28.3.18

CONHECENDO RAUL TEIXEIRA







Há alguns anos tenho me interessado por biografias de pessoas que deram sua contribuição ao espiritismo, como Allan Kardec, Amélie Grabrielle Boudet, Gabriel Delanne, Léon Denis, Camille Flammarion, Chico Xavier, Yvonne Pereira, Deolindo Amorim, Herculano Pires, Carlos Imbassahy, entre muitos outros.

Mais recentemente, escrevendo sobre nossas experiências na mediunidade, dei-me conta que tivemos contato direto com um médium e expositor muito atuante, sobre o qual não havia lido muita coisa escrita, mas com quem havia convivido ao longo de muitos anos.

Descobri, surpreso, que tinha um livro voltado ao relato e análise das experiências de Raul Teixeira na minha própria biblioteca, comprado para leitura posterior, mas esquecido na estante. Ele se intitula “Raul Teixeira, um homem no mundo: 40 anos de oratória espírita”, publicado pela editora Fráter em 2008, três anos antes do acidente vascular cerebral que o acometeu em um voo para os Estados Unidos e que deixou sequelas.

Conheci Raul no final dos anos 1970, quando ele expunha frequentemente na Associação Espírita Célia Xavier, e em casas espíritas das quais nos aproximamos em função dos trabalhos dele no interior de Minas Gerais.

O autor do livro, Cezar Braga Said, residente na baixada fluminense, mestre em educação, narra muitos episódios que conhecíamos do relato do próprio Raul, mas também alguns que não imaginávamos. Raul, como Yvonne, como Chico, como Elisabeth D’Esperance, Divaldo Franco e outros médiuns, apresentava percepções de espíritos desde a infância. Criado em contato com as instituições cristãs, conheceu uma mocidade espírita na juventude, mercê do convite de um amigo e de sua família.

Estudou o espiritismo com dedicação e mostrou de imediato suas habilidades com a exposição, o que fez com que recebesse cada vez mais convites de casas espíritas no Rio de Janeiro e fora dele.

Desde o final dos anos 1960, conheceu e ligou-se com médiuns bastante conhecidos, como Chico Xavier, Divaldo Franco e Yvonne Pereira. Said focalizou seus aprendizados com estes trabalhadores devotados da mediunidade e do espiritismo.

A mediunidade foi desenvolvida posteriormente, inicialmente por um espírito chamado Luiz, que reencarnou e depois com a orientação de Camilo, um espírito que teve experiências no passado em meio aos franciscanos, mas outras encarnações.

O livro de Said é facílimo de se ler. São episódios pontuais da vida de Raul, comentados com moderação. O livro se preocupa mais com as experiências formadoras e marcantes da vida do médium, que com a apresentação de datas e títulos. É uma biografia psicológica, que deixa o leitor na situação de quem está conversando com o médium ao lado de uma mesa de café com quitandas.

Li em dois dias cheios de outras atividades, com uma fluidez, em função da organização e linguagem de Said. O texto, talvez pela convivência com o médium, prende àqueles que conviveram com eles, porque é mais uma revivescência que um aprendizado.

Recomendo a leitura aos que não o conheceram pessoalmente, assim como a leitura das dezenas de livros que ele psicografou, voltados a questões da vivência do espiritismo e do espírita no mundo, como Cezar bem escolheu para o título.

Título: Raul Teixeira, um homem no mundo: 40 anos de oratória espírita

Autor: Cezar Braga Said

Editora: Fráter

191 páginas – ano 2008

23.3.18

ABSTENÇÃO DE CARNE NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO


Família


Chegamos ao interior de Minas Gerais em plena sexta-feira da paixão. Nos anos 1950, mais de 90% da população brasileira era católica e os ritos e recomendações eclesiásticos eram seguidos. Neste feriado eram fechados quase todos os estabelecimentos das cidades, e era amplamente difundida a abstenção do uso de carnes vermelhas e de aves.

O movimento da cidade se parecia com o de um sábado normal, com o comércio aberto e os bancos e escolas fechados. Os ovos de chocolate tiveram um ano tímido e amargo. Os problemas com a economia e a esperança de conseguir uns trocados foram maiores que o apelo da fé e o ambiente de silêncio respeitoso pela lembrança da crucificação do Rabi tornado deus pelos interesses dos imperadores romanos do século IV.

