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10.6.19

DESCARTES E KARDEC NA REVISTA REFORMADOR




A revista Reformador publicou este mês, junho de 2019, o nosso ensaio “René Descartes e Allan Kardec: conceito e atributos de Deus”. Esse trabalho argumenta que há um possível diálogo entre as ideias que Kardec trocou com os espíritos e alguns conceitos do “pai do racionalismo” francês.

Descartes parte do “cogito”, postulado principal de seu sistema filosófico, para concluir a existência de Deus, na segunda meditação cartesiana. O artigo trata também da questão 7 de O livro dos espíritos, cuja questão foi reescrita na segunda edição francesa, na qual Kardec discute uma questão antiga da filosofia que associa Deus ao conceito de infinito. 

Ainda nesse trabalho tratam-se das três substâncias (ousias) cartesianas existentes, como descritas pelo filósofo francês: a res infinita ou res divina (ou Deus, como afirma Kardec); a res cogitans (ou espírito, com e minúsculo, como pensa Kardec) e a res extensa (ou matéria, em Allan Kardec). 

A revista mensal publicada pela Federação Espírita Brasileira (Reformador) pode ser assinada em formato digital ou impresso. A anuidade atual da assinatura digital é de 50 reais e pode ser feita em https://www.souleitorespirita.com.br/loja2/ Mais informações no mesmo site. O formato digital pode ser lido em computadores, notebooks, smartphones e outros aparelhos digitais de imagem.

Mais informações em http://www.souleitorespirita.com.br/reformador/contato/

30.5.19

CURIOSIDADES: ALLAN KARDEC E MADAME JAPHET




Estive procurando informações sobre Celine Japhet, e esbarrei em uma curiosidade. Na revista "The spiritualist and journal of psychological science" de 13 de agosto de 1875, Alexander Aksakof publicou um texto escrito no castelo de Krotofka, na Rússia, em julho do mesmo ano.

O texto é bastante interessante para os estudiosos de Allan Kardec, e trata das acusações de Mme. Japhet a Kardec, tendo sido reproduzido depois no livro "Nineteenth Century Miracles", escrito pela espiritualista Emma Hardinge Britten.

Uma informação nova aos interessados na biografia de Kardec é dada pelo cientista Russo: que Rivail publicou "O livro dos espíritos" com os nomes que teve em suas duas reencarnações anteriores. 

Segundo Aksakof, o nome Allan foi informado por Madame Japhet e o nome Kardec pelo médium Roze. 

Outro dado curioso é que Rivail foi introduzido ao círculo de Mme. Japhet por Victorien Sardou, em 1856.

Outra curiosidade é que ela trabalhava como sonâmbula e era induzida ao transe empregando objetos "mesmerizados" pelo Sr. Roustan, um magnetizador que a acompanhou em Paris desde 1846, época em que ela se tornou sonâmbula profissional. 

Aksakof diz que Japhet alega ter psicografado três quartos de "O livro dos espíritos" e que um quarto se deve a Madame Boudin, médium de outro círculo. É curioso que ela chame Baudin de senhora, e que a identifique sem falar de sua irmã. No mesmo texto, Alexander apresenta a indignação de Madame Japhet, que desejava ter notoriedade a partir da publicação de O Livro dos Espíritos. Ele lamenta que ela tenha sido lembrada por Kardec apenas na última página do primeiro número da Revue Spirite.

Fui lá conferir, e encontrei uma versão um pouco diferente dos lamentos da médium para o pesquisador russo.

"Os primeiros médiuns que concorreram para o nosso trabalho foram as senhoritas B..., cuja boa vontade jamais nos faltou. O livro foi quase todo escrito por seu intermédio e em presença de numeroso público que assistia às sessões, nas quais tinha o mais vivo interesse. Mais tarde os Espíritos recomendaram uma revisão completa em sessões particulares, tendo-se feito, então, todas as adições e correções julgadas necessárias. Essa parte essencial do trabalho foi feita com o concurso da Senhorita Japhet, a qual se prestou com a melhor boa vontade e o mais completo desinteresse a todas as exigências dos Espíritos, porque eram eles que marcavam dia e hora para suas lições. O desinteresse não seria aqui um mérito especial, desde que os Espíritos reprovam qualquer tráfico que se possa fazer da sua presença; a senhorita Japhet, que é também uma notável sonâmbula, tinha seu tempo utilmente empregado: mas compreendeu que lhe daria uma aplicação proveitosa ao se consagrar à propagação da doutrina." Allan Kardec, Revista Espírita, janeiro de 1858.

Na publicação da segunda edição de "O livro dos Espíritos", Kardec escreveu na Revista Espírita de março de 1860, que as mudanças anunciadas no artigo de janeiro de 1858 foram efetivamente realizadas na segunda edição do livro, o que mostra que, de fato, Japhet deu um grande concurso à revisão e ampliação de O livro dos espíritos, mas ela parece superestimar sua participação como médium.

23.5.19

FEB PUBLICA A PRIMEIRA EDIÇÃO DE "A GÊNESE"




Há algum tempo se discute qual seria a última edição do livro "A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo" publicada por Allan Kardec. Após muita pesquisa e discussão, a Federação Espírita Brasileira publicou em "Edição Histórica Bilíngue" (Português e Francês) o texto da primeira edição francesa de Kardec. 

A tradução foi realizada por Evandro Noleto Bezerra. psiquiatra maranhense que traduziu toda a obra disponível de Allan Kardec para o português.

A editora publicou um aviso, explicando que o texto das quatro primeiras edições desse livro são, na verdade, reimpressões, uma vez que o texto não foi alterado por seu autor.

A quinta edição foi publicada em 1872 - após a desencarnação de Allan Kardec (1869) e foi traduzida por Guillon Ribeiro para a língua portuguesa. Ela apresenta alterações cuja autoria é questionada por alguns estudiosos, como Simoni Privato, cujo livro apresentamos neste blog. 

