7.5.20

COMO PREPARAR UM EXPOSITOR PARA A CASA ESPÍRITA?


Palestra de Raul Teixeira em Austin - 2010

Uma questão em aberto nas casas espíritas é a formação das pessoas que trabalham voluntariamente como expositores espíritas em reuniões públicas. Há muitos centros espíritas que organizam uma agenda de estudos diária, ou de diversas vezes ao dia, propõem títulos ou assuntos sobre os quais se deve falar e não consideram se têm ou não expositores preparados para a realização da tarefa. Os dirigentes das reuniões têm as seguintes opções: fazer eles mesmos as palestras, buscar fora do centro espírita ou identificar no centro espírita pessoas que gostam e têm facilidade para falar, para fazer as conferências.

Nesse verdadeiro “ensaio e erro”, de se convidar pessoas desconhecidas para fazer estudos, começam a acontecer os “acidentes de percurso”. Alguns dirigentes ainda consultam amigos estudiosos da doutrina espírita em busca de referências sobre os possíveis expositores, o que não deixa de ser um avanço, mas ao mesmo tempo é um risco, porque vejo muitos estudiosos que não assistem palestras nas casas espíritas e, por isso, não conhecem os “novos valores”, ou fazem juízo apenas por uma palestra ou um estudo que viram. Essa espécie de “telefone sem fio” deveria ser apenas um ponto a mais para identificar expositores talentosos ou promissores, mas se corre o risco de, diante de um dia infeliz, que qualquer um de nós tem, um potencial palestrante ser injuriado pela rede subterrânea.

Algumas instituições de Belo Horizonte-MG fizeram listas de expositores, mas não sei como foram escolhidos e como são atualizadas. Há listas com alguma sofisticação, nas quais se identifica os dias disponíveis e os assuntos de domínio do expositor. Embora úteis, sempre fui crítico dos expositores itinerantes, aqueles que falam em todos os lugares mas não são de lugar nenhum, que não têm outros vínculos com os que o assistem e, muitas vezes, nem em quem o convida. Nada contra ter convidados, eles deveriam ser a exceção e não a regra, sob o risco extremo de termos uma casa espírita formada exclusivamente por frequentadores e "captadores" de expositores, ou seja, onde ninguém está habilitado a ensinar o espiritismo.

Em nossa casa, durante algum tempo, os expositores que iam a público foram avaliados de forma anônima e individual por algumas pessoas que assistiam à reunião, eram reconhecidas por sua sensatez e nenhum extremismo, e que preenchiam um “check list” rápido de itens, podendo fazer comentários igualmente rápidos. Eu sempre queria o resultado coletivo dessas avaliações, sem identificação dos expositores, que me dava alguma informação sobre o que melhorar nesta tarefa, mas também esse instrumento é limitado, uma vez que atender os critérios de itens como pontualidade, por exemplo, não assegura, por si, um trabalho bem feito. E o número de itens enumerados, não assegura uma avaliação completa, compreensiva, que teria uma natureza qualitativa.

Vi também muitos cursos de “expositores espíritas”, que tinham por núcleo o ensino de “técnicas de oratória”, o ensino de didática, ou de estratégias de ensino-aprendizagem. Eles têm sua utilidade, desde que não queiram “formatar um expositor”. Há muitas formas válidas e diferentes entre si de expor ou ensinar o espiritismo, e muitas personalidades diferentes. Algumas pessoas sabem contar histórias, outras falam prendendo a atenção, algumas explicam com clareza, outras usam com maestria os recursos áudio visuais, algumas usam bem o humor em sua fala, outras dialogam bem com o público e há quem consiga usar técnicas de grupo em públicos de até cem pessoas, sem prejudicar o tempo. Uma coisa é certa: todos nós temos limitações. A essência desses cursos, além de dar sugestões de aperfeiçoamento, deveria explorar a identificação e desenvolvimento de competências dos participantes, para que eles se conheçam e façam melhor o que têm potencial para fazer bem. O mero estudo da técnica oratória ou didática não assegura o conteúdo. Pode-se falar tolices muito bem, e deixar as pessoas com a sensação de que passaram um momento ótimo, sem perceberem que aprenderam coisas esdrúxulas.

Outra coisa que me auxiliou nesse percurso foi a crítica de pessoas que eu respeitava, como estudiosos da doutrina e expositores experientes. Eles tiveram a caridade de me procurar em particular e expor pontos que eu poderia modificar ou melhorar. Algumas críticas se baseavam em uma forma muito pessoal de ver o trabalho de exposição, mas outras eram muito perceptivas e bem fundamentadas. Há o que conseguimos melhorar e o que não conseguimos, paciência.

Em um seminário que fiz recentemente, uma das participantes percebeu que minha esposa desempenhava esse papel, às vezes fazia sinais quase imperceptíveis de sugestões para o que eu falava ou como eu falava. Ela me procurou no intervalo e me disse, de forma amigável e bem humorada: 

- Ela é a sua “Joanna de Ângelis”, não é? Só que encarnada...

Juselma Coelho

Nas reuniões de quintas-feiras, dirigidas por Juselma Coelho em nossa casa, vi uma prática formadora muito interessante. Havia pessoas que frequentavam há muito tempo a reunião e que foram se sentindo à vontade com o grupo, a casa e a doutrina. Ela pedia que as pessoas lessem em casa um texto pequeno e o expusessem por quinze minutos, no início da reunião. Assim, em um lugar secundário, a pessoa ia desenvolvendo suas competências de expositor, protegida dos erros e do lugar central do estudo da noite.