Meu sogro sempre nos conta uma história do passado, com um tom um pouco maroto, no qual ele e os amigos, na juventude, combinaram com o dono de um pequeno restaurante do interior preparar carne de boi. O dono se recusou, mas aceitou recebê-los no botequim após a meia noite. Na hora combinada, eles foram chegando, aos poucos, abrindo a porta encostada e se assentando para consumir a iguaria. Só depois da meia noite se ouvia o chiado da carne sendo passada e os amigos felizes, prestes a consumir uma ceia inesperada. Roma locuta, causa finita.

A abstenção da carne

A abstenção do consumo de carnes na sexta-feira da paixão é uma orientação da igreja católica. Procurei as origens desta prática, mas não encontrei nada conclusivo. O consumo de peixes (e em uma fonte encontrei também outras carnes de animais como rãs, ostras, etc.) é justificado por alguns autores em função da etimologia latina da palavra, que vem de carnis, e que seria empregada apenas para animais de sangue vermelho. Portanto, nesta acepção, a abstenção de carne não atingiria peixes, anfíbios e répteis. O blog Aleteia[1] dá outra explicação. Diz tratar-se de proibição das carnes de animais criados sobre a terra (incluindo aves...) e destaca que as carnes eram usadas como objeto de celebração (o bezerro cevado, da parábola do filho pródigo, por exemplo), não sendo correto celebrar-se a sofrida morte de Jesus.

A explicação mais comum é que se trataria de uma espécie de privação voluntária, com a intenção de recordar o sofrimento de Jesus, da via dolorosa ao falecimento na cruz. Na idade média a carne vermelha seria um alimento nobre e caro, e sua abstenção tem o sentido de renúncia. Hoje, a industrialização tornou as carnes bem mais acessíveis, especialmente em nosso país, onde ela é muito produzida. Há carnes vermelhas de preços muito variados, ao mesmo tempo em que peixes e derivados podem ser bem sofisticados e caros. Imagine um cristão que se abstém de carne e consome caviar, em seu lugar, ou um corte importado de bacalhau. A prática exterior, portanto, perdeu seu sentido original.

O consumo de bacalhau no Brasil parece vir da culinária portuguesa, já que em outros países não há qualquer recomendação do uso desta forma de preparo de peixe e a abstenção da sexta-feira da paixão. Ouvi rumores que havia interesses econômicos da Igreja por detrás da recomendação do consumo de peixes, mas não encontrei nenhum registro disto.

Nem no templo, nem no monte

Quanto mais estudamos, mais se vê que a abstenção do uso de carnes foi perdendo seu sentido original e seu contexto. É o risco das práticas exteriores, que se tornam uma espécie de costume vazio do seu significado original.

Para nós, espíritas, as práticas exteriores devem ceder lugar à interioridade. Para Jesus, também. Quando questionado pela mulher samaritana sobre as diferenças de culto exterior entre judeus e samaritanos[2] o mestre ensinou:

“Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:21-24)

Concluindo

A abstenção da carne, ato exterior, é pouco importante para os cristãos-espíritas. A data, e o feriado religioso, cada vez mais são usados para o descanso do trabalho, o lazer e o encontro com os familiares, assim como outras datas religiosas, cada vez mais vazias do significado religioso.

Uma vez que entendemos Jesus como modelo e mestre da humanidade, qual seria o nosso papel, como comunidade espírita, nesta e em outras datas? Em uma sociedade que vive cada vez mais em torno do dinheiro, do trabalho e do consumo, talvez haja uma oportunidade para recordar o Jesus que mostrou de forma marcante que a vida não se encerra na cruz do Gólgota e um incentivo para reunir-se a família.




[2] Os judeus, na época de Jesus, adoravam a Iavé no Templo de Salomão, em Jerusalém. Os samaritanos construíram um templo no monte Garizim (ou Gerizim) após o exílio, que teria sido destruído em 126 a.C., mas cujo local continuava sendo usado para sacrifícios e cultos. 


17.3.18

LAMMENAIS, A RELIGIÃO E ALLAN KARDEC



Estava preparando um estudo para o Grupo Scheilla, em Belo Horizonte, quando me deparei com o texto abaixo, ditado pelo espírito Lamennais, ao Sr. Didier (1861):


“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.