Com essa última publicação da federativa brasileira, os interessados no estudo do texto kardequiano poderão comparar as quatro primeiras edições com a quinta, e ainda conferir o texto original francês.

14.2.19

DARWIN, DEÍSTA; KARDEC, CRISTÃO-ESPÍRITA





Allan Kardec tem um texto publicado em Obras Póstumas que sempre me intrigou, denominado “As cinco alternativas da humanidade”. Confesso que nunca entendi direito os deístas e porque Kardec denominou “doutrina dogmática” à dos católicos e protestantes, sem menção ao cristianismo.

Ele coloca em uma posição diversa o espiritismo, confrontando-o com as demais doutrinas, nos aspectos que selecionou delas.

Já levantamos em outra publicação do Espiritismo Comentado, a questão do panteísmo e de sua relação com o pensamento de Baruch Spinoza.

Hoje eu estou lendo o livro “Dispelling the Darkness: Voyage in the Malay Archipelago and the Discovery of evolution by Wallace and Darwin”, de John Van Wyhe, que trata do tema de forma interessante.

Ele diz que Darwin também “pensava muito sobre religião” e que foi durante a pesquisa e teorização intensa que ele fez à bordo do Beagle que ele passou a desacreditar “na cristandade e divina revelação. Não havia simplesmente nenhuma evidência. Ele desceu um nível e se tornou um deísta. Ele ainda acreditava em um criador sobrenatural que estabeleceu as leis da natureza em primeiro lugar, mas tanto quanto Darwin pensava, a natureza trabalhava de acordo com as leis naturais.”

Os deístas entendem, em geral, que se pode estudar a divindade a partir do conhecimento da natureza, e não da teologia cristã. No caso de Darwin, ele fez uma ruptura com o pensamento cristão, após começar a perceber que existia a evolução das espécies a partir da seleção natural, que induziu, assim como Wallace, da leitura de Thomas Malthus, curiosamente.

Da mesma forma que Darwin, em sua autobiografia, Flammarion rompe com o cristianismo ainda na adolescência, após estudar os avanços da ciência e os erros da Bíblia no que concerne à idade do mundo, formação da humanidade e outros temas que emergiram nas ciência no final do século XVIII e início do século XIX.

Nesse ponto, há alguma relação entre Darwin e Kardec, porque Kardec entendia as leis naturais como criadas por Deus, e por isso as chamava de “Lei Divina ou Natural”, mas Kardec propõe leis que vão além de Darwin, e aceita um providencialismo que não é divino, mas espiritual.

Outra diferença entre o deísta Darwin e o espírita Allan Kardec, é que este se entendia como cristão espírita, ou seja, ele não abriu mão do cristianismo como base ética, nem do estudo histórico do cristianismo, nem da possibilidade de explicar passagens da vida de Jesus e dos apóstolos consideradas milagres com a nova perspectiva obtida a partir dos estudos dos fenômenos espirituais.

Na classificação de Kardec, Darwin seria um deísta independente, e não providencialista.

Considerando a classificação de Kardec de espírita-cristão, o espiritismo teria uma dimensão religiosa, como entendia Flammarion em seu livro "As Forças Naturais Desconhecidas".

8.2.19

COMO O ESPIRITISMO VÊ A QUESTÃO DA CATÁSTROFE DE BRUMADINHO?





Após a tragédia de Brumadinho, muitos espíritas têm se preocupado em argumentar sobre a questão da justiça divina do sofrimento coletivo. Há em Allan Kardec, contudo, outra questão importante que ele trata na Lei de Destruição (O Livro dos Espíritos), quando pergunta aos Espíritos sobre os flagelos (no sentido de catástrofe, dano coletivos): o progresso dos homens, em especial o progresso da sociedade. 

Por progresso, nesse caso, não entendemos um crescimento a partir de um sofrimento depurador, mas uma mudança de mentalidade, conhecimentos e ações coletivas para evitar no futuro novas catástrofes.

Na questão 741, Allan Kardec pergunta se é possível  ao homem afastar os flagelos e os Espíritos respondem que muitos deles “resultam da imprevidência do homem”. É o que nos parece ter acontecido nos casos de Mariana e Brumadinho-MG. Duas semanas após o rompimento da barragem de rejeitos que gerou a desencarnação violenta de muitas dezenas de pessoas na cidade próxima à capital mineira, os meios de comunicação têm dado voz a especialistas que apontam formas alternativas de lidar com os rejeitos, tecnologias de prevenção da ruptura das barragens, problemas da legislação referente à fiscalização do estado das barragens de contenção, entre outras questões. 

A ruptura da barragem de Mariana foi uma catástrofe que, se tivéssemos, como sociedade e órgãos de Estado, levado à sério, teria o papel de promover avanços capazes de evitar ou minimizar em muito os danos da ruptura da barragem 1, de Brumadinho. Uma questão que não sofreu avanços e tem sido questionada é o próprio sistema de fiscalização das barragens no qual o fiscal é ao mesmo tempo prestador de serviços diretamente contratado pela empresa mineradora, e que poderia ter sido solucionado com uma mera alteração legal.

Os Espíritos dizem a Kardec: “À medida em que adquire conhecimentos e experiência, ele pode afastar, isto é prevenir, se souber pesquisar suas causas.”
Kardec ainda comenta: “... Entretanto, não tem o homem encontrado na Ciência, nas obras de engenharia, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações, no estudo das condições higiênicas, meios de neutralizar, ou pelo menos de atenuar, tantos desastres? Certas regiões, outrora assoladas por tantos flagelos, não estão hoje livres deles?”

Esperamos que o segundo e mais grave episódio de ruptura de barragens faça acordar a população brasileira, e, em especial, a nós espíritas, para realizarmos o que é necessário: acompanhar as mudanças que evitarão ou pelo menos atenuarão novos incidentes capazes de ceifar vidas, destruir comunidades e deixar consequências no meio ambiente que talvez afetem a um grande número de seres vivos por um grande período de tempo.

