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14.1.23

DUAS CONCEPÇÕES DE DEUS NA BÍBLIA: A TORÁ E A EPÍSTOLA AOS GÁLATAS

 


Paulo na prisão romana

Jáder Sampaio


Lendo a epístola aos Gálatas, escrita por Paulo de Tarso, encontrei uma pérola: "E porque sois filhos, enviou Deus aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! De  forma que não já és mais escravo, mas filho. Se és filho, és também herdeiro, graças a Deus." (Gálatas 4:6)

Esse é um versículo muito rico, que, no contexto dessa carta, nos faz tecer muitas considerações.

Como sabemos, Paulo está, ao longo da missiva, combatendo as ideias nucleares das tendências judaizantes no cristianismo primitivo. Se antes ele usou sua autoridade para dizer que era errado, agora ele argumenta teologicamente, justificando aos cristãos a diferença entre ser cristão e ser judeu.

Há alguns meses estava lendo os livros da Torá, e muitas, mas muitas vezes, se vê Yaweh afirmando: "Eu sou o Senhor". Quando se lê esses livros que contém não apenas orientações éticas de Yaweh, mas um código de leis, com estabelecimento de penas e obrigações para as vidas do povo que antes era escravo no Egito. O que se vê é que essa concepção de Deus da Torá, pressupõe um ser sobrehumano, criador, poderoso, voluntarioso, que teria libertado os hebreus mas se colocado no lugar que antes pertencia ao Faraó. Como Paulo diz, de certa forma, o Deus hebraico é o novo Senhor, o novo escravizador, e os hebreus deixaram de ser escravos do Faraó para se tornarem escravos de Deus. Esse Deus do Torá promete uma terra própria para viverem como agricultores e proteção. Ele estabelece seus representantes e o que devem fazer e exige que os hebreus sigam suas leis. Eles terão, portanto, a Terra Prometida, e a proteção dos povos vizinhos e dos conquistadores, desde que sigam a vontade de Deus.

Por outro lado, a concepção de Deus pregada por Jesus é a de Pai, que ele chama de Abba, uma palavra hebraica (אבא) que significa Pai. Nessa concepção cristã (que é o que Paulo está desenvolvendo nessa epístola), somos filhos do mesmo pai, herdeiros, portanto, e não mais escravos.

Mas na sequência do texto, Paulo mostra que durante a infância, os filhos ou herdeiros seriam como os escravos, no sentido de terem que obedecer as autoridades que se responsabilizam por eles até tornarem-se adultos. (Gl 4:1-3) Ele faz uma imagem, a das crianças que ficam sobre o cuidado do pedagogo (ou aio, na tradução de Ferreira de Almeida) até serem entregues ao Mestre (Jesus). Ele usa essa analogia para explicar a necessidade de viver sob a lei (uma espécie de infância espiritual) e de depois substituir a lei pela fé em Jesus Cristo (uma nova lógica de vida, que dispensa a observação estrita às exigências da lei e dos profetas)

A relação do homem com Deus, portanto, vai da submissão-obediência infantis, repleta de prescrições comportamentais, para a autonomia em Jesus, que trabalha em nível de atitudes. Isso também traz novas luzes para distinguir entre a "obra da lei" (Gl 3:2) e a "fé cristã".

Esse entendimento paulino, também nos permite discutir a expressão "Filho Unigênito", filho de mulher, e a dogmática da concepção divina de Jesus, mas isso fica para o futuro.

17.12.22

ESTUDO MINUCIOSO DO EVANGELHO E ANÁLISE DE CONTEXTO


 

A revista Reformador, editada pela Federação Espírita Brasileira, publicou um artigo do autor de Espiritismo Comentado sobre a "análise minuciosa do Evangelho" e um técnica chamada de análise contextual, que envolve uma análise interna (no caso, do próprio texto, em comparação com o todo, a perícope ou a unidade do texto) em conjunto com informações do autor, geográficas, históricas.

Abaixo o resumo do artigo.

Resumo

A análise minuciosa do Evangelho foi explicada pelo espírito Emmanuel em dois de seus livros: "Caminho, verdade e vida" e "Renúncia", publicados em 1948 e 1944, respectivamente. Ele propõe a leitura de um único versículo (que usa como epígrafe em seus textos publicados) e a meditação profunda dele. Não há proposta de se fazer hermenêutica nem exegese, é uma reflexão. Além de analisar a proposta de Emmanuel, este artigo compara a análise minuciosa, baseada em versículo isolado ou lógion, com a análise contextual, em cujo contexto interno se baseia em perícopes, nas comparações com outras partes do texto evangélico e da Bíblia e com informações históricas, geográficas e arqueológicas.

 

Palavras-chave

Evangelho, Emmanuel, Hermenêutica, Reflexão Pessoal, Exegese, Eisegese


Se você é leitor espírita, a revista Reformador pode ser assinada em papel ou em formato apenas digital, anualmente. Verifique os preços em https://souleitorespirita.com.br/

O acervo da revista, desde os primeiros números no século 19 pode ser acessada gratuitamente no site da Federação Espírita Brasileira.

19.11.20

QUAIS SÃO AS DIFERENÇAS ENTRE "O EVANGELHO SEGUNDO JOÃO" E OS TRÊS EVANGELHOS SINÓTICOS?

 


Encontrei hoje no texto de Milton Torres, professor da Universidade Adventista de São Paulo, um bom conjunto de explicações, acessíveis a todos nós, interessados no estudo dos evangelhos. Vou retirar literalmente as explicações dele, e interpolo meus comentários entre colchetes:

    1. “... ele [o evangelho de João] não faz nenhuma tentativa de se passar por uma biografia de Jesus.”

    2. “[O evangelho de João] não demonstra interesse por uma cronologia exata dos feitos de Cristo.”