Penso que todo espírita deveria ter uma visão do espiritismo como um todo. Conhecer as teorias que formam o espiritismo, sua fundamentação, os autores principais e até mesmo as polêmicas, sem se esquecer da história do espiritismo. Não dá para pensar em um expositor que não tenha esse tipo de conhecimento como um pré-requisito para a plena realização de sua tarefa. Como alguém vai expor algo que desconhece? Uma forma que a Federação Espírita Brasileira tem incentivado nas casas espíritas é o Estudo Sistematizado da Doutrina Espírita – ESDE e sua sequência, o Estudo Avançado da Doutrina Espírita - EADE. Penso que esse é um espaço interessante para se desenvolver competências de expositor, uma vez que é um lugar menos formal, com a presença de responsáveis pelo estudo, em que as pessoas podem preparar algo e apresentar, em um ambiente participativo. Aí cada um vai percebendo se a exposição espírita é uma atividade que as desafia, agrada e que podem fazer bem.

Vendo como a formação dos expositores espíritas é informal, e muitas vezes inexistente, passo a pensar como seria o futuro. Surgiram algumas faculdades oferecendo cursos de teologia espírita, embora todos saibamos esses cursos não se destinam a formar profissionais para um mercado, já que toda modalidade de ensino ligada ao espiritismo tem sido voluntária, pelo menos nos centros espíritas. Espero que não haja profissionalização desses trabalhadores, como no movimento espiritualista moderno dos países de língua inglesa, em que pese algumas iniciativas de seminários pagos de professores que tratam de temática espírita.  

Além das experiências citadas continua havendo um desafio para as instituições espíritas, e até mesmo diante de uma tendência de mudanças que hora acontecem, como a educação à distância e as novas tecnologias. Elas, ao mesmo tempo em que são capazes de levar ao mundo o trabalho de um estudioso local, acabam colocando milhares ou milhões de publicações, tornando-as de difícil acesso. Considerando que se constrói uma relação de confiança com um expositor com o tempo, é muito possível que um trabalho de qualidade fique na rede sendo acessado apenas por amigos e colegas, assim como livros que autores desconhecidos publicam. Outro problema também é preparar os expositores para essa nova mídia. Uma boa exposição feita presencialmente, pode ser inadequada a esse novo formato, porque a relação do “navegador” com as mídias é diferente da do assistente na sala ou auditório presencial, a começar do vínculo emocional e do comportamento esperado quando se está no meio de outras pessoas.

Como preparar os expositores então? Como desenvolver suas competências? Quais são suas competências e para quais contextos? O que deve conhecer um expositor para fazer seu trabalho de forma bem fundamentada? Estas perguntas continuam em aberto, espero que o texto, grande para um blog, seja um incentivo para pensarmos de forma mais substancial sobre a questão. Fale um pouco de sua experiência e contribua com o debate.

3.5.20

REVISÃO DO CRISTIANISMO: A HERANÇA MÁGICA

Capa antiga do livro "Revisão do Cristianismo"


Herculano Pires não escolheu arbitrariamente o título de seu livro. Na história, o revisionismo é um “reexame crítico de fatos históricos presumidos e da historiografia existente.” Ele pode surgir do uso de novas fontes (por exemplo, o conhecimento do cristianismo primitivo após a descoberta de novos documentos em Qmram e Nag Hammadi), novas perspectivas ou visões (por exemplo, a história da escravidão da ótica dos escravos), pela mudança do zeitgeist (em um tempo diferente o historiador pode valorizar o que era considerado pouco importante por gerações passadas, por exemplo, a questão de gênero na história) ou mesmo pelo surgimento de novos conhecimentos científicos (o surgimento da técnica de datação a partir do carbono 14 alterou, por exemplo, muito do que se afirmava sobre história natural e sobre objetos atribuídos a personalidades históricas). Ele se propõe a fazer revisões do conteúdo e das formas que o cristianismo assumiu com o passar da história. 

No capítulo 3 do livro Revisão do Cristianismo, ele busca rever o que entende ser uma herança dos tempos da magia no cristianismo. Por magia não se entendam as bruxas da idade média, ou os textos de Papus no século 19, mas uma prática de sociedades ditas primitivas. Ele mesmo a descreve como o uso de palavras, objetos e ritos com base na crença de que atuem de forma misteriosa na matéria. A magia pressupõe um poder oculto às pessoas, mas conhecido e dominado por iniciados. Herculano explica assim o emprego de palavras, ritos e objetos mágicos: “A magia das palavra socorria a escassez do saber.” (p. 14)

A representação do mago em cartas de Tarô. Há semelhanças entre o mago e o padre na missa.

Na revisão do cristianismo uma das propostas de Herculano é retirar todos os elementos mágicos de suas palavras e práticas. Ele entende que a proposta de Jesus de Nazaré para a religião é completamente espiritual, nada exterior e nada mágica.

Onde se veria magia mesclada à prática cristã? O autor dá vários exemplos: 

- Na analogia entre o sangue do cristo e o sangue redentor dos sacrifícios de animais realizados pelo judaísmo de sua época;

- no uso de objetos considerados sagrados, como cruzes, medalhas, escapulários, bentinhos, rosários, fitas, velas, véus, paramentos, cálices e outros; (p. 14)

- no batismo, como rito de passagem, e no emprego de água e sal (mesmo simbólico) na criança;

- Em outros ritos de passagem que foram introduzidos sob a forma de cerimônias, como o matrimônio religioso (que não existia nem na cultura judaica), a crisma e a extrema-unção com seus óleos;

- na hóstia consagrada, que se supõe transubstanciada (ou mesmo consubstanciada, se entendido como união mágica entre a farinha de trigo e o corpo de Cristo) ou transformada no corpo de Jesus de Nazaré, que o crente ingere;

- e quando um padre diz a um crente: “Seus pecados estão perdoados”.

