdo. Pode-se falar tolices muito bem, e deixar as pessoas com a sensação de que passaram um momento ótimo, sem perceberem que aprenderam coisas esdrúxulas.

Outra coisa que me auxiliou nesse percurso foi a crítica de pessoas que eu respeitava, como estudiosos da doutrina e expositores experientes. Eles tiveram a caridade de me procurar em particular e expor pontos que eu poderia modificar ou melhorar. Algumas críticas se baseavam em uma forma muito pessoal de ver o trabalho de exposição, mas outras eram muito perceptivas e bem fundamentadas. Há o que conseguimos melhorar e o que não conseguimos, paciência.

Em um seminário que fiz recentemente, uma das participantes percebeu que minha esposa desempenhava esse papel, às vezes fazia sinais quase imperceptíveis de sugestões para o que eu falava ou como eu falava. Ela me procurou no intervalo e me disse, de forma amigável e bem humorada: 

- Ela é a sua “Joanna de Ângelis”, não é? Só que encarnada...

Juselma Coelho

Nas reuniões de quintas-feiras, dirigidas por Juselma Coelho em nossa casa, vi uma prática formadora muito interessante. Havia pessoas que frequentavam há muito tempo a reunião e que foram se sentindo à vontade com o grupo, a casa e a doutrina. Ela pedia que as pessoas lessem em casa um texto pequeno e o expusessem por quinze minutos, no início da reunião. Assim, em um lugar secundário, a pessoa ia desenvolvendo suas competências de expositor, protegida dos erros e do lugar central do estudo da noite.

Penso que todo espírita deveria ter uma visão do espiritismo como um todo. Conhecer as teorias que formam o espiritismo, sua fundamentação, os autores principais e até mesmo as polêmicas, sem se esquecer da história do espiritismo. Não dá para pensar em um expositor que não tenha esse tipo de conhecimento como um pré-requisito para a plena realização de sua tarefa. Como alguém vai expor algo que desconhece? Uma forma que a Federação Espírita Brasileira tem incentivado nas casas espíritas é o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita – ESDE e sua sequência, o Estudo Avançado da Doutrina Espírita - EADE. Penso que esse é um espaço interessante para se desenvolver competências de expositor, uma vez que é um lugar menos formal, com a presença de responsáveis pelo estudo, em que as pessoas podem preparar algo e apresentar, em um ambiente participativo. Aí cada um vai percebendo se a exposição espírita é uma atividade que as desafia, agrada e que podem fazer bem.

Vendo como a formação dos expositores espíritas é informal, e muitas vezes inexistente, passo a pensar como seria o futuro. Surgiram algumas faculdades oferecendo cursos de teologia espírita, embora todos saibamos esses cursos não se destinam a formar profissionais para um mercado, já que toda modalidade de ensino ligada ao espiritismo tem sido voluntária, pelo menos nos centros espíritas. Espero que não haja profissionalização desses trabalhadores, como no movimento espiritualista moderno dos países de língua inglesa, em que pese algumas iniciativas de seminários pagos de professores que tratam de temática espírita.  

Além das experiências citadas continua havendo um desafio para as instituições espíritas, e até mesmo diante de uma tendência de mudanças que hora acontecem, como a educação à distância e as novas tecnologias. Elas, ao mesmo tempo em que são capazes de levar ao mundo o trabalho de um estudioso local, acabam colocando milhares ou milhões de publicações, tornando-as de difícil acesso. Considerando que se constrói uma relação de confiança com um expositor com o tempo, é muito possível que um trabalho de qualidade fique na rede sendo acessado apenas por amigos e colegas, assim como livros que autores desconhecidos publicam. Outro problema também é preparar os expositores para essa nova mídia. Uma boa exposição feita presencialmente, pode ser inadequada a esse novo formato, porque a relação do “navegador” com as mídias é diferente da do assistente na sala ou auditório presencial, a começar do vínculo emocional e do comportamento esperado quando se está no meio de outras pessoas.

Como preparar os expositores então? Como desenvolver suas competências? Quais são suas competências e para quais contextos? O que deve conhecer um expositor para fazer seu trabalho de forma bem fundamentada? Estas perguntas continuam em aberto, espero que o texto, grande para um blog, seja um incentivo para pensarmos de forma mais substancial sobre a questão. Fale um pouco de sua experiência e contribua com o debate.