Mostrando postagens com marcador epilepsia. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador epilepsia. Mostrar todas as postagens

11.10.08

Os Possessos de Morzine

Figura1: Morzine no mapa francês

Allan Kardec publicou um estudo sobre "possessos" na região de Morzine, Alta Savóia, pequena cidade com cerca de 2500 pessoas. O fenômeno iniciou-se com duas estudantes que alegavam ver Maria, mãe de Jesus, e que apresentavam convulsões. Elas foram exorcizadas pelo abade Pinguet em 1857 e pararam temporariamente de apresentar suas visões e convulsões.


A França anexou a Savóia em 1860 e as autoridades francesas proibiram a prática de exorcismo, tido como superstição (Harris, 1997). Outras pessoas começaram a apresentar não apenas as convulsões, mas diziam-se tomadas pelo demônio, o que levou o Dr. Artháud, de Lyon, a diagnosticar o acontecimento social de "histero-demonopatia". Cabe comentar que nesta época mal se distinguia a histeria da epilepsia, posto que pouco se sabia sobre os neurônios e seu funcionamento.



Figura2: Igreja de Morzine

As pessoas "endemoniadas" aumentaram e chegariam a quase duzentas até 1863. Morzine tornou-se um problema para a administração francesa, que, influenciada pelo espírito racionalista e materialista oriundo da revolução francesa, entendia tratar-se de ignorância, superstição ou algum quadro clínico de causas naturais.

O governo francês enviou o Dr. Adolphe Constant (ou Constans) para o local. Ele defendeu em seu relatório que a demonopatia era causada pelos seguintes fatores: insalubridade das habitações, má qualidade da alimentação e estado histérico dos doentes do sexo feminino (à época acreditava-se que a histeria era relacionada ao útero, sendo uma doença feminina). Não restringindo-se a diagnosticar, o alienista iniciou uma "cruzada" contra os doentes. Segregou-os do meio social, internando-os em hospitais de alienados e até em quartéis. Posteriormente ele viria a criar bibliotecas e cursos de dança (Harris, 1997), mas continuou suprimindo violentamente as manifestações. Algumas mulheres, em 1863 chegaram a fugir para a Suiça, com medo de serem extraditadas para as américas.

A suposta demonopatia continuou até cerca de 1873. Ruth Harris afirma que com os atos de repressão das autoridades francesas, muitos "endemoniados" passaram a dar vazão ao demônio em suas casas, sendo acobertados por seus familiares.

Vê-se que as ações propostas pelo médico não guardam muita relação com sua análise de causas. Esta última tornou-se uma espécie de "discurso científico" que justificaria os atos arbitrários que cometeu.



Figura 3: Vista atual de Morzine

A história chegou a Mirville (magnetizador) e a Kardec. Kardec trocou correspondências com médicos e espíritas locais e dá a entender que chegou a visitar a região e a ver alguns dos "possessos".

Ele publicou em dezembro de 1862 o seu primeiro artigo sobre o evento, e mais quatro outros em 1863. Constans leu alguns dos artigos e os dois entraram em debate franco sobre a questão.

Kardec desconstrói a análise de Constans. Segundo ele, não há como afirmar que a localidade fosse miserável e insalubre (outros lugares na França e na Suiça seriam mais e não apresentariam os mesmos fenômenos), não há outros sinais de má alimentação (ele encontrou poucas pessoas com raquitismo ou bócio), e a tese da histero-demonopatia, além de meramente descritiva pelo frágil avanço das ciências da época, não explicava alguns fenômenos que aconteceram no povoado.


O Dr. Alexander sintetizou os argumentos de Kardec no trabalho publicado recentemente na "Transcultural Psychiatry" da seguinte forma:

"(...) a expressão de habilidades não adquiridas (falar francês fluente e responder em linguagens diferentes, como o alemão e o latim), o conhecimento de eventos à distância (clarividência), a leitura do pensamento de outros (telepatia), transfiguração, referir-se a si mesmo na terceira pessoa ("ela", "a filha", etc.), a manifestação corrente de uma personalidade que se considera o demônio, o paciente afirmar que um poder externo o controla, o comportamento normal nos intervalos entre os episódios, pressão arterial normal apesar da intensa agitação, ódio intenso da religião e amnésia entre os episódios."

Kardec argumenta que se trata de uma obsessão coletiva, que abateu-se na localidade "uma nuvem de espíritos malfazejos", da mesma forma que já aconteceu em outros lugares. As vítimas têm sensibilidade mediúnica e "o eu do espírito estranho neutraliza momentaneamente o eu pessoal".


Figura 4: Mesmerismo
O codificador entende que "os espíritos curadores e consoladores, atraídos pelo fluidos simpáticos, substituirão a maliga e cruel influência que desola aquela população." Ele cita a correspondência do Sr. A..., de Moscou, que passou por problemas semelhante em suas terras e que tratou dos obsediados com "imposição de mãos" e "fervorosa prece".

Estes artigos de Kardec, ao lado dos que discutem a chamada "loucura espírita" são as bases de muitos dos trabalhos e terapêuticas que dispensamos hoje a médiuns, doentes mentais e pessoas em sofrimento psíquico que procuram os centros espíritas.

Um olhar espírita do século XXI, já distante no tempo, seguramente manteria a análise do codificador: há indícios de mediunidade e obsessão nestes fenômenos. Isto não significa que, em um fenômeno coletivo como este, também não pudesse haver epilépticos (que infelizmente foram asilados), histéricos ou simplesmente neuróticos impressionáveis e pessoas que viveram uma situação de estresse e de desenraizamento, devido à mudança de pátria e à intervenção repressora cultural das autoridades francesas. Junte-se tudo isto e temos uma explicação plausível para as proporções e temporalidade das pretensas possessões de Morzine.

