Sábado de noite na Praça Sete,
coração do centro de Belo Horizonte. Eu já havia assistido muito cinema no Cine Teatro Brasil, que foi totalmente restaurado há alguns
anos com a parceria da Vallourec e tornou-se novamente um espaço de cultura da
capital.
Fomos assistir “No Céu da
Vibração” um musical sobre a vida de Chico Xavier. Ao chegarmos no teatro, já
fui vendo luz. A fachada exterior ganhou uma iluminação interna, que passa
pelos vitrais e ilumina toda a frente e lateral do teatro. Ele estava morto e
reviveu.
Como comprei de véspera, o que
não é hábito de mineiro que se preza, consegui lugar apenas a última fila da plateia,
embaixo do balcão, mas já encontrei uma colega de mocidade espírita que ficou
ao lado da minha esposa e pudemos trocar impressões ao longo da peça.
Como todo musical, tinha um belo
e chamativo figurino, uma caracterização dos personagens genial, especialmente
a do nosso Chico, que vai da infância à idade avançada ao longo dos nossos
olhos. Chapéu, peruca e boina, uma boina bem paulistana, ítalo-paulistana,
saída das mãos de Marlene Nobre. Os artistas cantavam, dançavam, representavam.
A iluminação completava o figurino.
O maestro, com um chapéu-boné que
evocava o personagem Chico Xavier, regia a pequena orquestra que ficou ao fundo
do palco, meio escondida pelo cenário, porque o Cine Teatro é mais cine que
teatro, mesmo depois da reforma.
O espetáculo aos olhos mineiros
tem algo que, por exemplo, não se vê na direção carioca do filme de Daniel
Filho. Trata-se da mineiridade. Aos olhos das pessoas de centros mais
tradicionais e ricos de nosso país, a mineiridade soa a brejeirice ou a ser
jeca, um tolo alegre de quem todo mundo gosta. No texto do musical, o sotaque
atrai gargalhadas gostosas, mas os personagens apresentam uma grandeza, uma
luta, uma humanidade que não os torna inferiores, mas sublimes aos nossos
olhos.
Daniel Kostás, diretor do musical, captou o espírito das
lavadeiras, das beatas, dos homens de cidade pequena do interior, até mesmo das intrigas em torno do padre, que foi o menos mineiro dos personagens. Li algures que nosso sotaque
deve muito à escravidão, que foi extensa por aqui, por causa do ouro, da
colonização, da roça. E entendi bem a negritude da alma mineira quando vi os
personagens em ação. A história do Chico, muito abrandada pela habilidade do
roteiro, é uma história de muita violência, de morte, de dor. É uma história triste da violência que herdamos da relação entre senhor e escravo. Chico é o homem
da superação. Ele tinha tudo para adoecer, para encher-se de bebida, para ser
um homem mesquinho, mas resolveu trilhar um caminho diferente. Ele é o fraco que ficou forte na dor.
O personagem do pai de Chico não
é o vendedor de bilhetes de loteria que povoa a minha infância. Daniel fez um
upgrade. Ele é um jovem, e sua violência não convence. Penso que a violência do
pai de Chico, hoje livre da carne, foi uma violência rude.
O romance com sua segunda esposa
também não retrata o que vi com olhos de menino das relações verticais de
marido e mulher, que como uma balança romana, a cada momento pendia para um
lado, mercê da força e capacidade da mulher mineira. Cidália é uma jovem
apaixonada e cheia de convicções, que escolheu o amado e teve romance. Essa
Cidália saiu do fundo da alma de Daniel e não de relatos reais, mas encheu nossos olhos, porque é
cheia de mineiridade.
Maria, conhecida nas casas
espíritas como Maria João de Deus, é um espírito superior, mulher bonita e
vistosa, mas humilde e altaneira, como uma montanha. Seu sotaque carregado
atrai a admiração da multidão de cabeças que estava na minha frente.
A Rita, a madrinha-madrasta, é
também um arquétipo, mais que uma pessoa. Eu escuto até agora o grito da
infância “Chiiiiico!”, bem à moda dos lugares cheios de espaços e com poucos
vizinhos para incomodar. A agressão foi oculta, minimizada pelo cenário, mas
povoou nossas mentes. Doses homeopáticas.
Faltou dor nos olhos de
Maria-espírito. Ela parecia superior à violência contra seu filho. Na minha mente pequena, seu
lugar é o de quem não tem como interferir, que precisa dar forças ao pequeno, mas duvido que
faltasse dor nos seus olhos, aquela dor estoica que ensinou o Chico a lidar
com as atribulações da vida.
Emmanuel é um arquétipo da
masculinidade, uma masculinidade estrangeira. É diferente do Emmanuel que fui
construindo na mente ao ler a obra e ouvir os "causos" que falam do Chico. Por sinal, em
Minas o Chico é mais um personagem de causos que um autor ou médium
excepcional. É mais um homem bom, que uma liderança incansável de uma obra
imensurável. É mais um homem simples, que uma potência política. Ele nos enganou
direitinho. Tanto falou que é um cisco, que nós perdemos a real dimensão de quem estava conosco.
André Luiz é um personagem
secundário. Entra, aparece e some. Falta a todos nós espíritas entender a
intimidade do doutor com o Chico, intimidade que sobrou na relação com o
senador romano. Ele é um sofredor que dita suas histórias após o resgate.
Os espíritos são um show à parte.
Daniel os enfiou literalmente no meio das pessoas encarnadas, com uma roupagem clara
esvoaçante, mas nada semelhante ao branco pobre das produções globais. Eles não
são seres desumanos, sem cor nem nada. Estão com suas emoções preservadas, como
o seu “dos Anjos” poeta simbolista, cuja morte não o tornou sem alma.
A cena do espírito que fala pelo
Chico é sem adjetivos. Perfeita! Não posso falar muito para não roubar a
surpresa do show.
Gostei da dor. A dor das mães sem
filhos, das esposas sem marido, dos maridos sem esposa que procuravam o Chico.
Gostei da dor dos que não encontraram na mediunidade um telefone que toca e
recebe. Gostei da dor da espera, da paciência. Gostei da dor do médium que
gostaria de poder fazer o impossível para alentar a dor dos que o procuravam.
Os artistas se superaram.
Uma palavra de desprezo aos
historiadores que enxergam Chico Xavier apenas como colaboracionista da
ditadura. Um pouco de profundidade, doutores! Um pouco de psicologia não faria
mal à sua história. Só entenderão resistência quando a matizarem, quando virem
mais que apenas a resistência das armas e das revoltas. Se os autores de seus
textos tivessem humanidade, talvez vocês entendessem mais. Isso o Daniel Kostás conseguiu.
Entendi perfeitamente o que é
unificação quando vi o musical. Música do paranaense Plínio Oliveira, que
ganhou corpo e expressão no trabalho de Kostás, completamente mineiro, em meio
ao sotaque paulistano de dona Marlene. Uma encarnação! Esta foi a impressão
que tive quando vi a música de Plínio ganhar forma diante de meus olhos.
O musical terminava. Aquela
multidão de cabeças na minha frente, assoava os narizes, enxugava lágrimas
discretamente. Por um momento, não havia homens e mulheres na minha frente. O
musical interpretava “um cisco”. Os mortos vivem para sempre em nossas
memórias.