Allan Kardec faz uma avaliação muito curiosa dos ditados desse espírito, que foram agrupados sob o título "Meditações filosóficas e religiosas". Ele entende que Lamennais, longe de ser um espírito perfeito, traz muitas das questões de sua última encarnação, que são passíveis de crítica, mas entende também que seus ditados podem ser proveitosos, por isso os publica. Encontramos citações dos ditados de Lamennais em O Livro dos Espíritos. Veja a posição do codificador:

"Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações."

Independente da avaliação de Kardec sobre Lamennais, esse e outros ditados, nessa época, fizeram refletir ao Mestre Francês, que escreveria que o espiritismo entraria em seu período religioso. Kardec percebeu-se que, além das ideias sobre a vida após a morte e as evidências empíricas, era necessário o desenvolvimento de uma reflexão ética no contexto do espiritismo, o que fez com que publicasse, daí a três anos, "O evangelho segundo o espiritismo".

Para conhecermos quem foi esse espírito, retirei algumas informações convergentes  de duas ou três fontes diversas na internet que sintetizo abaixo:


Desencarnado em 1854, Félicité Robert de Lamennais passou a comunicar-se nas reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e foi muito citado por Allan Kardec ao longo de sua obra.

Lamennais foi um escritor e padre que viveu na França entre 1782 e 1854. Do ultramontanismo (católico muito conservador), ele se interessa pelas ideias liberais, como a separação entre o estado e a igreja, a liberdade de consciência, do ensino, da imprensa e de associação, voto popular e direito de insurreição do povo. 

Censurado pelo estado e pelo próprio Papa, em duas encíclicas, Lamennais passou a dedicar-se ao povo, e a escrever pelo socialismo e pela república. Ele é considerado por diversos autores um precursor do catolicismo social. Em sua época a ideia de socialismo estava associada à melhora das condições de vida da população trabalhadora.

5.3.18

O QUE ACONTECEU NO SEMINÁRIO "A GÊNESE: O RESGATE HISTÓRICO"?


Quase cinco horas da manhã, saí correndo de casa para não perder o voo das seis e vinte rumo a São Paulo. Tem coisas na vida que se não participarmos pessoalmente, nos arrependemos, e pensei com meus botões que esse seminário era uma delas.

Os quase quinze anos de ENLIHPE tiveram por fruto um grande número de amizades com pessoas dedicadas e estudiosas do espiritismo da região da capital paulistana e de outros lugares no Brasil. Eduardo Monteiro tinha razão, é preciso que nos vejamos pessoalmente, para criar vínculos que a internet não cria, e às vezes até atrapalha.

Fiquei acompanhando os bastidores da organização, mercê dos amigos trabalhadores que se empenharam em traduzir o livro de Simoni Privato, trazê-la ao Brasil para apresentar o resultado de suas pesquisas e dialogar sobre seus achados com os brasileiros. Inicialmente o evento seria no auditório da USE. Como ele lotou, foi para outro espaço, que também ficou pequeno. Escolheu-se, por fim, o Teatro Gamaro, que comportou confortavelmente as 450 pessoas que foram. Sabe-se lá quantas acompanharam a transmissão simultânea da Rede Amigo Espírita...

O interesse dos participantes era óbvio. A incansável Julia Nezu montou uma mesa com representantes de federativas (São Paulo, Minas Gerais, Amazonas e Amapá) e de associações espíritas presentes (Associação Jurídico Espírita do Rio de Janeiro e da Bahia; Instituto Espírita de Estudos Filosóficos e Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas). Outras organizações espíritas estavam presentes, como a CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana), Jornal Correio Fraterno, Instituto Espírita de Educação e TV Mundo Maior. Meu amigo Jáder Antunes foi colhido de surpresa, porque pensava que iria assistir confortavelmente no público, mas cumpriu o pedido da organização. A simpaticíssima presidente da Federação Espírita Amazonense, nos saudou um um abraço do tamanho de seu estado. A presença de Heloísa Pires atraiu aplausos dos presentes, uma vez que sua presença simbolizava todo o trabalho de Herculano Pires, da Paidéia (a editora das obras dele, e de outras), dela própria e de sua família, talvez menos conhecida fora de São Paulo, mas envolvida no trabalho de memória e divulgação do pensamento de Herculano. 