30.1.19

KARDEC, A ALMA DO MUNDO E O PANTEÍSMO



Como bom pedagogo, ao escrever seus livros para o grande público, Allan Kardec discutiu com os espíritos muitos tópicos da filosofia antiga e de sua época, sem ficar citando os autores. Alguns conceitos, hoje esquecidos, deviam ser muito conhecidos no meio intelectual francês do século XIX, e vez por outra, ao pesquisar as origens, esbarro em algum filósofo importante.

Em sua primeira publicação espírita, Kardec apresenta rapidamente o conceito de “alma do mundo” – “âme du monde” (O Livro dos Espíritos, questão 144), afastando a ideia de que os planetas são seres viventes, como pensava, por exemplo, Orígenes, em seu “Tratado sobre os princípios”, no século III.

O dicionarista Ferrater Mora explica que o conceito de “alma do mundo” está em Platão, como uma “mescla harmoniosa pelo demiurgo das ideias e da matéria”. É bem possível que Kardec tenha usado o termo platônico para questionar aos Espíritos, uma vez que ele considera Platão e Sócrates como precursores do cristianismo e do espiritismo.

No capítulo XI de A Gênese, Kardec refere-se a um conceito semelhante, o de “alma do universo” (A Gênese, capítulo XI, parágrafo 28), em francês, “âme de l’univers”.

Heráclito fala de uma “alma do universo”, que é um “todo homogêneo” para onde volta a alma humana após a morte, perdendo sua individualidade e tornando-se homogênea.

Baruch Spinoza (século XVII) entendia Deus como sendo a “alma do universo”, no sentido que era o “mecanismo imanente da natureza”, ou seja, Deus é a natureza. Trata-se de uma concepção panteísta.

Allan Kardec, contudo, deixa claro que o espiritismo não é panteísta em seu texto “As cinco alternativas da humanidade”, publicado em Obras Póstumas. É um texto que não se encontra na Revista Espírita, no período em que Kardec foi seu editor, deve ser, portanto, um texto do final de vida.

Spinoza é considerado o “monista por excelência”, porque entende que tudo é uma única substância: Deus, o universo e o ser humano. Kardec, contudo, posiciona-se como dualista ou trinitário (trindade universal), uma vez que entende que há dois princípios ou substâncias, o material e o espiritual, e “acima de tudo Deus”, cuja natureza (essência, substância) diferiria do espírito e da matéria. (O Livro dos Espíritos, questão 27)

O monismo de Spinoza pode ser lido em seu livro "Ética demonstrada à maneira dos geômetras". Na proposição XVI encontra-se a concepção de Deus como infinito, que resultaria na concepção de Deus como um intelecto infinito e causa primeira. (corolários I e III). 

Há uma conexão entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e a metafísica de Allan Kardec. 



24.1.19

A COMUNICABILIDADE DOS ESPÍRITOS É UMA PREMISSA METAFÍSICA NO ESPIRITISMO?


Mais recentemente, com o retorno da filosofia ao ensino médio brasileiro e a ampla difusão das obras de Allan Kardec, com iniciativas como as da FEB e do Instituto de Pesquisas Espíritas Allan Kardec (IPEAK), têm surgido novos debates com base em leituras, não apenas das obras básicas do fundador, mas também da Revista Espírita, no período em que ele era o editor (1858-1869), que contém contribuições que deixam mais claros alguns pontos do pensamento espírita.


Vi por esses dias um debate sobre os princípios a partir dos quais o espiritismo foi elaborado. Na filosofia, esses princípios podem ser ideias consideradas corretas (premissas ou postulados) ou justificadas racionalmente. Já os dogmas, embora tenham o sentido original de premissas de sistemas filosóficos na antiguidade, acabaram por ser entendidos como pontos de vista indiscutíveis sobre os quais se fundam as religiões, especialmente a partir do cristianismo medieval.



Um ponto aparentemente óbvio, mas que foi e parece que continua sendo fonte de debates, diz respeito à existência e comunicabilidade dos espíritos. É uma premissa adotada por Kardec como verdadeira e indiscutível (dogma) ou é o resultado de uma cuidadosa observação de fatos?



Na Revista Espírita de abril de 1869, encontra-se um artigo curioso, intitulado "Profissão de fé espírita americana", onde possivelmente Allan Kardec comenta uma publicação do jornal Salut, de New Orleans, de 1867, no qual se divulgam os resultados de um congresso espiritualista norte americano. O evento gerou uma "profissão de fé" dos espiritualistas dos Estados Unidos, e Kardec destaca as muitas semelhanças entre pontos de vista e as muito poucas diferenças. Como foram movimentos desenvolvidos separadamente, Kardec argumenta como um ponto favorável ao espiritismo.



Uma questão que ele destaca em seus comentários é a da origem da proposição da comunicabilidade dos Espíritos no espiritualismo e no espiritismo. Lê-se abaixo:



"Essa crença não é mais o resultado de um sistema preconcebido nesse país do que o Espiritismo na França. Ninguém a imaginou; viu-se, observou-se e tiraram-se conclusões. Lá, como aqui, não se partiu da hipótese dos Espíritos para explicar os fenômenos, mas dos fenômenos, como efeito, chegou-se aos Espíritos como causa, pela observação. Eis uma circunstância capital que os detratores se obstinam em não levar em conta." (Revista Espírita, abril de 1869, p. 99. Tradução de Júlio Abreu Filho pela EDICEL)


Cabe lembrar também que não se trata de crença ingênua, porque Allan Kardec examinou as diferentes formas de explicação dos fenômenos estudados, como se pode ler no capítulo IV da primeira parte de O Livro dos Médiuns (Dos sistemas), verificando a capacidade explicativa de cada um deles e delimitando os fenômenos que só seriam devidamente explicados pelas comunicabilidade dos Espíritos.