    3. “... os longos discursos de Jesus ali registrados apresentam semelhanças formais com as preleções de Sócrates nos diálogos platônicos”

    4. “... como no caso de Platão, seu método é determinado pelo propósito que persegue, pois lança as ideias de Jesus em metáforas surpreendentes, dramatizando os momentos históricos para que alcancem uma sugestibilidade supra-histórica, para isso empregando símbolos e analogias”.

    5. “... o termo logos aparece, no prólogo de João, em íntima associação com outras expressões de longo pedigree filosófico: panta (“todas as coisas”, isto é, o “universo”); kosmos (“mundo”); sarx (“carne”); en archêi (“no princípio”), etc.

Com esses argumentos, ele tenta mostrar que o escritor de "O evangelho segundo João" produz um texto que é voltado não apenas aos hebreus e descendentes, mas também aos gregos e outros estrangeiros com acesso e influência da cultura helenista, e, dentro dela, de elementos da filosofia grega. É como se esse evangelho fosse uma produção em sintonia com a proposta de Paulo de levar a mensagem cristã para os gentios, através de um texto que é capaz de levar o cristianismo mais próximo à cultura dos membros das comunidades fundadas em cidades gregas e romanas.

Para quem desejar ler o texto todo, que se preocupa com o conceito de lógos, segue a fonte: 

TORRES, Milton R. A retórica joanina do Logos, Revista Caminhando v. 21, n. 2, p. 147-167 jul./dez. 2016. 

https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/Caminhando/article/viewFile/6992/5506


27.9.20

O TEXTO EVANGÉLICO CONTÉM MITOS?



Ontem fizemos uma exposição sintética do livro “Revisão do cristianismo” a convite da Fundação Maria Virgínia e Herculano Pires (https://www.youtube.com/watch?v=eIB1YtN75gg). Dentre as muitas coisas que Herculano convida a rever no cristianismo, um grande conjunto delas tem um impacto muito grande sobre o nosso entendimento dos ensinamentos do mestre galileu: os mitos.

Influenciado pelo convite Kardequiano de analisar racional e historicamente os evangelhos e documentos dos primeiros cristãos, Herculano mergulhou nas reflexões que os autores do final do século 19 e início do século 20 fizeram a partir de uma mudança de atitude na pesquisa da história do cristianismo. Em vez de fazer uma história atrelada à teologia, autores como Guignebert trabalharam na desvinculação das duas e na construção de uma história baseada na historiografia da época, nas descobertas arqueológicas, na limitada documentação ainda existente, e na comparação do cristianismo com outras religiões, ou seja, concebendo-o como uma religião e não como a religião.

Na medida em que o cristianismo deixa de ser contado como uma “vinda de Deus à Terra” e passa a ser visto como um movimento dos homens, algumas ideias até então interditas ao historiador do cristianismo começam a ser percebidas.

Uma delas é bem simples: os evangelhos não foram feitos a partir do registro exato do que disse Jesus e de sua preservação para o futuro. Os discípulos de Jesus o conheceram e ouviram o que ele ensinava. Com a morte e a percepção de Jesus após a desencarnação, os discípulos entenderam que a mensagem dele deveria ser divulgada, e começaram a ensinar, primeiro aos judeus e depois a todos os que se interessassem, o que eles se recordavam ou entenderam que havia sido ensinado.

Dos evangelistas que eram alfabetizados, talvez Mateus tenha feito anotações de suas memórias, sob a forma de logia, frases ou pequenos períodos encadeados. Hoje os historiadores propõem que o evangelho de Marcos teria vindo da tradição de Pedro, ou seja, João Marcos, ou os hagiógrafos que escreveram o texto desse evangelho, teriam ouvido e escrito os ensinamentos cristãos cuja tradição remonta ao pescador de Cafarnaum. 

Além de não serem registros históricos, de serem textos posteriores às cartas de Paulo, e de serem registros de ensinos orais dos discípulos, concluídos anos ou décadas após o episódio do Gólgota, é bem possível que estejam entremeados com mitos judaicos ou pagãos, é o que reflete Herculano Pires ao longo do seu livro.

O mito não é, em si, uma falsidade, uma irrealidade, como nos explica o filósofo paulistano, mas uma proto-explicação ou explicação não racional, que se origina no interior da alma humana. Enxergar Jesus como o messias, o “ungido”, aquele que veio salvar o povo hebreu da escravidão e associá-lo aos sinais entrevistos na leitura e interpretação dos profetas, seria uma primeira “tentação” dos apóstolos ou dos que participaram da redação dos textos que posteriormente foram escolhidos para compor o Novo Testamento. 

Herculano não se propõe a separar o mito da narrativa nos evangelhos, mas faz algumas análises. Ele entende que boa parte da natividade pode ser mítica, porque apresenta eventos improváveis e que “ajustam” a figura de Jesus à do messias. O nascimento em Belém, por exemplo, o “censo” que exigiria que os habitantes saíssem de suas cidades para as cidades onde nasceram, a declaração de morte das crianças por Herodes, a estrela de Belém que guia os Reis magos e a fuga para o Egito fazem parte dessa mitologia tardia inserida nos evangelhos. Herculano busca mitologemas semelhantes em outras religiões da época para mostrar que é possível que tenha havido uma interpolação de mitos e histórias sagradas na história de Jesus para que ele pudesse ser considerado o messias dos Judeus ou um Deus para os gregos ou romanos. A partir do século quarto, muitos elementos do paganismo irão ser empregados pelas comunidades cristãs para que seus concidadãos aceitem mais facilmente o prestígio do cristianismo junto ao Imperador Constantino, até tornar-se religião oficial do império romano, décadas depois.

