27.4.20

JAPHET, ROUSTAING E KARDEC



A atriz Julia Konrad caracterizada como Madame Japhet


Recebi um comentário imensamente interessante, que possibilita muitas análises, feito pelo leitor Paulo Sérgio Fonseca Antunes. Ele se refere à publicação “Curiosidades: Allan Kardec e Madame Japhet”. https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html

É o que está abaixo:

Fala-se que o nome Allan Kardec foi revelado ao Professor Rivail pelo espírito Zéfiro (Zephir), em reunião mediúnica na residência das irmãs Baudin, utilizando-se para isto a cesta com um lápis (roque). Na ocasião, o Professor tomou conhecimento de que Allan Kardec foi o nome dele em uma milenar reencarnação entre os druidas. Sabe-se que a primeira edição de O livro dos Espíritos continha pouco mais de 400 perguntas, e que na segunda edição passou a ter mais de 1000 perguntas, e que, a família Baudin saiu de Paris ainda no segundo semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a outra médium (sonâmbula profissional) sobrecarregada. Médiuns profissionais existem até nos dias de hoje. Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não havia acontecido, quem fazia ideia de que isto seria utilizar erradamente este dom? Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet colaborou gratuitamente sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que desejasse ter seu nome divulgado no livro para fazer um marketing pessoal. Fala-se que após o desencarne do Mestre de Lyon (1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio ganancioso com Pierre Gaetan Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, criada por Allan Kardec em janeiro de 1858. Sendo assim, não é de se estranhar que a médium Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava profissionalmente a mediunidade há mais de dez anos, tivesse atitudes mais nobres. Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação, pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de 30 anos apenas entre duas reencarnações.

Vou discorrer sobre as muitas questões em forma de itens:

1. “Fala-se...” Essa foi a primeira observação que fiz. Para se fazer história, ou mesmo apenas memória, é preciso conhecer a fonte, de preferência a fonte primária. Isso porque cada autor conta a história de um jeito, e tem uma lógica e um conjunto de fontes como base para construção do seu discurso. Tudo o que o Paulo falou, é mais ou menos verdade, mas foi tirado de autores muito diferentes, então ficou uma espécie de “samba do crioulo doido” (perdoem a expressão, não sei se ainda é politicamente correta, mas não tem nenhuma intenção racista ao ser usada).

2. Eu citei como fonte no artigo que originou as dúvidas, um jornal inglês e um texto atribuído a Alexander Aksakof. Todos sabemos que Aksakof não é nenhum especialista em Allan Kardec, e que os lamentos da Madame Japhet criaram uma espécie de “resistência” ou “preconceito” dele com relação ao fundador do espiritismo. Coisas de ser humano!

3. O nome de Allan Kardec foi revelado pelo espírito Zéfiro na casa das Baudin, usando um lápis (roque).

Eu procurei em Obras Póstumas e não encontrei essas informações, embora lá Kardec fale das Baudin e de Zéfiro.

Quem atribui o nome de Roc (e não roque) ao “lápis de pedra com que os espíritos rabiscavam em uma ardósia comum” (p. 98-99) foi Canuto Abreu, no livro “O livro dos espíritos e sua tradição histórica e literária”. Como o título já o disse, o livro não é exclusivamente histórico e Canuto escreveu do que ouviu falar, sem os rigores da metodologia da história oral, ou seja, ele aceita que algumas coisas são imaginárias, lendas, que passaram a ser contadas e recontadas no meio espírita francês, que ele conheceu no início do século 20. Não dá para citar como se fosse uma fonte histórica, portanto. Nesse livro também não encontrei menção à origem do nome de Kardec, apenas uma menção à sua reencarnação no meio dos druidas (p. 99).
Consultei, então um belo trabalho de Eugênio Lara (https://questaoespirita.blogspot.com/2013/08/sobre-o-pseudonimo-de-denizard-rivail.html ) que mostra diversas fontes, mas admitindo a tradição oral e a falta de documentação clara do próprio Kardec. Quem sabe a publicação das cartas de Kardec esclareça essa questão.


Primeira edição de "O livro dos espíritos"

4. A primeira edição de “O Livro dos Espíritos” tinha 400 perguntas e a segunda tinha “mais de mil perguntas”.

Tenho duas traduções da primeira edição de O Livro dos Espíritos. A de Canuto Abreu e a de Evandro Noleto Bezerra. Ambas têm 501 perguntas, fora os elementos pré-textuais e o epílogo.