19.5.07

Professor de Neurologia Faz Acusações ao Movimento Espírita

O professor Paulo Bittencourt, titular da cadeira de neurologia da UFSC, orientou um artigo intitulado "Tratamento em Medicina Alternativa em Pacientes com Epilepsia em Santa Catarina", publicado em português e comunicado em congresso internacional no qual faz inúmeras acusações gratuitas aos espíritas catarinenses e ao Espiritismo.

"...os centros espíritas de nosso estado filiam-se basicamente às idéias de seu mentor francês, Alan Kardec. Centros desta natureza apresentam-se à sociedade como uma forma de panacéia: tornando claras, justificando e tratando todas as doenças, disseminando entre seus praticantes a idéia conformista de que os problemas de saúde atuais são consequência de processos de vidas passadas. Resumindo, a doença atual é produto da vida de ontem, e no amanhã virá a consequência do que se fez ou não hoje. Tais centros tem uma poderosa ferramenta terapêutica que denominam cirurgia espiritual. Este tipo de procedimento, ocorre numa sequência análoga às cirurgias reais, onde o médium é uma espécie de cirurgião-chefe."

Tristes comentários. O pior é que o pesquisador não se deu ao luxo de estudar minimamente o Espiritismo para falar dele, quando muito, reproduziu o que ouviu seus pacientes dizerem, ou seja, escreve de oitiva...

Há uma contradição no texto. Panacéia ou conformismo? Panacéia é o remédio para todos os males. Se o Espiritismo possui alguma, por que o conformismo? Se conhecesse o tema sobre o qual escreve, o autor veria que não há defesa de panacéias nem apologia do conformismo em matéria de Doutrina Espírita.

Kardec e os principais autores espíritas não defendem a idéia "conformista" de que os problemas de saúde atuais são todos conseqüências de processos de vidas passadas. Se o autor do artigo e seus colaboradores tivessem avaliado a obra do codificador antes de escreverem sobre ele, teriam encontrado um pensamento muito mais complexo do que barbaramente reduziram em seu texto. Ele escreve em "O Evangelho Segundo o Espiritismo":

"De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida." (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 5)

No mesmo capítulo, mais à frente, ele escreve:

"Não há crer, no entanto, que todo sofrimento suportado neste mundo denote a existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso." (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 5)

Quanto ao conformismo a que se referem os autores, Kardec escreveu sobre a fatalidade e se refere a ela da seguinte forma:

Do fato de ser infalível a hora da morte, poder-se-á deduzir que sejam inúteis as precauções para evitá-la?
“Não, visto que as precauções que tomais vos são sugeridas com o fito de evitardes a morte que vos ameaça. São um dos meios empregados para que ela não se dê.” (O Livro dos Espíritos, questão 854)

A idéia de conformismo não é consistente com as opiniões de Kardec e dos Espíritos nem em matéria de enfermidades, como já o mostramos, nem em matéria de desigualdades sociais como se lê:

813. Há pessoas que, por culpa sua, caem na miséria. Nenhuma responsabilidade caberá disso à sociedade?

“Mas, certamente. Já dissemos que a sociedade é muitas vezes a principal culpada de semelhante coisa. Demais, não tem ela que velar pela educação moral dos seus membros? Quase sempre, é a má educação que lhes falseia o critério, ao invés de sufocar-lhes as tendências perniciosas.” (685) (O Livro dos Espíritos)

Quanto às cirurgias espirituais, a sua qualificação irônica como "poderosa ferramenta terapêutica" demonstra a atitude de pouco afastamento ou objetividade com que escreveu o artigo. Diversos autores sérios pesquisaram o tema e os resultados são controversos, assim como é controversa a questão no seio do movimento espírita. Não existe uma conduta comum com relação às cirurgias espirituais nos centros espíritas.

Eu poderia continuar citando obras espíritas. Vêm-me à mente o livro Mediunidade Serena, de Yvonne Pereira e os livros de Carlos Toledo Rizinni, pesquisador do CNPq, que se opõem claramente a esta suposta interpretação que estes médicos catarinenses fazem da doutrina dos espíritos. Poderia citar toda a revisão bibliográfica que tenho feito sobre curas espirituais em periódicos internacionais, cujas posições dos autores são geralmente contraditórias às desrespeitosas afirmações dos médicos catarinenses.

Quanto ao design do trabalho, encontram-se inúmeras falhas, de forma que ele dificilmente seria aceito em um periódico criterioso com blind review. Como pesquisa descritiva, ele é não probabilista, não se podendo generalizar resultados, como os autores bem o admitem no seio do trabalho. Como não é experimental, ele não comparou resultados de terapias alternativas aos da medicina oficial, não podendo comparar a eficácia dos métodos. A revisão bibliográfica é limitadíssima, talvez devido à má delimitação do tema de pesquisa.

Para mais confundir ainda, eles admitem que a doença tem taxas altas de remissão, mas não as explica em bases fisiológicas, nem é capaz de distinguir o que ocorre devido à "natureza" (termo empregado pelos autores) daquilo que acelerou os processos naturais ou interviu de outras formas. Em suma, ele é uma manifestação dos preconceitos do grupo de médicos que o escreveu, de forma tão descuidada, tão desrespeitosa, que não se deu ao luxo de sequer analisar e fundamentar suas acusações e impropérios, talvez julgando ignorantes os espíritas e incapazes de perceber dimensão de leviandade com que produziram este trabalho.