Camille Flammarion não ficou satisfeito com este trabalho de Allan Kardec e continuou estudando empiricamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos de forma geral. Publicou em 1865 o livro "As forças naturais desconhecidas", no qual analisa e considera verdadeiros diversos fenômenos estudados, mas ainda não conclui pela indubitabilidade da comunicação dos espíritos. Essa conclusão veio em 1922, quando publicou o terceiro livro de "A morte e seu mistério".

Vê-se, portanto, que seria um erro entender que o Espiritismo propõe a comunicabilidade dos Espíritos apenas como ideia ou princípio metafísico, mas que se trata do resultado de observações de fenômenos psicológicos (ou parapsicológicos, como queira o leitor) e que não nega a possibilidade de outras explicações, exigindo do seu observador uma análise cuidadosa para não levar "gato por lebre", ou seja, não confundir com as produções do inconsciente, com a imaginação ativa, com a fantasia, fraudes intencionais ou não e outras explicações possíveis.

8.11.18

ESPIRITISMO: CIÊNCIA NATURAL OU FILOSOFIA?




Em uma das palestras que fiz recentemente, surgiu uma questão interessante sobre o status epistemológico do espiritismo. Não dava para desenvolver a questão nas condições em que nos encontrávamos, então deixei para tratar aqui, no Espiritismo Comentado.

Meu interlocutor via, de um lado as ciências (entendidas como as ciências naturais) e de outro a filosofia (com suas subáreas tradicionais, menos a psicologia). Ele argumentava que o espiritismo devia tender, portanto, para a filosofia, que possivelmente teria um poder explicativo melhor. 

Contudo, na universidade contemporânea, entre a filosofia e as ciências naturais encontram-se as ciências humanas e sociais. São áreas de conhecimento desenvolvidas geralmente a partir do século XIX, que estudam o homem, sua cultura, suas organizações e sociedade. 

No princípio, as ciências humanas tentaram empregar métodos das ciências naturais para esses estudos, como se pode ver em Durkheim (ciências sociais), os autores estruturalistas e funcionalistas (psicologia), entre outros. Como os avanços fossem modestos e contraditórios, diferentemente da física, por exemplo, logo se viu que o objeto de estudo desses cientistas era capaz de se modificar, o que ele fazia através da linguagem.

Por esse motivo, as ciências humanas avançaram (para alguns cientistas não), e englobaram métodos de estudo de base hermenêutica e fenomenológica, que consideram a apreensão do significado da linguagem humana e suas consequências, entre outras contribuições que hoje se costuma chamar de métodos qualitativos, e que vão além da observação. Autores com De Bruyne, denominam essa abordagem como abordagem da compreensão (que envolve uma busca rigorosa do significado do que fala o sujeito e suas implicações), em oposição à abordagem da explicação, das ciências naturais (que envolvem, leis, descritas matematicamente, de forma exata ou probabilística, explicando eventos que seguem a regularidade matemática encontrada). 

Allan Kardec desde o princípio de seus estudos, percebeu que o método das ciências naturais era insuficiente para obter respostas para as questões investigativas que tinha a propor para as “inteligências desencarnadas”. Ele manteve o indutivismo das ciências naturais, mas percebeu que como os espíritos tinham diferentes capacidades de descrever o mundo em que viviam, era necessário classificá-los, o que fez com a escala espírita, para estudar apenas os relatos dos espíritos superiores.

Outra coisa que ele fez, muito semelhante à pesquisa fenomenológica, que só foi estabelecida anos depois, foi buscar na narrativa dos espíritos superiores, aquilo que lhes era comum. Ele denominou seu método, na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de “controle universal do ensino dos espíritos”. Com isso, ele buscava conteúdos semelhantes através de médiuns diferentes, de preferência os que desconheciam as contribuições dadas pelos demais, como forma de controle da interferência do médium na comunicação. Em fenomenologia, isso se chama “redução fenomenológica”. Outro ponto do método de Kardec era evitar ideias pré-concebidas e ater-se aos conteúdos colhidos. Em fenomenologia isso se chama “suspensão de juízo”.

O mestre francês sempre analisava o conteúdo do que lhe era dito de forma compreensiva (o que significa o que o espírito disse? Está de acordo com os demais espíritos superiores? Faz sentido?) e utilizava a razão como forma de análise e comparação.

Em um artigo já publicado, desenvolvemos mais esse ponto de vista. Está no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia”, publicado pela parceria CCDPE-ECM e LIHPE, e é intitulado “Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”.



Se aceita essa argumentação, entendemos que do ponto de vista metodológico e epistemológico, há conhecimentos no corpo da doutrina espírita que se desenvolveram com base na observação e experimentação (ciências naturais), há outros conhecimentos que são fruto da argumentação racional (filosofia), mas boas parte do corpo doutrinário repousa em uma análise fenomenológica daquilo que os espíritos disseram aos estudiosos do século XIX e que foi analisado por Allan Kardec (métodos qualitativos de ciências humanas). Boa parte da ética espírita tem uma dupla origem como conhecimento: os relatos da vida após a morte e das consequências das ações em vida (análise fenomenológica de Kardec), e a análise da ética cristã como referência ética para a humanidade (o que constitui parte do aspecto religioso do espiritismo, considerando-se, contudo, que Kardec busca uma fé raciocinada, ou seja, com contribuições dos métodos filosóficos, e não apenas uma “fé cega”)

5.10.18

OS DOIS CONCEITOS DE NATUREZA EM ALLAN KARDEC




Estivemos atendendo a um pedido da Aliança Municipal Espírita de Belo Horizonte, ao estudar com os amigos do Cenáculo Espírita Thiago Maior sobre “A natureza da alma e suas transformações”. Em princípio seria uma revisão de dois capítulos do livro de Allan Kardec chamado “O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o espiritismo”.

Dois significados diferentes para a palavra natureza

Ao trazer ao título a questão da natureza fomos rever quais significados são utilizados por Kardec para essa palavra. Resolvemos usar a lógica de uma técnica usual dos tradutores, verificar o sentido das palavras ao longo da obra de um mesmo autor.