A edição atualmente publicada de “O livro dos espíritos” tem 1019 perguntas, os elementos pré-textuais e uma conclusão (Não mais epílogo). Consultei duas traduções atuais, a de Evandro Noleto Bezerra (Kindle) e a comemorativa de Guillon Ribeiro.

Sobre as mudanças realizadas por Allan Kardec em “O Livro dos espíritos”, enquanto estava encarnado se pode ler o “O livro dos espíritos: uma análise comparativa entre a 1ª., a 2ª e até a 16ª edições”, de Luis Jorge Lira Neto, no livro “O espiritismo da França ao Brasil: estudos escolhidos.”, publicado pela USE-SP e pela LIHPE.

5. "a família Baudin saiu de Paris ainda no segundo semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a outra médium (sonâmbula profissional) sobrecarregada”

Essa é a menos provável de todas as afirmações até agora. Kardec fala em Obras Póstumas que as duas Baudin se casaram no fim do ano após a publicação de “O Livro dos Espíritos” e que “a família se dispersou” (p. 271). 

Quem auxiliou bastante na revisão de “O Livro dos Espíritos” foi a Mme. Japhet, como publiquei no texto do EC em questão https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html segundo o próprio Allan Kardec. Japhet era sonâmbula profissional, mas trabalhou voluntariamente no livro, e nunca lhe faltaram médiuns. Na página 270 de “Obras póstumas”, 17ª edição, AK fala no concurso de “mais de dez médiuns” no trabalho. Na fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Kardec cita Ermance Dufaux como médium principal (Obras Póstumas, página 295) e uma frequência no local de “15 a 20 pessoas”, ocasionalmente de até 30 pessoas.

6. "Médiuns profissionais existem até nos dias de hoje. Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não havia acontecido, quem fazia ideia de que isto seria utilizar erradamente este dom?"

 Com base nas fontes citadas, cabem dois comentários. Primeiro, já citado, que Kardec agradeceu a colaboração voluntária de Mme. Japhet. Outro estudo, que foge ao escopo desse comentário é distinguir e comparar o sonambulismo, em prática em Paris antes do espiritismo, fruto do movimento que o magnetismo animal de Mesmer provocou, da prática mediúnica, talvez existente em Paris sob a influência dos trabalhos de Emmanuel Swedenborg.

7.       Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet colaborou gratuitamente sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que desejasse ter seu nome divulgado no livro para fazer um marketing pessoal.

Concordo. Acho bem possível.

Rue de Valois, local da primeira sede da SPEE

8.       Fala-se que após o desencarne do Mestre de Lyon (1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio ganancioso com Pierre Gaetan Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, criada por Allan Kardec em janeiro de 1858.

Dois autores recentes têm promovido uma releitura da história e da imagem que tínhamos de Pierre-Gaetan Leymarie: Simoni Privato e Adriano Calsone. Eles publicaram respectivamente “O legado de Allan Kardec” e “Em nome de Kardec”.

A ideia de um conluio entre Roustaing e Leymarie não tem base historiográfica. Após a saída da prisão Leymarie se aproximou de diversas instituições não-espíritas: a sociedade teosófica (Privato, p. 223, Calsone p. 55), da pneumatologia universal (Privato, p. 224) e do roustainguismo através de Jean Guérin, divulgador de Roustaing, que ofereceu dinheiro para que a “Sociedade Científica de Estudos Psicológicos”, dirigida por Leymarie instituísse um concurso literário espiritualista (Privato, p. 239). Havia, da parte de Guérin, o interesse de divulgar o roustainguismo, e Leymarie administrava uma empresa em situação econômica frágil.