Diversas outros exemplos, da ordem do ritual, das promessas de curas e dos objetos sagrados merecem ser revistos, para que o cristianismo seja visto como algo espiritual, próprio ao sujeito, e não algo mágico, concepção que teria sido construída aos poucos, após o cristianismo primitivo, com a finalidade de fazer com que uma população de mentalidade mágica e mítica aceitasse o cristianismo como identidade.

Parece algo básico, mas ainda nos dias de hoje, no meio espírita, algumas pessoas vindas de outras tradições religiosas ou espiritualistas, que não refletiram a diferença entre magia e espiritualidade, desejam realizar sincretismos, que as façam relembrar ou reviver experiências vividas algures, como uma casa espírita que fazia um momento eucarístico com pão e vinho, aos moldes da prática católica, como relatou meu pai em viagens feitas ao interior mineiro para a divulgação do espiritismo.

28.4.20

CONVERSANDO SOBRE HERMÍNIO


Um bate papo sobre o escritor Hermínio Correia de Miranda em comemoração ao centenário de seu nascimento.
Publicado por Grupo Espírita Renovação e Paz - GEPAZ em Sábado, 25 de abril de 2020


Após a conversa, fiquei pensando se os livros do Hermínio estão ainda em catálogo e se os interessados teriam acesso a eles. Entre livros escritos, traduzidos e coautorias, encontrei cinquenta títulos. Desses, encontrei nos catálogos de editoras os seguintes:

Livros do Hermínio em catálogo. 
 FEB 

- Candeias da noite escura 
- Diálogo com as sombras 
- Estudos e crônicas de Hermínio Miranda 

Correio Fraterno 

- Os procuradores de Deus 
- A feira dos casamentos (Rochester) Tradução do Hermínio Miranda 

Lachâtre 

- Tal pessoa, tal médium (em parceria)
- Os obsessores, gente como a gente (em parceria)
- A tarefa dos enxovais (em parceria)
- Os senhores do mundo 
- Memória cósmica 
- Nuestros hijos son espiritus 
- Os cátaros e a heresia católica 
- Autismo, uma leitura espiritual 
- Arquivos psíquicos do Egito 
- Alquimia da mente 
- Guerrilheiros da intolerância 
- A noviça e o faraó 
- Diversidade dos carismas 
- O pequeno laboratório de Deus 
- Condomínio espiritual 
- As sete vidas de Fénelon 
- Nossos filhos são espíritos 
- As duas faces da vida 
- A memória e o tempo 
- O evangelho gnóstico de Tomé 

O Clarim – Editora 

- Cristianismo a mensagem esquecida - 

Kindle – Amazon (e-book)

- Cristianismo, a mensagem esquecida
- Os procuradores de Deus 
- Diálogo com as sombras 
- Estudos e crônicas 
- Candeias da noite escura 
- Nossos filhos são espíritos - A feira dos casamentos

27.4.20

JAPHET, ROUSTAING E KARDEC



A atriz Julia Konrad caracterizada como Madame Japhet


Recebi um comentário imensamente interessante, que possibilita muitas análises, feito pelo leitor Paulo Sérgio Fonseca Antunes. Ele se refere à publicação “Curiosidades: Allan Kardec e Madame Japhet”. https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html

É o que está abaixo:

Fala-se que o nome Allan Kardec foi revelado ao Professor Rivail pelo espírito Zéfiro (Zephir), em reunião mediúnica na residência das irmãs Baudin, utilizando-se para isto a cesta com um lápis (roque). Na ocasião, o Professor tomou conhecimento de que Allan Kardec foi o nome dele em uma milenar reencarnação entre os druidas. Sabe-se que a primeira edição de O livro dos Espíritos continha pouco mais de 400 perguntas, e que na segunda edição passou a ter mais de 1000 perguntas, e que, a família Baudin saiu de Paris ainda no segundo semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a outra médium (sonâmbula profissional) sobrecarregada. Médiuns profissionais existem até nos dias de hoje. Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não havia acontecido, quem fazia ideia de que isto seria utilizar erradamente este dom? Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet colaborou gratuitamente sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que desejasse ter seu nome divulgado no livro para fazer um marketing pessoal. Fala-se que após o desencarne do Mestre de Lyon (1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio ganancioso com Pierre Gaetan Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, criada por Allan Kardec em janeiro de 1858. Sendo assim, não é de se estranhar que a médium Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava profissionalmente a mediunidade há mais de dez anos, tivesse atitudes mais nobres. Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação, pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de 30 anos apenas entre duas reencarnações.

Vou discorrer sobre as muitas questões em forma de itens:

1. “Fala-se...” Essa foi a primeira observação que fiz. Para se fazer história, ou mesmo apenas memória, é preciso conhecer a fonte, de preferência a fonte primária. Isso porque cada autor conta a história de um jeito, e tem uma lógica e um conjunto de fontes como base para construção do seu discurso. Tudo o que o Paulo falou, é mais ou menos verdade, mas foi tirado de autores muito diferentes, então ficou uma espécie de “samba do crioulo doido” (perdoem a expressão, não sei se ainda é politicamente correta, mas não tem nenhuma intenção racista ao ser usada).

2. Eu citei como fonte no artigo que originou as dúvidas, um jornal inglês e um texto atribuído a Alexander Aksakof. Todos sabemos que Aksakof não é nenhum especialista em Allan Kardec, e que os lamentos da Madame Japhet criaram uma espécie de “resistência” ou “preconceito” dele com relação ao fundador do espiritismo. Coisas de ser humano!