O dicionário Houaiss enumera treze sentidos diferentes com que essa palavra pode ser usada, mas nos interessam dois específicos que aparecem sob a rubrica da filosofia: a natureza como essência, como substância do ser (a natureza de Deus ou do homem, por exemplo) e “tudo quanto existe no cosmos sem intromissão da consciente reflexão humana”, ou seja, os planetas, os ecossistemas, etc.

A natureza como essência

Ao procurar em Allan Kardec qual sentido ele empregava, encontramos textos com os dois significados, logo em “O Livro dos Espíritos”. Ele fala em “natureza da alma” (introdução, item II), natureza do espírito (introdução item IV) e natureza de Deus (questão 11). Em todos esses casos, ele trata de “essências”, e não faz sentido falar em cosmos. Isso nos leva a entender que, em princípio, Kardec é dualista, porque entende que existem duas substâncias diferentes: o espírito (com é minúsculo) e a matéria (que pode ser ou não percebida pelos cinco sentidos).

Alguns espíritas entendem que Kardec é monista, porque o espírito não se apresenta sem o seu perispírito (é o que ele denomina como Espírito, com E maiúsculo, porque se encontra individualizado, capaz de ser identificado pelos médiuns, e que se encontra na questão 76 e seguintes), mas é bastante claro que Kardec e os Espíritos com quem ele dialoga falam de duas substâncias distintas que interagem, como na questão 27:

“Há, então, dois elementos gerais do Universo, a matéria e o espírito? “Sim, e acima de tudo Deus, o criador, pai de todas as coisas...”

A natureza como “cosmos sem intromissão da consciência humana”

Em outras situações, Kardec usa a palavra natureza como cosmos (e não como Universo, que seria formado a partir do espírito e da matéria). 

Na introdução de O Livro dos Espíritos, se encontra frases como “estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da Natureza”, e na questão 9 se encontra “Não podendo nenhum ser humano criar o que a Natureza produz...”. Nesses dois exemplos, a palavra natureza não significa essência, mas o universo material, descrito pela física, química e biologia, e suas leis.

Alguns tradutores de O Livro dos Espíritos, como Guillon Ribeiro e Evandro Noleto Bezerra perceberam essa diferença de significado, e traduziram com uma pequena diferença: quando entendem que a palavra natureza é cosmos, a escreveram com maiúscula, mesmo no meio da frase, e quando entendem que é essência, publicam em minúscula (exceto no início da frase, claro).

Quando levei a questão para dois amigos da LIHPE, um deles me perguntou se havia consultado o original francês. Olhei essas passagens e mais algumas em três diferentes edições francesas que encontramos no IPEAK e na edição bilíngue de Canuto Abreu. Para nossa surpresa, a distinção feita não é de Allan Kardec, que escreve natureza sempre em minúscula (exceto onde a gramática exige maiúscula), mas dos tradutores. 

Não me parece que os tradutores tenham agido como "traidores", como diz a expressão italiana "traduttore traditore", mas mereceria uma nota de rodapé nos livros, para que os leitores saibam exatamente o que foi feito, com a finalidade de transmitir o que pensava Allan Kardec e os Espíritos com quem dialogava, e deixando claro o risco do tradutor haver se equivocado em sua interpretação do texto que traduz. Não sei dizer, também, se no passado era considerada a diferença entre natureza e Natureza, como hoje é considerada a diferença de significado de estado e Estado.

Concluindo


Essa questão dos sentidos diferentes para palavras iguais, usada por Kardec em diversas situações, mais detidamente a questão da palavra natureza, não foi estudada por mim à exaustão, ou seja, só consultei uma dúzia de trechos da obra kardequiana. Merece ser ampliado, para termos uma boa compreensão dos seus livros e artigos.

Outra questão que fica relevante é a troca da palavra Natureza pela palavra universo, entre a quarta e quinta edições de A Gênese, ou seja, Allan Kardec não emprega essas duas palavras como sinônimas. Isso merece ser estudado mais detidamente.

Outra questão que se nos impõe é distinguir o conceito de princípio inteligente, ou espírito, como princípio ou substância (como diziam os gregos, e nos lembrou o Sílvio Chibeni) de princípio espiritual ou seja, uma dimensão espiritual nos animais, por exemplo, sem todas as faculdades encontradas no Espírito.

Para algumas pessoas pode parecer preciosismo, mas muitos espíritas acabam fazendo o que os Espíritos que se comunicaram com Kardec pedem que não seja feito: ficar brigando por causa de palavras. Explicar e justificar os significados, com abertura para o contradito, modifica a atitude de estudos dos interessados no espiritismo.

2.10.18

A HISTÓRIA DE KARDEC EM QUADRINHOS




Acabo de ler o livro “Kardec e os Espíritos”, na verdade uma grande história em quadrinhos para jovens e adultos que tem por tema a vida de Allan Kardec até o lançamento de O Livro dos Espíritos.



Como não podia deixar de ser, foi impresso com qualidade, e apesar da capa um pouco escura, a  história é contada em imagens mais claras, para as cenas que ocorrem supostamente de dia e outras que representam bem a noite e a penumbra,


O ilustrador e autor foi o portenho Guillermo Luis, que trabalha no Brasil desde 1985.

Ele optou por contar a história de modo não linear, entrelaçando a escrita e publicação de O Livro dos Espíritos, com a vida de Allan Kardec até seu contato com as mesas girantes.

Cada quadrinho é explicado nas páginas finais, que cita as fontes e distingue o que é ficção do que foi colhido nas diversas biografias de Allan Kardec. Muitos dos quadrinhos foram inspirados pelos escritos de Canuto Abreu, em seu “O livro dos espíritos e sua tradição histórica e lendária”.

Gabi ou Amélie, esposa de Rivail, ficou muito simpática nos traços e tintas do quadrinista.
Li o livro quase todo antes da palestra que fiz ontem , e as imagens facilitaram muito a memorização dos diversos personagens e passagens de Rivail-Kardec.