Uma carta do presidente da Confederação Espírita Argentina, Gustavo Martinez, foi lida, apresentando Simoni e desejando sucesso ao evento. Ao se preocupar com qual edição de A Gênese publicar, ele acabou sendo o desencadeador e o apoiador de todo o trabalho que a pesquisadora nos apresentou.  Nossos irmãos latino-americanos, mesmo sem tantos adeptos como o Brasil, são estudiosos e interessados no pensamento kardequiano, o que dá gosto de ver. Recordei-me da visão de futuro de Herculano, de Deolindo e de outros intelectuais espíritas do meio do século XX, que mantinham o intercâmbio e divulgavam o trabalho dos autores de língua hispânica no Brasil. 

Fiquei pensando em alguns professores do meio acadêmico, que têm uma visão do espiritismo como algo minúsculo, místico, assistencialista apenas baseados na imagem criada pela grande imprensa e no diz-que-diz que ouviram de alguém. Não têm noção de quanto trabalho esse pessoal idealista faz, de quanta produção intelectual é realizada, do impacto social das sociedades espíritas. Fiquei pensando também nas pessoas que se restringem à sua casa espírita, que não acompanham nada do que acontece fora de seu minúsculo espaço. Confesso que mesmo estando estudando o espiritismo há tantas décadas, ao ver tudo isso, me senti pequenino. Há muito o que estudar e aprender com Allan Kardec, para não dizer dos demais autores espíritas.

Tenho certeza que o público tinha muito mais do que a mesa pôde apresentar. Escritores, jornalistas, autores, membros de federativas locais. Tanta gente que abracei e com quem conversei rapidamente nos intervalos... Tantas notícias. Tantas realizações desse pessoal desde a última vez em que estive em São Paulo. 

Simoni preparou um novo seminário para seu público, mais rico do que o que apresentou na Confederação Espírita Argentina em 2017. Notei que ela conversou muito com os organizadores e analisou as perguntas que chegaram via internet. Preparou com cuidado o que ia falar e fez um trabalho bem interessante, mesmo para quem já havia lido o livro e assistido o seminário argentino. 

Chamou a atenção de todos a forma serena, mas clara e argumentada, como ela apresentou seu trabalho. Muitos olharam para si mesmos e questionaram-se se não teriam sido mais duros nas palavras caso estivessem em seu lugar. Simoni, contudo, não queria que a retórica fosse mais sonora que os fatos que ela levantou. O trabalho dela fala através dos documentos e argumentos. A síntese final deixa clara sua tese e como é sustentada.

Não vou escrever muito sobre a apresentação da diplomata, porque desejo que os leitores do Espiritismo Comentado assistam o vídeo acima e concluam por si. 

Dois depoimentos enriqueceram o evento. A falta de um parágrafo sobre o corpo de Jesus em "A Gênese" publicada em esperanto, e uma verdadeira aula sobre direito autoral dada por Manoel Felipe Menezes, do ministério público do Amapá, e sobre a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário.

Após toda essa nova informação que nos chega, considero que devemos manter o diálogo racional e aberto ao contradito, essência do espiritismo kardequiano, mas temos por dever a análise comparativa entre as quatro primeiras e a quinta edição de A Gênese, o que a própria mesa sugere ao apagar das luzes. 

23.2.18

CARLOS IMBASSAHY E A JOVEM MÉDIUM AURORA



Hospedaria de Imigrantes de Ilha das Flores, local em que o pai de Carlos Imbassahy foi trabalhar quando mudou-se para o Rio de Janeiro.


Após uma semana cheia de imprevistos, resolvi aproveitar a tarde de sexta-feira para buscar uma passagem da vida de Carlos Imbassahy que teima em permanecer na minha memória, mas que não consigo encontrar nos muitos livros que tenho dele e sobre ele. Como acho que ele está fazendo falta, emocionei-me com uma das histórias guardadas e contadas por seu filho, Carlos de Brito Imbassahy no seu “Memórias Pitorescas de Meu Pai”.

Vou fazer perder o brilho porque terei que adaptar o texto e mudar um pouco a linguagem para meus leitores, espero que me perdoem.

Carlos Imbassahy estava no “Centro Espírita Trabalhadores da Verdade”, no qual dirigia uma reunião mediúnica par a par com Amaral Ornelas. Chegou-lhe uma jovem, humilde, próximo da hora de começar, procurando pelo “Seu Baçaí”. Sem saber explicar quem a enviara e dizendo-se “média”, como bem o diz o filho do orador espírita, foi convidada a sentar-se à mesa dos trabalhos.