3. O nome de Allan Kardec foi revelado pelo espírito Zéfiro na casa das Baudin, usando um lápis (roque).

Eu procurei em Obras Póstumas e não encontrei essas informações, embora lá Kardec fale das Baudin e de Zéfiro.

Quem atribui o nome de Roc (e não roque) ao “lápis de pedra com que os espíritos rabiscavam em uma ardósia comum” (p. 98-99) foi Canuto Abreu, no livro “O livro dos espíritos e sua tradição histórica e literária”. Como o título já o disse, o livro não é exclusivamente histórico e Canuto escreveu do que ouviu falar, sem os rigores da metodologia da história oral, ou seja, ele aceita que algumas coisas são imaginárias, lendas, que passaram a ser contadas e recontadas no meio espírita francês, que ele conheceu no início do século 20. Não dá para citar como se fosse uma fonte histórica, portanto. Nesse livro também não encontrei menção à origem do nome de Kardec, apenas uma menção à sua reencarnação no meio dos druidas (p. 99).
Consultei, então um belo trabalho de Eugênio Lara (https://questaoespirita.blogspot.com/2013/08/sobre-o-pseudonimo-de-denizard-rivail.html ) que mostra diversas fontes, mas admitindo a tradição oral e a falta de documentação clara do próprio Kardec. Quem sabe a publicação das cartas de Kardec esclareça essa questão.


Primeira edição de "O livro dos espíritos"

4. A primeira edição de “O Livro dos Espíritos” tinha 400 perguntas e a segunda tinha “mais de mil perguntas”.

Tenho duas traduções da primeira edição de O Livro dos Espíritos. A de Canuto Abreu e a de Evandro Noleto Bezerra. Ambas têm 501 perguntas, fora os elementos pré-textuais e o epílogo.

A edição atualmente publicada de “O livro dos espíritos” tem 1019 perguntas, os elementos pré-textuais e uma conclusão (Não mais epílogo). Consultei duas traduções atuais, a de Evandro Noleto Bezerra (Kindle) e a comemorativa de Guillon Ribeiro.

Sobre as mudanças realizadas por Allan Kardec em “O Livro dos espíritos”, enquanto estava encarnado se pode ler o “O livro dos espíritos: uma análise comparativa entre a 1ª., a 2ª e até a 16ª edições”, de Luis Jorge Lira Neto, no livro “O espiritismo da França ao Brasil: estudos escolhidos.”, publicado pela USE-SP e pela LIHPE.

5. "a família Baudin saiu de Paris ainda no segundo semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a outra médium (sonâmbula profissional) sobrecarregada”

Essa é a menos provável de todas as afirmações até agora. Kardec fala em Obras Póstumas que as duas Baudin se casaram no fim do ano após a publicação de “O Livro dos Espíritos” e que “a família se dispersou” (p. 271). 

Quem auxiliou bastante na revisão de “O Livro dos Espíritos” foi a Mme. Japhet, como publiquei no texto do EC em questão https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html segundo o próprio Allan Kardec. Japhet era sonâmbula profissional, mas trabalhou voluntariamente no livro, e nunca lhe faltaram médiuns. Na página 270 de “Obras póstumas”, 17ª edição, AK fala no concurso de “mais de dez médiuns” no trabalho. Na fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, Kardec cita Ermance Dufaux como médium principal (Obras Póstumas, página 295) e uma frequência no local de “15 a 20 pessoas”, ocasionalmente de até 30 pessoas.

6. "Médiuns profissionais existem até nos dias de hoje. Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não havia acontecido, quem fazia ideia de que isto seria utilizar erradamente este dom?"

 Com base nas fontes citadas, cabem dois comentários. Primeiro, já citado, que Kardec agradeceu a colaboração voluntária de Mme. Japhet. Outro estudo, que foge ao escopo desse comentário é distinguir e comparar o sonambulismo, em prática em Paris antes do espiritismo, fruto do movimento que o magnetismo animal de Mesmer provocou, da prática mediúnica, talvez existente em Paris sob a influência dos trabalhos de Emmanuel Swedenborg.

7.       Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet colaborou gratuitamente sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que desejasse ter seu nome divulgado no livro para fazer um marketing pessoal.

Concordo. Acho bem possível.

Rue de Valois, local da primeira sede da SPEE

8.       Fala-se que após o desencarne do Mestre de Lyon (1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio ganancioso com Pierre Gaetan Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, criada por Allan Kardec em janeiro de 1858.

Dois autores recentes têm promovido uma releitura da história e da imagem que tínhamos de Pierre-Gaetan Leymarie: Simoni Privato e Adriano Calsone. Eles publicaram respectivamente “O legado de Allan Kardec” e “Em nome de Kardec”.

A ideia de um conluio entre Roustaing e Leymarie não tem base historiográfica. Após a saída da prisão Leymarie se aproximou de diversas instituições não-espíritas: a sociedade teosófica (Privato, p. 223, Calsone p. 55), da pneumatologia universal (Privato, p. 224) e do roustainguismo através de Jean Guérin, divulgador de Roustaing, que ofereceu dinheiro para que a “Sociedade Científica de Estudos Psicológicos”, dirigida por Leymarie instituísse um concurso literário espiritualista (Privato, p. 239). Havia, da parte de Guérin, o interesse de divulgar o roustainguismo, e Leymarie administrava uma empresa em situação econômica frágil.