Recomendo aos interessados e espero que a editora consiga publicar em breve o tomo II, que será intitulado O Livro dos Médiuns.

15.8.18

A LIVRARIA QUE ALLAN KARDEC NÃO FUNDOU



O Espiritismo Comentado tem se dedicado no último mês a divulgar os trabalhos do 14o. Encontro Nacional da LIHPE, mas muitas coisas vêm acontecendo que demandam um diálogo com os leitores. Hoje gostaria de conversar sobre a proposta de transformação de uma livraria na França em Museu Allan Kardec, feita pela blogueira Mari, sob o título: "Salve a livraria fundada por Allan Kardec em Paris". Quem quiser assistir o trabalho acesse: https://tipsparis.com/

Visivelmente emocionada, a blogueira ficou conhecendo a Livrairie Leymarie, e de boa fé veiculou diversas informações falsas, inclusive a que vai no título do post: Essa livraria não foi fundada por Allan Kardec! Lá também não aconteceram fenômenos de mesas girantes. Allan Kardec, encarnado, nunca esteve nesse endereço físico...

Na placa da frente do imóvel na "Rue de Saint Jacques" se lê: Ocultismo - Livraria. No vidro acima da porta está escrito: Edições Leymarie Ciências Psíquicas - Astrologia. 

Pelo que se vê no filme, há um grande quadro de Allan Kardec, dentro da livraria, o que pode ter contribuído para que a população na França associasse espiritismo a ocultismo e outras ideias místicas. A foto está em https://scontent.fplu9-2.fna.fbcdn.net/v/t1.0-9/39162740_1799746120062921_3862815477747154944_n.jpg?_nc_cat=0&oh=e5dec6ddbb85fc6a14f40383a516f46f&oe=5C142978

Kardec fundou uma livraria na Rue Lille 7, em 1869, e não em 1858, como se acha no Facebook da Librairie Leymarie. 1858 é o ano da pubicação da Revista Espírita (Revue Spirite), cujo título ficou sob a responsabilidade de Leymarie, alguns anos após a desencarnação de Allan Kardec. https://www.facebook.com/pg/librairieleymarie/about/?ref=page_internal

A trajetória de espaços físicos e livrarias que sucederam a desencarnação de Allan Kardec podem ser lidas resumidamente, na publicação que o blog Espiritismo em Movimento fez: https://espiritismoemmovimento.blogspot.com/2018/08/a-livraria-espirita-e-livraria-leymarie.html?m=1

Para uma leitura mais detalhada, temos livros bem fundamentados em pesquisa documental:

- O legado de Allan Kardec - autora: Simoni Privato
- Madame Kardec - autor: Adriano Calsone

São dois textos muito fáceis de se ler, bem escritos e interessantes (para quem deseja conhecer o movimento espírita francês após Kardec).

8.5.18

GEOGRAFIA(S) DO MUNDO ESPIRITUAL



O título desta matéria é também o título do capítulo do livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia”, publicado em 2014 pela Liga de Pesquisadores do Espiritismo – LIHPE e pelo Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo – Eduardo Carvalho Monteiro – CCDPE-ECM.



Escrito pelo então geógrafo e mestre em geografia, hoje doutorando em geografia Chrystiann Lavarini, o trabalho traz inúmeras contribuições ao pensamento espírita contemporâneo.

Ele se inicia com a apresentação de conceitos gerais em geografia, como território, região, lugar, paisagem e espaço geográfico, esse último conceito influenciado pelo conhecido geógrafo brasileiro, Milton Santos.

Uma vez definidos os conceitos, o autor faz a análise do relato espiritual contido em dois livros: “O céu e o inferno”, de Allan Kardec e “A crise da morte” do italiano Ernesto Bozzano.



Ao comparar os relatos dos Espíritos felizes com os dos Espíritos sofredores, Lavarini explica:

“Os territórios ocupados pelos Espíritos Sofredores diferem, e muito, do quadro apresentado pelos Espíritos Felizes, sobretudo pela sua incapacidade de viver e perceber as regiões distintas do grau evolutivo a que pertencem, associado à impossibilidade de se locomoverem livremente no espaço.” (Lavarini, 2014, p. 185)

Lavarini identificou quatro espíritos no livro de Kardec que falam de trevas: Claire, Lisbeth, Palmyre e Joseph Maitre. Ele entende que a descrição pode ser entendida como um estado consciencial, que por afinidade e atração ocasionaria “espaços resultantes do insulamento a que suas consciências encontram-se submetidas”.



Ao analisar as pesquisas de Bozzano, baseado no relato de dezessete espíritos desencarnados, o autor entende que “a existência de uma paisagem espiritual objetiva, que nem sempre é passível de ser produzida ou reproduzida somente pela vontade espiritual, mas que se enquadra dentro das manifestações psíquicas coletivas do Mundo Espiritual.” (Lavarini, 2014, 193)

O texto é longo, citado de forma rigorosa e repleto de contribuições, que não dá para apresentar no espaço de um blog. Chrystiann mostra a consistência entre a pesquisa de Bozzano e a de Allan Kardec e demonstra a necessidade de entendermos a conceituação geográfica para entendermos o que nos dizem os espíritos sobre a vida no mundo espiritual.

Recomendo aos leitores do Espiritismo Comentado a leitura do texto e do livro, que traz muitas contribuições a quem deseja realmente estudar o espiritismo. Ele pode ser adquirido na livraria virtual do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo - Eduardo Carvalho Monteiro e nas distribuidoras de livros espíritas, como a Candeia e a Boa Nova.

28.4.18

NOS BASTIDORES DA OBSESSÃO E "O CÉU E O INFERNO"



Estamos estudando pela segunda vez o livro "Nos bastidores da obsessão", psicografado por Divaldo Franco e escrito pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. Para o dia de hoje, ficou a nosso encargo parte do capítulo quatro que trata sobre o hipnotismo.