Feita a prece e após algum tempo, a jovem Aurora entrou em transe e deu alguns recados de seu espírito orientador. Passado mais algum tempo Imbassahy vê a médium chorar e pensa tratar de um espírito sofredor. Iniciou o diálogo, até ouvir:

“- Carleto! Tu não me reconheceste?”

Carleto era o apelido dado pelo maestro Antônio Carlos Gomes, a quem Imbassahy admirava, que se tornou nome carinhoso nas bocas dos familiares.

“- Sou tua avó, meu neto, Não te lembras mais de quando tinhas quatro anos!? 

Eu acariciava tua cabeça...” E falou, falou as histórias que só ela e ele conheciam, do tempo em que era muito pequenino e fora deixado pelo pai na Bahia, até que ele pudesse se estabelecer profissionalmente. Carlos Imbassahy era órfão de mãe, mas não era órfão de família, e teve duas mães na primeira infância, a tia e a avó, que agora voltava da morte para lhe encher o coração de memórias.

“- Como eu chorei quando teu pai voltou para te buscar...”

Com cerca de cinco anos, o pequeno Carleto foi levado pelo Dr. Imbassahy para o Rio de Janeiro, sob protestos da avó, que ora voltava a falar com o neto, fugida do mundo das sombras, através da jovem Aurora, recém aparecida no centro espírita.

“- Como sofri, Carleto! Não me conformava com a separação: já me acostumara a afagar-te, com carinho, a ver-te empurrar as cadeiras pela sala, brincando de trem, a ouvir teu riso contagiante, a receber teu amor e carinho, a retribuir teus abraços de criança ingênua... Eras meu novo filho.”

A avó falou ainda da sua desencarnação, que por pouco não foi precedida da visita do neto Carleto, que tentou de toda forma encontra-la com vida. A avó, através da médium, contou ainda da intuição que dera à prima Quena, que recebeu Carlos Imbassahy e o consolou, porque ele não se perdoava por haver demorado, embora não fosse sua culpa. Mais e mais informações foram recebidas por um estudioso atônito, que jamais esperara ter uma prova tão emocionante da existência da faculdade mediúnica ao alcance dos seus olhos e ouvidos.

Aurora saiu do transe sem recordar o que houvera acontecido.  Diz o autor que ela voltara a chamar seu pai de “Seu Baçaí”. 

Eu me recordei da história logo nas primeiras linhas. Havia lido na juventude, antes dos dezoito anos, mercê da biblioteca da Associação Espírita Célia Xavier, e depois desse livro, nunca mais Carlos Imbasshy saiu da minha memória.

Lamento muito não ter conhecido pessoalmente seu filho,  mas agradeço muito a ele todo o trabalho que teve para preservar a memória de seu pai. Quando ele estiver de volta ao mundo espiritual, poderá dizer ao Carleto, que pelo menos um mineirinho  de Belo Horizonte leu a história de sua vida e se emocionou com ela.

18.2.18

TRAJETÓRIA DA "SOCIEDADE ANÔNIMA" SEGUNDO SIMONI PRIVATO - SÉC. XIX




Estou concluindo a leitura do livro "El Legado de Kardec" da brasileira Simoni Privato Goidanich, que será objeto de um seminário em São Paulo organizado pela USE-SP e parceiros, com o lançamento do livro em português.

Confesso que me interessei mais com as descrições dos acontecimentos pós desencarnação de Allan Kardec ocorridos no movimento espírita francês, que pela discussão sobre quem fez as alterações da quinta edição de "A Gênese".

As leituras que Simoni fez da Revue Spirite pós 1869 (desencarnação de Kardec) e da revista "Le Spiritisme", nos deu mais informações sobre as tensões que existiram entre a Sociedade Anônima, presidida por Pierre Gaëtan Leymarie, que se entendia "progressista" e tinha os direitos autorais de publicação da Revue Spirite, e o grupo que se formou em torno dos Delanne e que veio a criar a revista Le Spiritisme e a União Espírita Francesa, em 1882, que pode ser chamado de "Kardecista" ou "conservador".

Por "progressista" se entende que Leymarie usava a posição de Kardec que disse claramente que "o espiritismo acompanha o progresso das ciências" para justificar a aproximação com a teosofia, que ele considerava ser uma ciência, mas que se tratava de uma síntese pessoal de doutrinas orientais. Ele também permitiu uma associação da Sociedade Anônima com J. Guérin, que podemos considerar como divulgador das obras de Roustaing, e que se serviu de uma espécie de parceria com a sociedade para seu objetivo.