Não vejo Leymarie, nem como o herói, construído a partir de sua possivelmente injusta prisão em nome do espiritismo, nem como um vilão, que sempre desejou enriquecer a partir do espiritismo, mas como homem frágil, com bons e maus momentos, que tornou-se administrador da Sociedade Anônima, continuadora da obra de Kardec, em 1871. (Privato, cap. 10 e 11). Percebo Leymarie como um sucessor da obra de Kardec sem a formação do mestre, sem conhecimento científico e filosófico. Incapaz de perceber a superioridade da ontologia, da ética e da epistemologia kardequianas, ele foi se encantando com outras doutrinas que surgiam posteriormente, tinham apelo espiritualista e se consideravam superiores. Ele foi permitindo uma espécie de “canto de sereia”, em que era cooptado com o oferecimento de honrarias, cargos e posições institucionais. E foi acreditando que as novas contribuições que chegavam deveriam ser incluídas na Livraria e na Revista Espírita, e que dariam um novo fôlego aos negócios e um avanço à doutrina espírita, o que, na verdade, era retrocesso, porque ela perderia seu caráter racional e empírico, tornando-se um movimento cada vez mais místico e ocultista. A reação às suas decisões infelizes se deu através de espíritas conhecedores de Kardec e capazes de valorizar o caráter filosófico e científico do espiritismo, dentre os quais se destacam Léon Denis e Gabriel Dellane.

Quanto à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, o que foi relatado também não é justo. Ela foi transformada em Sociedade Anônima da Caixa Geral do Espiritismo, dando prosseguimento ao Projeto de Allan Kardec de 1868, na casa de Amelie, sua viúva. Esta sociedade foi constituída para dar continuidade à Revista Espírita e “publicar os livros de Allan Kardec e outras obras sobre espiritismo” (Privato, p. 132-133), com administradores remunerados (Privato, p. 138). Cabe informar que Leymarie não era membro das diretorias, nem do conselho supervisor, não tendo sido liderança na mudança da feição da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. De instituição associativa, ela foi transformada em instituição associativa e comercial para que os livros e revistas espíritas pudessem ser editados e comercializados e render recursos para a mesma, dispensando-se a intermediação das editoras até então parceiras.

9.       Sendo assim, não é de se estranhar que a médium Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava profissionalmente a mediunidade há mais de dez anos, tivesse atitudes mais nobres.

Aqui há um grande equívoco. Japhet não tinha qualquer ligação com J.B.Roustaing. Era uma sonâmbula levada ao transe pelo magnetizador Roustan. Os nomes se parecem, mas são pessoas totalmente distintas, que viviam em lugares distintos.

Arnaldo Rocha


10 "Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação, pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de 30 anos apenas entre duas reencarnações."


Quem afirma que Chico foi a reencarnação de Japhet foi Arnaldo Rocha, viúvo de Meimei (Irma de Castro Rocha) e amigo próximo de Chico Xavier por décadas. A avaliação de Japhet pelo autor foi apressada, em função da confusão Roustan-Roustaing e da questão financeira indevidamente analisada na história. Embora a afirmação de vidas passadas demande sempre evidências sólidas para que não seja mera especulação, fica aberta a possibilidade das duas pessoas serem o mesmo espírito.

Concluindo:

Achei muito corajoso e interessante o Paulo Sérgio compartilhar conosco o que ouviu falar e o que concluiu a partir disso. Todavia, na minha opinião, a questão da história do espiritismo precisa ser discutida a partir da análise de fontes e de autores, o risco de se ficar construindo hipóteses em cima de “ouvir falar” é criar versões sem sustentação e totalmente afastadas do que já se conhece.

Não tenho a pretensão de ter uma “versão verdadeira” da história, mas apenas uma análise fundamentada, que para ser alterada (e somos todos falíveis) precisa ser contraposta com novas fontes primárias, novos autores, ou pelo menos um conhecimento produzido com os cuidados que a história oral propõe.

Não tive fôlego para citar os trabalhos que o Carlos Seth e outros estudiosos estão publicando atualmente, com base em análise de periódicos franceses e livros da época, coisa que ficou mais fácil com a digitalização e a internet.

22.4.20

UM HERÓI NORTE-AMERICANO QUE NÃO PEGOU EM ARMAS.




1864. A guerra de secessão norte-americana está em curso. Uma criança negra, filha de dois escravos, acaba de nascer. Ela é sequestrada com a mãe e resgatada por um mateiro, ficando órfã e sendo inicialmente criada pelos donos de sua mãe. A criança é franzina e frágil.

Em um ano, Abraham Lincoln assina a abolição da escravatura, mas o pequeno órfão está no estado escravocrata do Missouri. Não há escola fundamental para afrodescendentes, o trabalho para os recém libertos é manual e mal remunerado, a segregação racial é considerada legal.

Como esta criança poderia se tornar uma pessoa influente na sociedade americana, sem optar pela via da política, nem pela via empresarial? Qual foi a trajetória dessa criança? A ecologia poderia ser antevista no século 19, em um meio agrícola de monocultura de algodão?

Esta é a história real de um herói negro que Hermínio Miranda resolveu contar, como se o leitor estivesse assentado em sua frente em um ambiente com lareira acesa. Eu o li em apenas um dia, e você?

O pequeno laboratório de Deus

Hermínio Miranda

Lachâtre

320 páginas


ALERTA DE SPOILER: Só assista o vídeo abaixo depois de ler o livro.

18.4.20

O ESPIRITISMO É A VERDADE ABSOLUTA?




Jáder Sampaio

Ainda jovem eu assistia a uma palestra de um espírita famoso na capital mineira, cujo nome omitirei, e me recordo de uma afirmação forte que ele fez, e que arrancou interjeições e outras reações emocionais da plateia:

- Eu não vou dizer que o espiritismo é uma verdade! (Silêncio retórico) O espiritismo é A Verdade!