Não seria demérito que Jesus tivesse nascido em Nazaré, filho de Maria e José, com irmãos e tivesse vivido no lar de um carpinteiro. Mais humano, ele se torna mais extraordinário aos nossos olhos, porque nessas condições desfavoráveis ele se torna capaz de interlocução com os estudiosos de sua cultura e de sua época, e é capaz de elaborar uma proposta de ser humano, de vida e de sociedade completamente diferente daquilo que existia e que se vivia em seu tempo. Cercado por socidades que "naturalizaram" a instituição da escravidão, por exemplo, Jesus propõe tratarmos a todos como pessoas, filhos do pai. É uma concepção além do tempo e do lugar em que Jesus viveu, além das escrituras judaicas e, incomodamente possível.

Essa abordagem racional e histórica não nos leva a desvalorizar os evangelhos, as cartas dos apóstolos e os documentos que os cristãos produziram nos primeiros séculos, mas exige uma leitura crítica, um olhar histórico, capaz de entender que o texto, quando se aproxima do mito, não é um conjunto de “verdades ocultas” cujas alegorias devem ser descobertas pelo leitor, mas uma expressão vívida dos ensinos de Jesus, a par com o desejo de reconhecimento do mestre pela sociedade da época por seus apóstolos e discípulos.

A proposta de Herculano é intelectualmente corajosa, porque é revisionista não só do cristianismo das igrejas, mas por propor aos espíritas uma atitude mais racional no que tange ao estudo dos evangelhos. Concordando ou não com Herculano Pires, o livro merece ser estudado, debatido e entendido por nós sem a pretensão de verdade absoluta, mas com a pretensão de rigor e honestidade intelectuais.


11.4.19

ENCONTRANDO JESUS A PARTIR DA ANÁLISE DOS EVANGELHOS





Ante a sugestão do Marcelo Bernardo, tenho lido nas horas vagas os livros de Bart Ehrman, um historiador e teólogo norte-americano, agora agnóstico, especializado no Novo Testamento e no cristianismo primitivo.

Ehrman tem um livro sobre a existência de Jesus (o Jesus humano e histórico). Há alguns autores defendendo a ideia de que Jesus seria um mito, oriundo de outros mitos divinos, sobre o qual os cristãos contaram histórias entre si e “inventaram” o cristianismo.

Um texto como costumo publicar no Espiritismo Comentado não tem tamanho suficiente (e se tivesse, não teria leitores...) para apresentar toda a discussão da questão, que envolve um grande número de argumentos, e, portanto, um debate significativo.

Uma das evidências que Ehrman usa para defender a existência de Jesus é a análise do texto evangelhos. Todos sabemos que os evangelhos foram escritos em grego. Como os escritores eram “bons de escrita”, possivelmente eruditos, os historiadores entendem que não devem ter sido os apóstolos, que eram possivelmente iletrados e que falavam aramaico (exceto Paulo e Lucas, que não conviveram com Jesus). Eles teriam dificuldade para aprender, falar e escrever corretamente o grego. Esse assunto também é polêmico, mas para entender Ehrman, vamos prosseguir desse ponto.

Um dos argumentos dele é a existência de palavras em aramaico no meio da narrativa grega. Dificilmente um escritor grego conheceria qualquer coisa de aramaico. Os evangelhos trazem, no entanto, palavras como rabi, talita cumi, messias, Cefas (o nome que Jesus deu a Pedro), entre outras. Não bastasse a existência das palavras, muitas vezes os escritores dos evangelhos a traduzem para o leitor, certos de que ele não entenderia seu significado.

Esta é uma das dezenas de evidências que as narrativas em torno de Jesus, surgiram na Palestina e eram faladas em aramaico, e que posteriormente os autores dos evangelhos ouviram e recontaram em grego. Se Jesus e os apóstolos fossem um mito, uma história baseada em histórias de deuses, considerando a amplitude das comunidades cristãs no século I, cada uma teria criado histórias próprias, sem um núcleo comum, totalmente diferentes umas das outras, o que não acontece nem mesmo nos evangelhos considerados apócrifos, que trazem em si muito dos textos dos outros evangelhos (como O evangelho de Tomé).

As palavras em aramaico, e os textos comuns, levam necessariamente o início do cristianismo para a região da Judeia, Galileia, Samaria, em torno dos anos 30 (outro ponto a ser sustentado, com as cartas de Paulo), por pessoas que originalmente falavam o aramaico e que depois se espalharam por cidades ao redor do mediterrâneo e dos países vizinhos aos antigos reinos de Israel e Judá.

Como disse acima, o livro é repleto de debates com os miticistas (pessoas que defendem que Jesus era um mito) e tem argumentação bem fundamentada. Quem se interessar pelo assunto leia:




Ehrman, Bart. Jesus existiu ou não? Rio de Janeiro: Agir, 2014. [Tradução da editora Nova Fronteira, feita por Anthony Cleaver]


11.2.19

A ESCRITURA INTERPRETA A ESCRITURA?




Estou lendo a dissertação de mestrado “Orígenes ensinou a reencarnação? Uma resposta às teorias neo-gnósticas da reencarnação cristã com referência particular a Orígenes e ao segundo concílio de Constantinopla (553)”, escrita por Dan Schlesinger. Ela foi defendida no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de Glasgow, na Escócia, em 2016.

Trata-se de um belo texto, bem fundamentado de um estudioso da área, simpático ao pensamento ortodoxo cristão que entende que não se deve entender que haja reencarnação no Novo Testamento.

Há muito que comentar e discutir na argumentação do mestre Schlesinger, se puder, vou pinçar alguns argumentos polêmicos e comentá-los no Espiritismo Comentado.

Um ponto interessante que ele apresenta é o que ele denomina como princípio básico de hermenêutica (interpretação dos textos bíblicos) aceita pelos teólogos cristãos em geral: “a escritura interpreta a escritura”. Isso significa que, como bem explica o autor, “onde as passagens são isoladas, obscuras ou aparentemente contraditórias”, interpreta-se levando em conta outras passagens e regras de interpretação bíblica que se referem ao texto. Ele diz que os neo-gnósticos (ele chama de neo-gnósticos os autores do movimento new age, e não dá mostras de conhecer o espiritismo) fazem eisegese (interpretar um texto dando ideias do próprio leitor) e não exegese (interpretação minuciosa do texto).