Para entender a Sociedade Anônima, temos que considerar as seguintes datas:

3 jul 1869 - É formada a "Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo" (p. 130)

Simoni percebeu bem, que o nome Sociedade Anônima está associado à criação de uma instituição comercial, que possibilitava obtenção de lucro e remuneração de seus diretores, e isso foi uma espécie de "ponto fraco" que influenciou futuras decisões, pelo menos polêmicas.

1 jun 1878 - A sede da Sociedade Anônima se muda para uma área nobre de Paris (Palais Royal), junto com a livraria, oficina e fundando uma sala de leitura, biblioteca e salão de recepção. Com a mudança, a livraria perdeu o nome espírita e se tornou "Livraria de Ciências Psicológicas" (p. 198)

1878 - Criação da Sociedade Científica de Estudos Psicológicos, vinculada à Sociedade Anônima.(Isso merece ser analisado em comparação com o que aconteceu no futuro, quando Jean Meyer funda, em paralelo, a "Casa dos Espíritas" e o "Instituto Metapsíquico Internacional") (p. 198)

5 de março de 1878 - Leymarie envia uma carta ao capitão Mendy na qual considera Roustaing, Madame Collignon e todos os que admiram os mesmos como frutos secos. (Evidência de que Leymarie não era roustanista) (p. 232)

1879 - Desencarnação de Roustaing, que deixou um legado de 40 mil francos para Jean Guérin traduzir e imprimir sua obra (p. 233)

Abril de 1879 - Guérin se aproximou da Sociedade Anônima e tornou-se um de seus acionistas

1879 - Guérin doou, com o apoio da Revue Spirite, um exemplar da obra de Roustaing para cada grupo espírita francês ou do exterior, interessado nela. (p. 234)

1882 - Guérin, que tinha 21 ações da Sociedade Anônima, propõe transferi-la para a propriedade  de um imóvel em Bordeaux de 2500 metros quadrados, mas pede em troca 216 ações. A proposta é aprovada em assembléia em 24 de julho de 1882. O capital social aumenta e é dividido em 300 partes (não sei dizer quantas ações) (p. 235)

Esta aproximação da Sociedade Anônima com Jean Guérin não foi bem vista por um grande número de espíritas franceses. Um movimento de oposição à Sociedade Anônima começou a se esboçar.

Amélie Boudet foi procurada pelos Delanne e consultada para presidir a nova organização, mas recusou (p. 256) 

4 set. 1882 - Fez-se uma reunião na sede da Sociedade Anônima para fundar a União Espírita Francesa. (p. 256)

18 nov, 1882 - Uma assembleia com 150 pessoas aprovou por unanimidade o projeto de estatutos da USF, apresentada por uma comissão, mas os presentes (e Delanne entre eles) julgaram que a assembleia não era representativa dos espíritas franceses. (p. 257)

(??) Vautier proíbe que os formadores da nova sociedade se reúnam na Sociedade Anônima. Ele e Leymarie se opõem à fundação da USF (p. 258)

24 dez 1882 - Uma assembleia de 400 pessoas no grande salão de La Redoute, sala Jean-Jacques Rousseau, fundaram a União Espírita Francesa (USF, sigla em francês) e a revista "O espiritismo". Denis participou desta assembleia e discursou em favor da criação da USF. (p. 259 e seguintes)

A direção da USF era voluntária (não remunerada) ou ad honorem (p. 262) Os membros pagavam seis francos anuais e quatro francos anuais para assinar O Espiritismo, que era um valor menor que a Revue Spirite. A prestação de contas era anual e publicada na revista. (p. 265)

1888 - A Sociedade Anônima muda seu nome para "Sociedade da Livraria Espírita fundada por Allan Kardec" (p. 413)

1893 - A corte de Bordeaux condena a Socidade Anônima a restituir aos filhos de Jean Guérin a totalidade dos 220 mil francos que ele havia deixado para essa organização . (p. 412)

Os conflitos a entre a Sociedade Anônima e a União Espírita Francesa tiveram impacto aqui no Brasil. A tentativa de se fundar órgãos centrais para o espiritismo no Brasil são de época semelhante (segundo Canuto Abreu) e são citadas pelos tradutores de A Gênese da Sociedade Acadêmica "Deus, Cristo e Caridade", em 1882, que como já mostramos antes, apoiou a ideia de uma União Espírita Universal.