Após um histórico extenso das teorias sobre o hipnotismo no século XIX, início do século XX, com uma passagem pela questão da sugestibilidade de Bernheim, o instrutor espiritual começa a falar de obsessão entre desencarnados-encarnados e sobre influenciação entre desencarnados.

Ele parte do princípio que há ondas mentais exteriorizáveis, capazes de estabelecer conexões entre as mentes de pessoas e Espíritos. Nesse intercâmbio, ainda que não consciente, ocorrem os fenômenos de sugestão, que ele classifica como negativa ou positiva (do ponto de vista moral, ao que entendemos).

Com base nesse fenômeno ele se volta à questão da interação entre Espíritos no plano espiritual e diz:

"Céu ou inferno, portanto, são dependências que construímos em nosso íntimo, vitalizadas pelas aspirações e mantidas a longo esforço pelas atitudes que imprimimos ao dia-a-dia da existência".

Após mostrar que se trata do estado psicológico dos Espíritos desencarnados, ele continua mostrando suas interações:

"Por tais processos, províncias de angústia e regiões de suplício, oásis de ventura e ilhas de esperança nascem no recôndito de cada mente e se reúnem, em todos os departamentos do planeta." (p. 95 da 2a. edição)

O autor explica que ocorre a sintonia entre mentes a partir das afinidades. Podemos deduzir que esse fenômeno gera imagens, pensamentos e sentimentos que passam a ser compartilhados, pelos Espíritos que sintonizam na mesma faixa "psicológica". 

Allan Kardec não usa os termos "colônia espiritual", "umbral", "regiões inferiores" ou outros, mas trata da vida no mundo espiritual. No seu "O céu e o inferno", após desconstruir a ideia de inferno no capítulo IV, afirma sobre o purgatório:

"O espiritismo não nega, pois, antes confirma, a penalidade futura. O que ele destrói é o inferno localizado com suas fornalhas e penas irremissíveis. Não nega, outrossim, o purgatório, pois prova que nele nos achamos."... (p. 65)

Certamente, Kardec não subscreve a ideia de purgatório, assim como não subscreve a ideia de anjos. Ele apenas diz que os princípios dessas ideias são coerentes com o pensamento espírita. Ao ler essa passagem, à qual remeto o leitor, perguntei-me: Ele se refere apenas ao sofrimento das pessoas encarnadas ou também ao purgatório como condição de sofrimento das pessoas desencarnadas? No mesmo texto, mais à frente se lê:

"Seja qual for a duração do castigo, na vida espiritual ou na Terra, onde que que se verifique, tem sempre um termo, próximo ou remoto."

O mestre francês está preocupado com a tese da justiça divina, e não com a descrição dos sofrimentos nesse capítulo, por isso critica diversas vezes a "irremissibilidade dos erros". 

Ele ainda retorna à questão da circunscrição do espaço do "purgatório", e diz que:

"... eis por que mais naturalmente se aplica à Terra do que ao Espaço infinito onde erram os Espíritos sofredores" (p. 66)

Note o leitor que ele associa o conceito ao sofrimento, e por isso o amplia. Há muito sofrimento na Terra entre os encarnados, assim como existe sofrimento moral (ou psicológico) entre os desencarnados. Kardec não exclui o conceito de purgatório do "Espaço infinito", apenas o aproxima do sofrimento dos Espíritos encarnados.

Outra diferença entre o pensamento de Kardec e a tradição medieval cristã, é que o sofrimento não é o fim da inferioridade humana, mas meio, através do qual o Espírito pode conscientizar-se e empreender a reparação dos seus erros. 

"Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências" (p. 93)

Outro ponto pouco conhecido,  no mesmo livro, é o capítulo IV, que trata dos espíritos sofredores. Allan Kardec publica um ditado do espírito Georges, que explica como ficam os espíritos endurecidos e maus após a morte. Destaquei o seguinte parágrafo:

"Não elevam o olhar às moradas dos Espíritos elevados, consideram o que os cerca e, então, compreendendo o abatimento dos Espíritos fracos e punidos, se agarrarão a eles como a uma presa, utilizando-se da lembrança de suas faltas passadas, que eles põem continuamente em ação pelos seus gestos ridículos" (p. 263)

Essa é uma descrição de Georges sobre o mundo espiritual, no parágrafo posterior ele trata da ação desses espíritos na Terra, e trata da ação espiritual entre os homens.

Allan Kardec continua seu trabalho, identificando essa instrução nos relatos de espíritos em sofrimento.

Novel (p. 265-266), descreve sua perseguição pelos maus Espíritos no plano espiritual.

O Espírito de um boêmio (p. 269-270) segue com a influência da matéria no além túmulo, "sem que a morte lhes ponha termo aos apetites que a sua vista ... procura em vão os meios de os saciar."

O príncipe Ouran (p. 275) explica que "liberto da matéria, o sentimento moral aumentou-se, para mim, de tudo quanto as cruéis sensações físicas tinham de horrível".

Ferdinand Bertin (p. 279) assim descreve sua situação no mundo espiritual:

"Estou num medonho abismo! Auxilia-me... Oh! Meu Deus! Quem me tirará desse abismo?" E ele se sente ainda colhido pelo mar, onde faleceu. 

Claire, descreve sua experiência no mundo espiritual: "Também eu posso responder à pergunta relativa às trevas, pois vaguei e sofri por muito tempo nesses limbos onde tudo é soluço e misérias. Sim, existem as trevas visíveis de que fala a Escritura, e os desgraçados que deixam a vida, ignorantes ou culpados,  depois das provações terrenas são impelidos à fria região, inconscientes de si mesmos e do seu destino.

Palmyre (p. 306-308), que suicidou-se juntamente com o Sr. D., seu amante, ao descrever sua vida após a morte refere-se aos Espíritos que estão com ela no mundo espiritual, e diz que ouve "risos infernais e vozes horrendas que bradam: sempre assim!"