Em outras palavras, ele diz que os membros do movimento new age fazem uma interpretação forçada dos evangelhos para acomodar suas próprias crenças, e, portanto, defende que a teologia tradicional não faz isso, possivelmente por causa da coerência interna das interpretações com os textos das escrituras e possivelmente com a tradição cristã, que supõe remontar à interpretação dos apóstolos e dos primeiros cristãos.

Olhando com algum afastamento, acho essa argumentação bem falaciosa, em função de alguns argumentos que passo a apresentar.

O primeiro é que o conjunto de livros que compõem o Novo Testamento foram objeto de escolha no final do século IV e início do século V, por Jerônimo (considerado santo), a pedido do papa Dâmaso I, e logo a seguir traduzidos para o latim, compondo a Vulgata. Ele consultou outros cânones existentes, mas teria comentado, segundo Léon Denis, que ele estava ciente que sua escolha não seria aceita pelas diversas comunidades cristãs ao redor do mundo na época.

O argumento que se emprega em defesa do trabalho de Jerônimo, é que ele escolheu apenas os textos que eram coerentes entre si, que não eram contraditórios.

Então, a regra da hermenêutica incorre na chamada “petição de princípio”, que é uma falácia, citada pelo próprio autor contra os “neo-gnósticos” e contra nós, porque uma pessoa escolheu os textos da escritura, mas só se pode interpretar as passagens obscuras usando-se os textos que ele escolheu. Em outras palavras, a compreensão de Jerônimo e de sua tradição se torna, na verdade, um critério para a interpretação dos evangelhos. Temos, então uma regra que impõe uma hermenêutica dos vitoriosos da história, já que havia um número enorme de textos (como o Pastor de Hermas que foi usado por muito tempo pelos cristãos primeiros e depois retirado do cânone) e de interpretações (as mais “populares e discordantes” foram consideradas heresias).

Repetindo, é um erro lógico também chamado de circularidade. Eu só posso interpretar usando os textos que alguém escolheu como certos porque são considerados coerentes entre si, com critérios que Jerônimo considerou.

Esse é um ponto importante, porque permite a consideração e análise de outros textos produzidos nos primeiros séculos, como fontes para a compreensão do que os primeiros cristãos pensavam, para fins do entendimento possível do que Jesus deve ter ensinado aos apóstolos. É uma abordagem hermenêutica que inclui estudos históricos e a necessidade de compreensão de como os grupos cristãos foram se formando, e não apenas assume como heresias o que a ortodoxia vitoriosa assim o considera.

Por essa razão, é sensata a recomendação de Allan Kardec que conheçamos a época e os costumes para entender o texto bíblico e a provocação de Hermínio Miranda quando coloca no título de seu livro sobre o cristianismo a expressão “heresia católica”. 

11.4.18

JESUS EXISTIU? É IMPORTANTE PARA O ESPIRITISMO?



Manuscritos de Nag Hammadi


Com o passar do tempo e o desenrolar da história, a época em que viveu Jesus vai ficando cada vez mais distante de nós, o que leva algumas pessoas a questionarem se ele realmente viveu ou se não seria uma lenda, criada com alguma finalidade de controle social.

Para o pensamento espírita, Jesus não apenas viveu como pode ser considerado guia e modelo para os homens, como se lê em O Livro dos Espíritos. Após discutir filosofia com os Espíritos e escrever sobre a prática da mediunidade, divulgando sua experiência na França e no exterior, Allan Kardec dedicou-se ao estudo e comentário dos evangelhos, dando um grande destaque, inicialmente à questão moral, com a publicação de “O evangelho segundo o espiritismo” e posteriormente sobre outras questões ligadas aos evangelhos, como os milagres e as predições do Cristo, que se encontram analisados em “A Gênese”. Kardec e os Espíritos entendem que os ensinamentos cristãos são uma base importante para o desenvolvimento de uma ética para a humanidade, mesmo havendo mudanças muito intensas na sociedade, nas formas e relações de produção e na interação entre os homens.

Se considerarmos as evidências históricas e arqueológicas da vida de Jesus de Nazaré, podemos observar o seguinte:

1.       Entre as evidências documentais da existência de Jesus, temos, além dos evangelhos, as cartas de Paulo e as dezenas de escritos dos cristãos dos primeiros séculos, que temos até os dias de hoje.

2.       Historiadores judeus como Flávio Josefo e historiadores romanos como Plínio e Tácito, que não foram cristãos, escreveram sobre Jesus.

3.       Não se questiona a existência de Jesus na literatura antiga.

4.       Há diversas evidências arqueológicas como:

a.       os manuscritos do Mar Morto (descobertos em 1947, em uma localidade chamada Qmram, na Cisjordânia, que contém documentos escritos entre o século II aC. ao ano 70 dC, contendo textos do antigo e do novo testamentos, além de documentos apócrifos)
b.      os manuscritos de Nag Hammadi (descobertos no Egito em 1945, possivelmente do século II, escritos em cóptico e contendo textos gnósticos, que fazem referência a Jesus, embora sejam considerados apócrifos)
c.       Os papiros de Oxirinco (descoberto no Egito, contendo documentos que vão do século I ao VI, são uma espécie de biblioteca que tem textos clássicos, manuscritos teológicos e apócrifos, além de documentos do cristianismo primitivo).

O pensamento de Jesus é um dos pilares éticos da obra de Allan Kardec, em função de sua ética da solidariedade e da sua consideração dos seres humanos como pessoas, independente do lugar que ocupam na sociedade.

25.6.16

O QUE CARAMELOS TÊM A VER COM PAULO DE TARSO?