Aquilo ficou na minha mente. Enquanto as pessoas acolhiam com entusiasmo a frase de efeito, eu fiquei em silêncio com o meu mineirês interno, perguntando:

- Uai! será?

Hoje penso que o fundador do espiritismo não faria esse tipo de observação. Quando Kardec começou a estudar os fenômenos espirituais e se propôs a desenvolver um corpo de doutrina baseado nos diálogos com os espíritos, ele definiu o espiritismo da seguinte forma:

“O Espiritismo é uma Ciência que trata da natureza, da origem e do destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corpóreo.”[1]  

Isso significa que ele delimitou um objeto de estudo do espiritismo. Por mais ampla que possa ser a abrangência deste objeto, Kardec não “invade” as outras áreas de competência das demais ciências.

Nós, espíritas, continuamos valorizando o saber médico e o psicológico para o tratamento do câncer, por exemplo, embora saibamos a partir da própria medicina que a espiritualidade pode auxiliar a terapêutica médico-psicológica. O espiritismo não invade, ou pelo menos não deveria invadir o domínio da física, embora físicos já tenham estudado temas mediúnicos e formulado hipóteses para a explicação de fenômenos espirituais de efeitos físicos. Chamá-lo de "A Verdade" significa excluir da condição de conhecimento tudo o que não é espiritismo. Em termos lógicos:

O espiritismo é a verdade. (premissa maior)
Medicina (ou astronomia, ou química...) não é o espiritismo. (premissa menor)
Logo: medicina (ou astronomia, ou química...) não é a verdade. (conclusão)

De volta ao argumento inicial, o espiritismo não pode ser verdade absoluta, porque há uma realidade a ser estudada muito mais ampla que a “realidade espiritual”. Ainda que exista uma conexão entre a “realidade espiritual” e a natureza ou “realidade material”, escapa ao espiritismo o conhecimento da natureza em-si. Todos sabemos que ao estudar mais profundamente a matéria, sem hipóteses explicativas transcendentais, o conhecimento aumentou, o que significa dizer que se conhece muito mais sobre a natureza hoje, que há cem ou duzentos anos. A natureza em-si é do domínio de outras áreas do conhecimento, algumas delas muito complexas, ao ponto de demandarem anos e anos de estudo para se poder falar com alguma autoridade sobre algum de seus pontos.

Outro ponto, é que, como ciência, o espiritismo seria um conhecimento progressivo[2]. Como parte das ciências se baseia em teorias construídas a partir de fatos e de fenômenos[3], o surgimento de novos fatos ou fenômenos, ou o conhecimento mais profundo de fatos, fenômenos e teorias já conhecidos, pode propiciar a revisão ou o avanço das teorias. Então não há como se falar em verdades absolutas, porque o que é considerado verdadeiro no tempo X, pode ser revisto no tempo X + Y, com o aumento do conhecimento sobre os fenômenos compreendidos no objeto de estudos da respectiva área de conhecimento.

O que não modificaria no espiritismo? Para Allan Kardec, qualquer afirmação que compõe o corpo de doutrina poderia ser modificada[4]. O que tem acontecido, com o passar dos anos, é que os princípios fundamentais do espiritismo continuam válidos, embora na própria obra de Kardec tenhamos percebido que houve evolução na compreensão de algumas teorias secundárias, como já foi apresentado por Pimentel[5], em seu trabalho sobre a metodologia do espiritismo.

Não vejo demérito à doutrina espírita em concebê-la como um conhecimento sobre os Espíritos e o mundo espiritual, baseado em observação e nas informações obtidas a partir da mediunidade, com o emprego da razão e dos métodos experimentais.

Quando se insiste que a doutrina é “a verdade”, nós a transformamos em uma espécie de teologia revelada por um ser absoluto (Deus), ou por seres muito superiores a nós, que não nos cabe questionar, e perdemos o caráter de conhecimento construído a partir da razão e da observação e experimentação de fenômenos, que todos sabemos ser falível. Do ponto de vista gnosiológico, reduzimos o espiritismo em um tipo de conhecimento como o catolicismo, o judaísmo, o islamismo ou o budismo. Com isso, perdemos o seu caráter científico e filosófico, tão caro a Allan Kardec.

Finalizando, o espiritismo não é a verdade, mas a busca criteriosa da verdade em assuntos relacionados aos Espíritos e à vida espiritual.



[1] Kardec, Allan. O que é o espiritismo. 5 ed francesa e posteriores. Preâmbulo.
[2] Kardec, Allan. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. 4ª ou 5ª ed. francesas, cap. 1, §55.
[3] Fatos seriam eventos da natureza percebidas pelos sentidos humanos, principalmente pela observação, ampliados ou não por instrumentos. Fenômenos, a partir de Kant, são intuições das pessoas “captadas segundo a intuição e das categorias inatas do intelecto”.
[4] Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como todas as ciências de observação. Kardec, Allan. Caráter da revelação espírita. In: A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. (4ª ou 5ª edições francesas), cap. 1, item 55.
[5] Pimentel, Marcelo Gulão. O método de Allan Kardec para investigação dos fenômenos mediúnicos (1854-1869). Dissertação de mestrado. UFJF. Juiz de Fora, Programa de Pós-Graduação em Saúde Brasileira, 2014.

11.4.20

O ESPIRITISMO NA ZONA RURAL FLUMINENSE

Foto: Fachada da Sociedade Espírita Fraternidade, em Niterói-RJ

Escrevo essas recordações para tornar público um ponto no tempo do movimento espírita. Alguns dos participantes ainda estão encarnados, outros já nos antecederam na grande viagem. A memória é uma fonte “traidora” e vai se esfumando com o tempo. Algumas coisas ficam bem marcadas, enquanto outras vão se apagando lentamente, até que quem recorda não tenha mais certeza do que realmente aconteceu.