Não vejo Leymarie, nem como o herói, construído a partir de sua possivelmente injusta prisão em nome do espiritismo, nem como um vilão, que sempre desejou enriquecer a partir do espiritismo, mas como homem frágil, com bons e maus momentos, que tornou-se administrador da Sociedade Anônima, continuadora da obra de Kardec, em 1871. (Privato, cap. 10 e 11). Percebo Leymarie como um sucessor da obra de Kardec sem a formação do mestre, sem conhecimento científico e filosófico. Incapaz de perceber a superioridade da ontologia, da ética e da epistemologia kardequianas, ele foi se encantando com outras doutrinas que surgiam posteriormente, tinham apelo espiritualista e se consideravam superiores. Ele foi permitindo uma espécie de “canto de sereia”, em que era cooptado com o oferecimento de honrarias, cargos e posições institucionais. E foi acreditando que as novas contribuições que chegavam deveriam ser incluídas na Livraria e na Revista Espírita, e que dariam um novo fôlego aos negócios e um avanço à doutrina espírita, o que, na verdade, era retrocesso, porque ela perderia seu caráter racional e empírico, tornando-se um movimento cada vez mais místico e ocultista. A reação às suas decisões infelizes se deu através de espíritas conhecedores de Kardec e capazes de valorizar o caráter filosófico e científico do espiritismo, dentre os quais se destacam Léon Denis e Gabriel Dellane.

Quanto à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, o que foi relatado também não é justo. Ela foi transformada em Sociedade Anônima da Caixa Geral do Espiritismo, dando prosseguimento ao Projeto de Allan Kardec de 1868, na casa de Amelie, sua viúva. Esta sociedade foi constituída para dar continuidade à Revista Espírita e “publicar os livros de Allan Kardec e outras obras sobre espiritismo” (Privato, p. 132-133), com administradores remunerados (Privato, p. 138). Cabe informar que Leymarie não era membro das diretorias, nem do conselho supervisor, não tendo sido liderança na mudança da feição da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. De instituição associativa, ela foi transformada em instituição associativa e comercial para que os livros e revistas espíritas pudessem ser editados e comercializados e render recursos para a mesma, dispensando-se a intermediação das editoras até então parceiras.

9.       Sendo assim, não é de se estranhar que a médium Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava profissionalmente a mediunidade há mais de dez anos, tivesse atitudes mais nobres.

Aqui há um grande equívoco. Japhet não tinha qualquer ligação com J.B.Roustaing. Era uma sonâmbula levada ao transe pelo magnetizador Roustan. Os nomes se parecem, mas são pessoas totalmente distintas, que viviam em lugares distintos.

Arnaldo Rocha


10 "Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação, pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de 30 anos apenas entre duas reencarnações."


Quem afirma que Chico foi a reencarnação de Japhet foi Arnaldo Rocha, viúvo de Meimei (Irma de Castro Rocha) e amigo próximo de Chico Xavier por décadas. A avaliação de Japhet pelo autor foi apressada, em função da confusão Roustan-Roustaing e da questão financeira indevidamente analisada na história. Embora a afirmação de vidas passadas demande sempre evidências sólidas para que não seja mera especulação, fica aberta a possibilidade das duas pessoas serem o mesmo espírito.

Concluindo:

Achei muito corajoso e interessante o Paulo Sérgio compartilhar conosco o que ouviu falar e o que concluiu a partir disso. Todavia, na minha opinião, a questão da história do espiritismo precisa ser discutida a partir da análise de fontes e de autores, o risco de se ficar construindo hipóteses em cima de “ouvir falar” é criar versões sem sustentação e totalmente afastadas do que já se conhece.

Não tenho a pretensão de ter uma “versão verdadeira” da história, mas apenas uma análise fundamentada, que para ser alterada (e somos todos falíveis) precisa ser contraposta com novas fontes primárias, novos autores, ou pelo menos um conhecimento produzido com os cuidados que a história oral propõe.

Não tive fôlego para citar os trabalhos que o Carlos Seth e outros estudiosos estão publicando atualmente, com base em análise de periódicos franceses e livros da época, coisa que ficou mais fácil com a digitalização e a internet.

5 comentários:

  1. Muito bom Jader,
    Assim como acho errado glorificar Leymarie, injusto demoniza-lo.

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  2. Caro amigo... Seus comentários, bem à moda kardequiana, nos lembram o bom senso e o discernimento que devem presidir a análise das questões espiritistaa, sejam de conteúdo ou históricas, de modo a se evitar os extremos, que são sempre prejudiciais à compreensão do todo... Parabéns! Abraços saudosos!

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  3. Muito bom, Jáder. Levarei para o ECK!

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  4. Excelentes essas informações, pois não nos chegam ao conhecimento em nossa rotina normal de uma Casa e nem em nossos estudos doutrinários.

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