Saulo de Tarso

Jaques foi convidado a falar sobre a vida de Paulo de Tarso para crianças, quase jovens, de 11 e 12 anos de idade. Um dos evangelizadores, Levi, pediu a ele que observasse a letra da música Vaso Escolhido, escrita por Gladston e interpretada por Tim e Vanessa, para que os evangelizandos pudessem entender as frases que remetem à vida do doutor da lei. Encomenda difícil. Os jovens estudam em boas escolas da capital mineira, mas como despertar o interesse por um personagem que está cada dia mais distante do meio escolar e da experiência de quem cada dia menos tem contato com o cristianismo, na escola, na televisão e no círculo de amizades?

Ele pensou em uma apresentação de slides que fizera há alguns anos, para adultos. Teve o bom senso de consultar Levi que lhe respondeu, presto:
- O conteúdo está muito “master level”, né?

Estava. Jaques pesquisou a internet, para conhecer melhor a música do Gladston, e encontrou um material interessante. Um vídeo do “youtube” que tinha imagens recortadas de um desenho animado e como som, a música citada.

Nova consulta, e Levi respondeu:

- É legal para ilustrar, mas você devia usá-lo para introduzir, que é apenas uma animação, para eles não encararem o desenho como “infantil”. Nesta idade eles se queixam muito de não se usar técnicas que consideram infantis.

O que fazer então? E veio a luz.

Jaques separou algumas das principais passagens da vida de Saulo-Paulo, encontradas no livro dos Atos dos Apóstolos. Ainda assim era muita coisa. Selecionou todos os que se encontravam ilustrados no desenho animado. Selecionou também os que eram necessários para explicar a música que seria tocada, por exemplo, por que Paulo é chamado de vaso escolhido?

Na hora de sair para a aula com toda a parafernália, notebook, mapa das viagens de Paulo, etc., Jaques viu o pote cheio de caramelos e o esvaziou. Eles seriam úteis para esta idade.

Iniciada a aula e cantada a música, Jaques começou a aula perguntando aos alunos o que sabiam da vida de Paulo.

- Detesto ensinar “o padre nosso ao senhor vigário”, vocês sabem o que é isto?

- Não, Jaques, o que é? Responderam

- Ensinar coisas que as pessoas já conhecem.

Algumas  informações eles já conheciam. Paulo era apóstolo de Jesus, mudou de nome, estava em um cavalo quando viu uma luz... As respostas foram sendo anotadas no quadro e problematizadas:

- O que é apóstolo?

- Tem os apóstolos e os discípulos, Jaques!

- Mas Paulo não era um dos doze!

E o diálogo começou, cheio de questões sobre as informações que eles já dispunham. O interesse começou a despertar.

Jaques comunicou que iria contar a história de Paulo. Contudo, provocou os alunos a participar da seguinte forma:

- Vou contar a história de Saulo, mas vou parar de tempos em tempos para fazer perguntas. Quem acertar ganha um caramelo, ok? No final, vou passar um desenho animado sobre Paulo, sem as falas. Quem identificar o que está acontecendo, ganha um caramelo também! Não tenho para todos, então alguns ficarão sem. Tudo bem?

Feito o contrato psicológico, a história começou a ser contada, mas interrompida sempre pelos alunos, que tinham uma dúvida, algo a contribuir, um comentário, até mesmo brincadeiras meio fora de hora.

O desafio e a competição natural da idade eram mais motivadores que os doces, mas todos queriam ganhar. A história de Saulo despertou uma série de questões de história e geografia.

- Quem sabe para onde Saulo ia quando viu Jesus?

- Jerusalém! Disse um.

- Roma! Disse outra.

- Damasco! Lembrou uma aluna.

- Damasco é capital da Síria, não é professor?

- Como você sabe?

- Meu pai é professor de geografia!

Depois de algum tempo, os alunos estavam chamando Jaques de professor. E as mãos levantavam sempre, tentando resolver os problemas que eram colocados ou mesmo, apenas, participar. Quase todos gostaram desta forma meio aula, meio brincadeira de ensinar e aprender.

- Você é professor de história? Perguntou um deles.

Os caramelos começaram a ter outra utilidade. Quem ganhou um, não podia ganhar outro, para que eles atingissem o número maior de colegas. Então, na hora de responder, quem já havia respondido certo tinha que ceder a vez para quem ainda não havia ganhado. Jaques pensou que os que haviam ganhado podiam ficar desmotivados, mas isto não aconteceu. Eles continuavam levantando a mão e esperando a resposta dos colegas. Sabiam que se os colegas não respondessem certo, teriam sua vez, mesmo sem ganhar nenhum caramelo. Ninguém se importava.

Apenas três caramelos haviam sobrado para o vídeo, que foi usado como atividade de verificação da aprendizagem. Foi necessário improvisar, e escolher apenas as três cenas mais difíceis para distribuir as balas que sobraram.

Eles continuaram se interessando e participando, de forma disputada.

Estêvão foi facilmente identificado, Ananias também. A fuga de Damasco foi lembrada. E os alunos iam falando, até que sobrou apenas um caramelo.

- Que cena é esta? Perguntou Jaques. Quatro mãos levantaram-se.

- A fala de Estêvão?

- Não, esta cena aconteceu depois das viagens de Paulo.

- Foi quando Paulo estava ensinando e foi apedrejado e jogado no monturo?

- Não, foi depois deste evento. Disse Jaques.

Um dos mais falantes, mas que ainda não havia conseguido ganhar seu doce, pediu a vez.

- Foi quando Paulo foi julgado em Jerusalém e falou que era cidadão romano?

- Acertou! E uma bala voou até sua mão.

A avaliação foi um sucesso, e ninguém achou que se tratava de atividade de criancinha.

- Como Paulo morreu? Alguém perguntou.

Jaques não tinha certeza. Não havia o relato da morte de Paulo nos atos dos apóstolos.