No final dos anos 1970, início dos anos 1980, havia uma proximidade muito grande entre a Associação Espírita Célia Xavier-MG e a recém-nascida Sociedade Espírita Fraternidade, de Niterói-RJ. Raul Teixeira vinha pelo menos semestralmente a Belo Horizonte, fazer palestras, seminários e cursos com os espíritas do Célia Xavier, que geralmente eram abertos ao público. Ele também fazia viagens, por diversas cidades do interior mineiro, que acompanhávamos, de carro. Era um bom grupo e ficou um bom relacionamento dessas viagens.

Em um dos primeiros anos de funcionamento da Sociedade Espírita Fraternidade, fez-se uma coisa excepcional. Os jovens da mocidade da SEF vieram a Belo Horizonte acompanhar as nossas festividades do Natal. Fazíamos uma festa para a distribuição de cestas de alimentos, com um teatro e música para os acompanhantes que vinham buscar o farnel.

Já não me recordo bem se estávamos no Lar Espírita ou se ainda o fazíamos no antigo auditório da sede da AECX. O importante é que se estabeleceram laços entre os membros das mocidades. Eu já conhecia o Luiz Carlos Teixeira da Veiga, de outras palestras em que ele veio a BH com o Alexandre Rocha, mas me recordo que nesse evento ele namorava a Gilda. Luiz Carlos se formou posteriormente em Serviço Social, informação dada pelo Alexandre Rocha.

Os anos se passaram e fui ao Rio de Janeiro com meu amigo Ivan, que frequentava a mocidade AECX, se a memória não me trai. Eu geralmente ficava na casa de minha tia, em Manguinhos, mas fomos convidados a visitar o Luiz Carlos e a Gilda, que haviam se casado.

Foi um final de semana excepcional. Eles nos acolheram, levaram à praia no domingo de manhã, fomos à mocidade da Sociedade Espírita Fraternidade e para variar, falei bastante, porque quando mais jovem eu era tão falante quanto a Emília, personagem de Monteiro Lobato. Na casa deles, reencontrei com o amigo Alexandre Rocha, que iniciava a criação da editora Arte e Cultura, que hoje é a Lachâtre. Luiz Carlos me mostrou alguns livros espíritas e espiritualistas que pretendiam traduzir e publicar, clássicos em sua maioria. Ele me mostrou um dos livros de De Rochas, possivelmente “As Vidas Sucessivas”, e me mostrou um livro de Carl Reichenbach, sobre as forças ódicas, que creio que não foi traduzido e publicado até hoje.

Convivíamos e conversávamos muito. Fazíamos planos, projetos para o futuro. Quem diria que uma visita de final de semana pudesse influenciar o futuro? O terceiro membro do conselho editorial da Arte e Cultura era o Hermínio Miranda, que só viria a conhecer rapidamente alguns anos depois.

A história que gostaria de contar foi de um convite para assistir a uma palestra do Luiz Carlos na região dos lagos, em zona rural. Estávamos no Rio de Janeiro, gostávamos de espiritismo, então aceitamos com muito gosto o convite.

Se me recordo bem, foi um jovem pertencente à comunidade quem o convidou. Entramos na Brasília (marca de automóvel) que eles tinham e ganhamos estrada. Acho que Gilda dirigiu na ida, fomos pelo asfalto, depois entramos na estrada de terra, e chegamos a uma fazenda.

Foi uma experiência muito diferente. Os participantes da reunião chegavam de todos os lados, pelas trilhas abertas no meio dos pastos e mata. Um senhor, dirigente da reunião, nos acolheu com gentileza e alacridade. Ele se admirou do caderno universitário que eu carregava comigo, para anotar uma síntese das palestras. A frase foi algo assim:

- Puxa! Ele trouxe até um caderno para anotar!

Eu me senti um pouco deslocado, fora dos padrões locais, mas nunca me importei muito com isso. 

Começou a reunião, e com ela uma prece, e depois da prece uma leitura de uma lista de pessoas para serem atendidas pelos espíritos. Era uma espécie de irradiação, que pelo que entendi, fazia parte do trabalho público do grupo. Havia algumas dezenas de participantes. 

A leitura foi se estendendo, seu conteúdo faz parte da memória que se “esfumaçou”, mas o nome completo e o motivo da pessoa estar na lista era falado em voz alta. Passaram-se cinco, dez, vinte, trinta minutos, e a leitura continuava. Era uma prova de resistência espiritual, talvez um dos exercícios de disciplina espiritual de Inácio de Loyola. Todos acompanhando a leitura no mesmo tom. Acho que após quase uma hora de reunião, passaram a palavra ao expositor “que veio de longe”. O público (eu pelo menos) já estava bastante cansado com a leitura. O que Luiz Carlos iria fazer?

Ele foi sensato e fez bonito. Fez uma saudação, uma introdução rápida e contou a história “Há um século”, de Irmão X, psicografia de Chico Xavier. Luiz Carlos falava bem, envolvia seus ouvintes e dava um toque de emoção discreto ao que falava. Encerrou sua fala com vinte ou trinta minutos, e devolveu o público refeito da maratona de irradiações para o dirigente da reunião.

Despedimo-nos, acho que foi servido um lanche, em clima de fraternidade. Luiz Carlos tomou o volante e foi dirigindo, até que passou uma marcha e o câmbio travou. Estávamos no meio da estrada 
de terra, e não sabíamos o que fazer. 