Se continuarmos a pesquisa, com certeza teremos mais elementos sobre as relações entre os Espíritos no mundo espiritual na obra de Kardec. 

Este tipo de descrição da interação e das relações entre Espíritos inferiores ou superiores no mundo espiritual foi realizado também por médiuns brasileiros, como Francisco Cândido Xavier, Yvonne do Amaral Pereira, Divaldo Pereira Franco e também através da série Histórias que os espíritos contaram, escrita pelo estudioso Hermínio C. Miranda. 

17.4.18

GENEALOGIA DE ALLAN KARDEC


Jussara Korngold, tradutora de livros de Allan Kardec para a língua inglesa, pesquisou e publicou recentemente uma árvore genealógica de Allan Kardec (Prof. HLD Rivail, como gostava de assinar seus livros). 

Entre as surpresas temos dois irmãos de Rivail, Auguste Claude e Marie Françoise, que desconhecíamos.

Parabéns à pesquisadora! 

11.4.18

JESUS EXISTIU? É IMPORTANTE PARA O ESPIRITISMO?



Manuscritos de Nag Hammadi


Com o passar do tempo e o desenrolar da história, a época em que viveu Jesus vai ficando cada vez mais distante de nós, o que leva algumas pessoas a questionarem se ele realmente viveu ou se não seria uma lenda, criada com alguma finalidade de controle social.

Para o pensamento espírita, Jesus não apenas viveu como pode ser considerado guia e modelo para os homens, como se lê em O Livro dos Espíritos. Após discutir filosofia com os Espíritos e escrever sobre a prática da mediunidade, divulgando sua experiência na França e no exterior, Allan Kardec dedicou-se ao estudo e comentário dos evangelhos, dando um grande destaque, inicialmente à questão moral, com a publicação de “O evangelho segundo o espiritismo” e posteriormente sobre outras questões ligadas aos evangelhos, como os milagres e as predições do Cristo, que se encontram analisados em “A Gênese”. Kardec e os Espíritos entendem que os ensinamentos cristãos são uma base importante para o desenvolvimento de uma ética para a humanidade, mesmo havendo mudanças muito intensas na sociedade, nas formas e relações de produção e na interação entre os homens.

Se considerarmos as evidências históricas e arqueológicas da vida de Jesus de Nazaré, podemos observar o seguinte:

1.       Entre as evidências documentais da existência de Jesus, temos, além dos evangelhos, as cartas de Paulo e as dezenas de escritos dos cristãos dos primeiros séculos, que temos até os dias de hoje.

2.       Historiadores judeus como Flávio Josefo e historiadores romanos como Plínio e Tácito, que não foram cristãos, escreveram sobre Jesus.

3.       Não se questiona a existência de Jesus na literatura antiga.

4.       Há diversas evidências arqueológicas como:

a.       os manuscritos do Mar Morto (descobertos em 1947, em uma localidade chamada Qmram, na Cisjordânia, que contém documentos escritos entre o século II aC. ao ano 70 dC, contendo textos do antigo e do novo testamentos, além de documentos apócrifos)
b.      os manuscritos de Nag Hammadi (descobertos no Egito em 1945, possivelmente do século II, escritos em cóptico e contendo textos gnósticos, que fazem referência a Jesus, embora sejam considerados apócrifos)
c.       Os papiros de Oxirinco (descoberto no Egito, contendo documentos que vão do século I ao VI, são uma espécie de biblioteca que tem textos clássicos, manuscritos teológicos e apócrifos, além de documentos do cristianismo primitivo).

O pensamento de Jesus é um dos pilares éticos da obra de Allan Kardec, em função de sua ética da solidariedade e da sua consideração dos seres humanos como pessoas, independente do lugar que ocupam na sociedade.

17.3.18

LAMMENAIS, A RELIGIÃO E ALLAN KARDEC



Estava preparando um estudo para o Grupo Scheilla, em Belo Horizonte, quando me deparei com o texto abaixo, ditado pelo espírito Lamennais, ao Sr. Didier (1861):


“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.


Allan Kardec faz uma avaliação muito curiosa dos ditados desse espírito, que foram agrupados sob o título "Meditações filosóficas e religiosas". Ele entende que Lamennais, longe de ser um espírito perfeito, traz muitas das questões de sua última encarnação, que são passíveis de crítica, mas entende também que seus ditados podem ser proveitosos, por isso os publica. Encontramos citações dos ditados de Lamennais em O Livro dos Espíritos. Veja a posição do codificador:

"Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações."

Independente da avaliação de Kardec sobre Lamennais, esse e outros ditados, nessa época, fizeram refletir ao Mestre Francês, que escreveria que o espiritismo entraria em seu período religioso. Kardec percebeu-se que, além das ideias sobre a vida após a morte e as evidências empíricas, era necessário o desenvolvimento de uma reflexão ética no contexto do espiritismo, o que fez com que publicasse, daí a três anos, "O evangelho segundo o espiritismo".

Para conhecermos quem foi esse espírito, retirei algumas informações convergentes  de duas ou três fontes diversas na internet que sintetizo abaixo:


Desencarnado em 1854, Félicité Robert de Lamennais passou a comunicar-se nas reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e foi muito citado por Allan Kardec ao longo de sua obra.

Lamennais foi um escritor e padre que viveu na França entre 1782 e 1854. Do ultramontanismo (católico muito conservador), ele se interessa pelas ideias liberais, como a separação entre o estado e a igreja, a liberdade de consciência, do ensino, da imprensa e de associação, voto popular e direito de insurreição do povo. 

Censurado pelo estado e pelo próprio Papa, em duas encíclicas, Lamennais passou a dedicar-se ao povo, e a escrever pelo socialismo e pela república. Ele é considerado por diversos autores um precursor do catolicismo social. Em sua época a ideia de socialismo estava associada à melhora das condições de vida da população trabalhadora.