- Como cidadão romano, não deve ter sido crucificado. Talvez executado com a espada. Mas eu não tenho certeza. Vou verificar e o Levi fala com vocês na semana que vem, ok?

Não houve problema. O respeito não diminui com a verdade.

Ao final da aula, um dos alunos falou com Jaques:

- Você volta para dar outra aula?

Não há elogio melhor para um professor que este.

Todos começaram a cantar, acompanhados pelo violão de Levi, que tocava muito bem, e os passistas entraram na sala para aplicar passes em quem desejasse.

A aula terminou, mas a conversa continuou após os passes, até que todos se fossem.


29.2.16

LER OU NÃO LER OS EVANGELHOS?





A médium Yvonne A. Pereira escrevia na Revista Reformador com o pseudônimo de Frederico Francisco, nome que emprestou do grande compositor Chopin. Estamos lendo o livro À luz do consolador, publicado pela FEB, em nossa reunião mediúnica, que é uma coletânea desses artigos.

Fiquei encarregado de ler e comentar o texto intitulado “Panorama”, que originalmente foi publicado pelo Reformador em 1970. Para minha surpresa, é um dos “textos indignados” da médium.

Yvonne recebeu carta de um jovem que se mostrava confuso em função de uma palestra que assistira na sua casa espírita. Ele diz que o expositor defendia que não era necessário “o estudo completo dos Evangelhos, bastando que apenas conheçamos os pontos esclarecidos por Allan Kardec em “O evangelho segundo o espiritismo”. “ Disse ainda que o estudo dos evangelhos é perigoso e que o estudo das parábolas é inútil porque cada um as interpreta a seu bel-prazer. Concluindo, o jovem comunicou ter ouvido que o estudo das epístolas é inútil porque “nem mesmo se sabe se Pedro e Paulo existiram”.

Yvonne vai à carga, alegando que o projeto do expositor é destrutivo e que ele nada repõe no lugar dos Evangelhos que ataca. Questiona se poder-se-ia interpretar “A parábola do filho pródigo”, do “Bom samaritano” e da “casa sobre a rocha” sob diversas óticas, focalizando, assim, a mensagem central das mesmas.

Não vou me estender, deixando aos interessados o link para que ele possa ler o artigo completo:



Yvonne fecha o texto focalizando a importância dos evangelhos para os que sofrem, e recomenda a estes que busquem a companhia de Pedro e Paulo “a fim de se consolarem meditando no heroísmo deles a frente das penúrias suportadas, ao mesmo tempo que aproveitando dos ensinamentos por eles deixados há dois mil anos aos corações humildes e de boa-vontade.”

Quanto à existência ou não de Paulo e Pedro, a leitura que venho fazendo das cartas dos cristãos dos primeiros séculos é repleta de citações dos textos evangélicos. Vez por outra tenho comparado o texto dos documentos que leio com os da tradução da vulgata ou dos textos gregos contemporâneos, e são em sua grande maioria, iguais. Ou estaríamos diante de uma conspiração de ampla monta, na qual foram forjados os textos evangélicos em diferentes pontos do mundo, depois modificados em todos eles e apagados da história todos os documentos contrários, ou eles são o registro possível da experiência dos primeiros cristãos com Jesus.

7.2.16

O FRATERNISTA PUBLICA "QUEM É O SAL DA TERRA ?"




O jornal O Fraternista, do Grupo da Fraternidade Irmã Scheilla, publicou no último número um texto nosso de reflexões sobre a instrução de Jesus aos discípulos no Sermão da Montanha, quando afirma que são o "sal da terra". 

O leitor do Espiritismo Comentado pode acessar diretamente do link: http://www.gruposcheilla.org.br/pages/acesso/acontece/ofraternista/fraternista70.pdf

Aguardo comentários e análises dos interessados.

5.11.15

PEDRO, TU ME AMAS?


Vista aérea de Cafarnaum nos dias de hoje. O espaço coberto é considerado ser o local da casa de Pedro e vê-se ao fundo o Mar de Tiberíades, também chamado de Lago de Genesaré.

Há mais de três décadas, no tempo da máquina de escrever, preparei um estudo sobre Simão Pedro para fazer na sociedade espírita de mesmo nome em Belo Horizonte. Tendo aceito este ano para falar nas comemorações da casa espírita em Caeté-MG, combinamos que o mesmo tema seria abordado.

Como se tratava de uma palestra biográfica, que vai seguindo os episódios que envolvem o apóstolo ao longo da narrativa dos evangelhos e do livro de atos, aproveitei a oportunidade para revisitar o texto, consultando a tradução de Haroldo Dutra de “O novo testamento”.

Gostaria de compartilhar com os leitores algumas reflexões sobre o episódio narrado por João, do encontro de Jesus, após a morte, com Pedro, em Cafarnaum.

O episódio é bem curioso, e aparenta ser uma espécie de história contada pelos apóstolos e não um acontecimento real. Uma das razões é geográfica. Pedro estava em Jerusalém após a crucificação de Jesus. O rabi retorna da morte e apresenta-se diversas vezes aos apóstolos e a outras pessoas. De repente, o episódio narrado por João acontece em Cafarnaum, na Galileia, a mais de cem quilômetros de caminhada da capital da Judeia. Pedro já está novamente instalado, pescando, com barcos e redes, juntamente com outros discípulos. Concluído o evangelho de João, temos o livro dos Atos, com Pedro novamente em Jerusalém, no episódio mediúnico do dia de Pentecostes. Teria ele se deslocado, mesmo tendo visto Jesus após a morte, no episódio que envolve o ceticismo de Tomé, e depois voltado novamente a Jerusalém para construir a primeira comunidade cristã?

O segundo motivo é literário. O episódio soa a história, porque Jesus aparece novamente aos discípulos, reedita a pesca do dia em que converteu os primeiros quatro, e reedita a negação de Pedro, após a refeição da manhã, fazendo-o repetir três vezes uma declaração de amor fraternal. É uma espécie de texto de regeneração dos apóstolos, e principalmente de Pedro, após os eventos da crucificação.

