18.5.19

ESPIRITISMO: CRENÇA COMPARTILHADA OU DOUTRINA FILOSÓFICA?




Há uma diferença entre crenças compartilhadas e doutrinas filosóficas. As primeiras se baseiam em um corpo de ideias, racionais ou não, com ou sem base empírica, propostas ou mantidas por pessoas consideradas autoridades por um grupo. Um exemplo famoso de crença compartilhada é o “senso comum” ou conhecimento popular, que é um conjunto de crenças aprendidas em sociedade que são passadas entre gerações e aceitas pelos membros dos grupos sociais.

Recordo-me das famílias que atendíamos no Lar Espírita Esperança, e com as quais conversávamos sobre noções de puericultura. Muitas mães, oriundas “da roça”, aprenderam em suas comunidades que se deve tratar do umbigo do recém-nascido com teias de aranha, fumo de rolo ou outras substâncias, que a medicina mostra trazerem riscos de saúde para o neonato, infecções ou outros problemas. Indicávamos o uso de álcool, com base na autoridade médica, mas muitas mães recusavam, dizendo que demorava muito para cair o umbigo.

Nas nossas cabeças, tratava-se de uma disputa de autoridades. Quem deveria ser considerado? Muitas mães achavam que suas mães, avós, vizinhas e outras pessoas “experientes” sabiam o que fazer. Nós acreditávamos na medicina, porque os médicos baseiam suas práticas em conhecimentos verificados, registrados e comparados, com uma casuística muito maior que a do conhecimento popular. Entre nós e elas havia apenas uma disputa de autoridades, mas espera-se do conhecimento médico uma decisão se possível consensual, com base em estudos, observações e comparações estatísticas.

Quando pensamos no Espiritismo, vemos um corpo imenso de proposições, a partir dos estudos de Allan Kardec. Que proposições devemos aceitar como espíritas? O próprio Kardec nos ensinou que muitas delas partiram de observações, outras de raciocínios filosóficos, outras de consenso entre espíritos considerados superiores, que se comunicavam por médiuns diferentes. Mais à frente, quando publicava a Revista Espírita, Kardec dá mostras de levar em consideração a análise e a crítica oriunda dos diversos grupos e leitores do periódico.

Como avança o pensamento espírita? Deveria ser da mesma forma. Novas proposições deveriam ser analisadas racionalmente, as observações que fundamentam essas proposições deveriam ser explicitadas e compartilhadas. Com certeza, a reputação dos médiuns é importante, sua participação voluntária (sem qualquer contrapartida econômica) no trabalho mediúnico também, mas sua reputação em si não deveria assegurar a veracidade ou não da sua produção mediúnica.

Qualquer médium é capaz de ser enganado por espíritos, de substituir as ideias de espíritos comunicantes por suas próprias ideias (sem o perceber), de não entender direito o que lhes é intuído e registrar algo originalmente certo de forma equivocada. Os médiuns são pessoas, então mesmo que tenham seu compromisso com a reforma íntima, têm seus sentimentos, suas vaidades, seu orgulho pessoal, e suas emoções podem muito bem interferir em questões que deveriam ser solucionadas de forma racional, como todos nós o fazemos em nossas vidas.

Quanto maior o respeito que tenhamos a um médium, cabe a um estudioso espírita perguntar-se sempre qual é o fundamento do que se afirma em nome do espiritismo. A assertiva respeita a razão? A proposição entra em contradição com o corpo doutrinário? Nesse caso, o que justificaria uma mudança de posição até então adotada? Que argumentos foram construídos? A interpretação do que diz o Espírito está correta? Onde mais encontramos ideias de mesmo teor? Há alguma base na observação ou experimentação científicos?

Alguns espíritas e algumas casas espíritas, contudo, não avançam em nível de análise. Escolhem autores e expositores e aceitam em bloco tudo o que afirmam em nome do espiritismo. Têm uma noção superficial do sentido dos conceitos, não fazem análise racional do que dizem, não consideram importante verificar a origem das teorias que esposam. Afirmam que o espiritismo é também uma filosofia, mas desconhecem o que é filosofia. Quando são questionados, geralmente respondem algo que se resume na expressão latina: magister dixit, ou seja, “o professor disse”. Outra expressão latina também ilustra bem essa forma de trabalhar: “Roma locuta, causa finita” ou seja, “Se Roma falou, a causa está encerrada.” É uma forma de pensar composta de dogmas, ideias indiscutíveis, mesmo que pensem o contrário.

O professor, ou Roma, pode ser um expositor famoso, um médium prestigiado, um dirigente de casa espírita, ou um “guia espiritual”. Todos os cuidados com o conhecimento propostos pelo velho Kardec são esquecidos, e o que passa a valer é uma espécie de referendo grupal das opiniões. O membro da casa espírita passa a se preocupar mais com a conformidade ou não de uma ideia com as dos demais membros que com sua realidade ou coerência. É algo como: creio porque todos creem nisso também. A crença coletiva passa a ser mais importante que a verdade, a razão e até mesmo o bom senso.

Pensemos nisso. Estudar o espiritismo é algo que exige da pessoa interessada mais que a compreensão e a fé; exige compromisso com a razão e com a busca da verdade.

2 comentários:

  1. Excelente. Um texto para ser compreendido por todos e que deve ser lido e discutido nas Casas Espíritas.

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  2. Então vamos estudar Allan Kardec, deixar de endeusamemto dos médiuns renomados ( são 32 obras que Allan Kardec deixou )!

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