Em uns quinze minutos, alguém havia avisado aos moradores da fazenda e surgiu uma Kombi. A van veio com uma corda mediana, que uniu a Brasília à Kombi. Os passageiros passamos para a Kombi e um motorista foi na Brasília, dirigindo. Enquanto estava plano, o arranjo funcionava. Quando entrávamos em uma subida mais inclinada, a corda se rompia. Então surgiu o plano B. Quando começava a subida, nós, homens, descíamos da Kombi e empurrávamos a Brasília para que a corda continuasse íntegra.

E foi assim até chegarmos a uma cidade próxima, se não me engano, Araruama. A Brasília ficou em uma oficina mecânica e terminamos de chegar em Niterói.

Rimos bastante, e a amizade foi se consolidando. Fiquei admirado com a disposição dos espíritas da fazenda para prestar socorro da forma possível. Tive uma experiência que nos mostra como o isolamento dos grupos espíritas faz com que sua prática fique muito singular, diferente mesmo do que é realizado nos outros centros espíritas. Daí a importância do intercâmbio, que muitas sociedades espíritas evitam, trabalhando isoladas e até se acreditando superiores, sem qualquer parâmetro de comparação.

Alguns anos depois o Luiz Carlos desencarnou. Nunca trocamos cartas, como o fazia com outros espíritas de então. Não fiquei sabendo. Em uma das vindas de Raul Teixeira, pedi notícias a um dos jovens que trabalhava na venda de livros sobre ele e sobre a Gilda. 

- Ele desencarnou! Me informou, lacônico e sem sensibilidade.

Creio que foi um tumor. E ele devorou a saúde de um jovem trabalhador espírita, de muito potencial. Saí de perto para ficar sozinho e recordar dele. Uma lágrima escorreu. Tomara que esteja bem no mundo espiritual, pelo bem que fez a muita gente durante sua curta estada na Terra.

3.4.20

REVISTA GRATUITA COMEMORA CENTENÁRIO DE HERMÍNIO MIRANDA




O Instituto Lachâtre publicou um exemplar gratuito da revista Leitura Espírita, comemorando o centenário de nascimento do escritor Hermínio C. Miranda.

O sumário está muito interessante e traz novas informações sobre o escritor.

Apresentação
Um homem bom – Marta Chiarelli de Miranda
De Bernardo a Hermínio – Mauro Camargo
O desafio das religiões – Hermínio Miranda –
Confia em Jesus! – Lygia Barbiére
Lembranças e previsões do futuro da humanidade – Carlos Villarraga
O cristianismo espírita de Hermínio Miranda – Jáder Sampaio
Uma crônica para um escriba – Eduardo Lima
O embrulhinho morno – Ana Maria Miranda

Marta e Ana Maria são as filhas do escritor e fazem dois textos muito pessoais e humanos.

Para obter a revista, basta clicar no link abaixo, fornecer nome, e-mail e telefone e baixar o arquivo em notebook ou smartphone.

https://leherminioapp.gr8.com/

1.4.20

HERCULANO PIRES, ERNEST RENAN E CHARLES GUIGNEBERT



Uma das contribuições que Herculano Pires deu ao pensamento espírita foi o diálogo com os autores acadêmicos de sua época. Estou estudando o livro “Revisão do Cristianismo”. Estilo jornalístico, ele escreve um texto contínuo e apenas indica ao leitor os autores que comenta no corpo do texto, mas à medida em que se vai lendo, percebe-se com quem ele “conversa”.


Logo no início do texto há uma citação de Charles Guignebert. Quem é ele? Por que foi retirado do texto dele a epígrafe do livro?

Guignebert é um autor francês que nasceu dez anos após a publicação de “O livro dos espíritos”, mas que efetivamente começou sua contribuição à universidade então chamada de Sorbonne, em 1919, quando assumiu a cadeira de história do cristianismo. Em sua “aula inaugural” ele diz que vai fazer da história do cristianismo, “uma história como as outras”.

Por uma história como as outras, se entende que os professores de história do cristianismo deviam pertencer à igreja ou às confissões de fé cristãs da época, e de alguma forma mesclavam a história com a apologia ao cristianismo.

Nessa mescla se encontra o caráter mitológico imiscuído nos estudos históricos. Possivelmente os dogmas se articulavam com a razão. Guignebert se propõe a fazer um trabalho de caráter laico. 

Antes de Guignebert, temos Ernest Renan, que escandalizou sua época denominando Jesus como “homem incomparável”. A frase aparentemente comum para nós, espíritas, que o concebemos como espírito superior, causou espécie entre seus contemporâneos que enxergavam Jesus como Deus.

Renan e Guignebert estão no texto de Herculano, que vai em busca da distinção entre Jesus de Nazaré, o homem, e Jesus Cristo, o mito construído ao longo da história. Iniciativa talvez inédita nos meios espíritas, apesar do texto já existente de Allan Kardec, referindo-se (e criticando também) Ernest Renan na Revista Espírita.

Em que ano foi publicada a primeira edição de Revisão do Cristianismo? Como o livro foi acolhido pelo meio espírita da época? Isso fica a encargo dos historiadores e dos leitores de Herculano Pires, e, quem sabe, se torna objeto de outra publicação.

POST SCRIPTUM

Recebi, fruto da gentileza do Herculano Pires Filho, a informação abaixo:

"Mestre Jáder, eis as informações solicitadas: 

Revisão do Cristianismo 1a edição 1977 - Editora Paideia
        
Barrabás 1ª edição 1954 (recebeu o PRÊMIO DO DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE CULTURA  DE S.P.)
  
Lázaro 1ª edição 1971 Edicel

Madalena 1ªa edição 1979 Edicel"

Agradeço a contribuição ao Espiritismo Comentado!