O terceiro motivo é hermenêutico. Um episódio tão marcante deveria aparecer em mais de um evangelho, e encontrei apenas no evangelho de João, considerado espiritual.

A leitura do texto traduzido por Haroldo é interessante. Jesus pergunta três vezes a Pedro:

- Simão, [filho de] João, tu me amas mais do que a estes?

Ante as três respostas afirmativas do apóstolo, Jesus faz três pedidos convergentes, mas diferentes:

- Alimenta meus cordeiros.
- Apascenta minhas ovelhas.
- Alimenta minhas ovelhas.

Alimentar e apascentar são verbos relacionados a cuidados. Apascentar (e não pacificar), envolve as ações de conduzir e vigiar no pasto, pastorear, ou como lemos na tradução de Haroldo, “todas as funções do pastor, tais como guiar, levar ao pasto, nutrir, cuidar, vigiar”.. Alimentar, segundo as notas da tradução de Haroldo Dutra, pode ser entendido como levar para pastar, oferecer pasto.

No antigo testamento, o profeta Ezequiel (capítulo 34) diz ter ouvido de Deus uma profecia contra os pastores de Israel. Com a leitura do capítulo, percebe-se logo que ele não fala de ovelhas, cordeiros e pastores, mas do povo e dos sacerdotes. Ele acusa os pastores de comer a gordura, servir-se da lã e matar o cevado, mas não apascentar o rebanho (v. 3), ou seja, aproveitarem-se das leis que obrigam o povo de Israel a sustentá-los, mas não cumprir com o seu trabalho de dar assistência religiosa.

Ezequiel escreve que as ovelhas de Deus passaram a servir de pasto às feras e foram entregues à rapina. Considerando os sacerdotes ineptos para cuidar do povo, Ezequiel escreve que o próprio Deus distinguiria a ovelha gorda da ovelha magra (v. 20) e que Davi se tornaria pastor de Deus e apascentaria o rebanho (v. 23), ou seja, ele institui um novo cuidador ao mesmo tempo em que traz de volta a si uma função que era atribuída aos sacerdotes.

A passagem de João parece fazer uma referência ao capítulo 34 de Ezequiel. Pedro é convidado por Jesus a ser o pastor das ovelhas e cordeiros, ou seja, a executar uma função sacerdotal no lugar dos sacerdotes do culto judeu.

Tendo ou não acontecido como está escrito, a passagem do Evangelho de João marca a construção de uma ekklesia cristã, de caráter religioso e comunitário, o que justifica as descrições da comunidade de Jerusalém que encontramos no livro dos Atos dos Apóstolos. Nesta comunidade não apenas se estudavam os evangelhos, mas também se redistribuíam alimentos e outros bens entre os que necessitavam. O episódio das viúvas helenistas e da instituição de diáconos (Atos, capítulo 6) ilustra bem esta função. 

6.6.11

OS TRABALHADORES DA VINHA


Judeus trabalhando na vinha

Jesus falava às massas e utilizava um recurso curioso para que seus ensinos e histórias permanecessem nas mentes dos que o assistiam. Ele escolhia narrativas de conclusão insólita, aparentemente injusta, o que faz com que todos se questionem: o que ele quer dizer com isso?

As parábolas instigantes sobreviveram ao tempo.

A parábola dos trabalhadores da vinha é conhecida no meio espírita como a parábola dos trabalhadores das diversas horas do dia. Kardec dedicou um capítulo inteiro ao seu comentário em "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

Contexto

A história é contada apenas no capítulo 20 do evangelho de Mateus, o que não deixa muitas pistas sobre o contexto. No capítulo 19, Jesus parece estar instruindo seus discípulos e apóstolos. Ele fala dos eunucos pelo amor do reino de Deus e do perigo das riquezas (a história do moço rico).


As Relações de Trabalho

No Deuteronômio, um dos livros do pentateuco moisaico, encontram-se regras para a contratação de trabalho (24:14-15). Os pagamentos eram diários, e era proibida a exploração do trabalhador pobre. Iahweh afirma aos empregadores que não se esquecessem que a vida do trabalhador pobre e de sua família depende do pagamento da jornada de trabalho.

Um bom conselho para os dias de hoje, mas interessa-nos saber que era comum e usual a contratação de trabalhadores no período apontado por Jesus.


Denário Romano de Prata


No império romano à época, era usual o pagamento do dia de trabalho com o valor de um denário, que valia "dez asses" (daí a origem do nome), e segundo a wiki era suficiente para comprar 8 quilos de pão, ou seja, permitia com sobra a alimentação de uma família.

A história


Vinha


Como a maioria das parábolas, Jesus conta a história para referir-se ao Reino dos Céus. Um dono de vinha sai em busca de trabalhadores e os encontra no mercado no início do dia. Acerta com eles o pagamento de um denário e os envia para a vinha. Como o número de trabalhadores fosse insuficiente, o dono da vinha volta na terceira hora, na sexta, na nona e na undécima hora. Em todos os casos pergunta aos tabalhadores por que estavam na praça e todos alegam que não conseguiram trabalho. Ele oferece-lhes trabalho sem negociar valores. No momento do pagamento, ele dá um denário a todos, a começar dos trabalhadores da última hora, que trabalharam apenas uma hora ou menos, o que gera murmúrios e reclamações entre os que trabalharam doze horas. O dono da vinha (que também é pai de família) reafirma o cumprimento do acordo feito no início do dia e pergunta-lhes: "é mau o teu olho porque eu sou bom?"

Jesus conclui a história com a famosa frase: "os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos."

Interpretação

Em "O evangelho segundo o espiritismo", Kardec publica quatro comunicações de espíritos que se referem à parábola. Constantino (Bordeaux, 1863) interpreta os trabalhadores da última hora aos espíritas e recomenda que empreguem bem sua existência, que não é mais que "um instante fugidio na imensidade dos tempos".

Outra comunicação é de Henri Heine (Paris, 1863), que considera Moisés, os apóstolos cristãos, os mártires cristãos, os pais da igreja, sábios e filósofos como os trabalhadores das diversas horas do dia, e reafirma entender os espíritas como trabalhadores da última hora.



Heinrich Heine


Erasto (Paris, 1863) recomenda aos espíritas que divulguem a reencarnação e a elevação dos espíritos, e antecipa que os grandes desprezariam seu discurso, os sábios exigiriam provas e os humildes a aceitariam.

Por fim, o Espírito Verdade, considera ditosos os que trabalharem nos campos do Senhor (a Terra) sem interesses e motivados pela caridade.


Reflexões de Espíritas: Schutel e Vinícius 


Cairbar Schutel escreveu em seu "Parábolas e ensinos de Jesus" algumas páginas explicando a parábola e comentando-a. Ele encontra justiça na atitude do dono da vinha, argumentando ser possível que os trabalhadores da undécima hora tivessem se esforçado mais que os demais.


Cairbar Schutel


Schutel foi muito perseguido pela igreja  católica de sua época e parece fazer um desabafo em seu texto, criticando espíritas que não se afirmavam publicamente como tal, escolhendo o trabalho do atendimento aos espíritos, por exemplo. Entendo sua situação, mas não consigo ver a questão da mesma forma, passadas muitas décadas.

Vinícius dedicou dois capítulos de livros a comentar o tema.

Ele também traz o parábola para os dias de hoje, e compara o ato dos trabalhadores da undécima hora ao da viúva do gazofilácio, que Jesus destaca não pelo volume dos resultados, mas pelo sentido subjetivo do ato. Ao contrário da tradição beneditina e taylorista, Vinícius valoriza o trabalho em si, e não o tempo de trabalho.



Ele desenvolve seu pensamento de tal forma que parece estar escrevendo para os dias de hoje. Fala de pessoas que se "exaurem em uma labuta febril e penosa", querendo ser mais meritória aos olhos de Deus.

Pedro de Camargo fala de espíritas que negligenciam seus deveres familiares, profissionais e sociais em função de uma agenda cheia de compromissos espíritas visando, calculistas, serem mais merecedores aos olhos de Deus. Vinicius destaca outra frase do Cristo: "Misericórdia quero e não sacrifício"

5.2.11

MOEDAS DO EVANGELHO: ÓBOLO E LEPTO



Figura 1: Óbolo de bronze


Os evangelistas Marcos (12:41) e Lucas (21:2) narram o episódio de uma viúva pobre que doou "duas pequenas moedas que valiam um quadrante". Jesus valoriza mais a doação desta viúva que a dos demais doadores por ser capaz de doar o que lhe faria falta, enquanto os demais doavam o que lhes sobrava.

Figura 2: Óbolo de prata

Haroldo Dutra (O Novo Testamento) entende que esta moeda seria o lepto, que seria "a menor das moedas judaicas", feita de cobre com valor estimado em 1/8 de centavo.

Figura 2: Lepto de bronze (frente)


Há contudo uma moeda grega com o nome de óbolo (do grego ὀβολός), com valor equivalente a 1/6 de dracma. O óbolo era feito de prata e posteriormente de cobre. O texto de numismática que consultei afirma que o óbolo era colocado sob a língua dos mortos gregos para que pudessem pagar a Caronte, o barqueiro da mitologia, a travessia do Estige, rio que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. (http://numismaticabentes.wordpress.com/2010/02/16/introducao-a-numismatica/ )

A passagem dos dois evangelistas foi denominada como o óbolo da viúva. Cabe comentar que a palavra óbolo tem também o significado de pequeno donativo.

A moeda denominada quadrante, citada no texto de Marcos, parece ser uma moeda em cobre, Romana, do período do império, de baixo valor. Pode-se ler um pouco sobre as moedas romanas no site http://www.angelinicoins.com/Hist/ImpRomano/MundoRom.html

31.1.11

MOEDAS DO EVANGELHO: DRACMA


Figura 1: Didracma de cerca de 220 a. C.

Kardec considerava necessário que se estudasse o significado das palavras da época para que a interpretação fosse clara. Faz-se menção a diversas moedas nos textos evangélicos, por causa da localização da Judéia e dos países vizinhos. Moedas gregas, romanas e locais eram utilizadas pelos habitantes. Escolhemos algumas e rastreamos seu valor para auxiliar o leitor do Espiritismo Comentado que se interessa pelos estudos evangélicos.
Geralmente há alguma correspondência entre uma moeda antiga e uma medida de produtos comercializados. As moedas podem ser feitas de diferentes metais (bronze, cobre, prata, ouro e electro: uma liga de ouro e prata).


Figura 2: Tetradracma com a efígie de Alexandre O Grande, cunhada próximo ao ano de 330 a. C.

A dracma corresponde em valor a um centésimo de uma “mina” de prata suméria. Seis mil dracmas equivaliam a um talento de ouro. Haroldo Dutra afirma que a dracma equivalia ao preço de uma ovelha. Tucídides (historiador grego clássico) afirma que no século IV a.C. uma dracma era equivalente a um dia de trabalho de um soldado grego e outros historiadores associam uma dracma ao dia de trabalho de um operário qualificado. Uma dracma valia seis óbulos e seis mil dracmas equivaliam a um talento ateniense. Encontram-se moedas de valores múltiplos de uma dracma (didracmas, tridracmas, tetradracmas e decadracmas, etc) na antiguidade.


Figura 3: Decadracma de cerca de 400 a.C.


No Evangelho de Lucas, capítulo 15, Jesus conta a parábola da dracma perdida.