Espero ter fôlego para fazer um paralelo entre o movimento francês desta época e o movimento brasileiro.

Postscriptum: Há alguns dias, um grupo de espíritas publicou um manifesto intitulando-se progressistas. Escrevo este para deixar claro que ao usar o termo neste texto, para descrever a posição de Leymarie, não fiz qualquer referência ou associação ao manifesto ou abaixo-assinado. 

16.2.18

CORREIO FRATERNO DIVULGA 14o. ENLIHPE E MUITO MAIS


O jornal Correio Fraterno de janeiro e fevereiro de 2018 publicou uma matéria sobre o 14o. Encontro da Liga de Pesquisadores do Espiritismo que será realizado em Belo Horizonte-MG, dias 25 e 26 de agosto.

Neste mesmo número, há uma matéria interessante sobre a polêmica de A Gênese (devemos usar as traduções da quarta ou quinta edições?), uma matéria sobre os 50 anos do Grupo da Fraternidade João Ramalho (São Bernardo do Campo - SP), uma entrevista com Alexandre Caldini, autor dos livros "A morte na visão do espiritismo" e "A vida na visão do espiritismo", e muitas outras matérias.

Os destaques dessa edição e de edições anteriores podem ser lidos em http://www.correiofraterno.com.br/, assim como as assinaturas.


10.2.18

O INSIGHT DE ALLAN KARDEC




Estou estudando o capítulo XI do livro A Gênese, que trata da gênese espiritual, ou seja, da concepção, origem e destino dos Espíritos. Esse livro foi publicado um ano antes da desencarnação de Allan Kardec, e esse capítulo em especial é uma espécie de retorno a temas tratados no livro primeiro de O Livro dos Espíritos.

Um ponto aparentemente óbvio, que fica bem claro nesse capítulo, é o que poderíamos chamar de insight kardequiano.  Emprego o termo em seu sentido psicológico, como define Houaiss, "compreensão ou solução de um problema pela súbita captação mental dos elementos e relações adequados".

O capítulo começa respondendo à questão o que é princípio espiritual? Fica muito claro que Kardec associa o princípio espiritual à inteligência e, com isso, o distingue do princípio material. 

Por que Allan Kardec não fez como os cientistas de sua época, e associou a inteligência e as funções psicológicas ao cérebro? A resposta é simples:  por causa da comunicação com os Espíritos.

No capítulo IV de O livro dos Médiuns (dos sistemas, que pode ser entendido também como as teorias), o mestre francês discute as hipóteses de charlatanismo, da loucura, do músculo estalante (para explicar os raps) e das causas físicas (magnetismo, eletricidade ou fluido) e do reflexo (seria uma espécie de animismo ou telepatia). para explicar os fenômenos que ele estudou. A inteligência das respostas obtidas dos espíritos, contudo, é uma característica que não pode ser explicada pelas teorias de base natural e o conteúdo das comunicações afasta ou reduz o poder explicativo da teoria do reflexo.

Ainda nesse capítulo, Allan Kardec discute as teorias que têm por causa dos fenômenos seres inteligentes, e discute os sistemas (teorias) da alma coletiva, sonambúlico, diabólico ou demonista, otimista (ação exclusiva de bons Espíritos), uniespírita (produzidos por Cristo), multiespírita e o sistema da alma material.

Se há um conjunto de fenômenos produzidos por inteligências incorpóreas, a inteligência em si não é, nem pode ser, uma propriedade do organismo, embora esse possa prejudicar sua manifestação. Há, portanto, um princípio espiritual ou inteligente, que não se reduz ao corpo material.

Esse é um dos pressupostos centrais da Doutrina Espírita. A partir dele Kardec fez diversas deduções filosóficas, e agregou resultados de observações e de diálogos com os Espíritos, constituindo o espiritismo como doutrina, ou como gosto de dizer, desenvolveu o pensamento espírita. 

Um princípio espiritual (que tem por essência a inteligência e a personalidade) independente do princípio material traz consigo uma imensidade de novas possibilidades e novas formas de ver o mundo e a existência.

30.1.18

MAIS UMA POSIÇÃO SOBRE AS EDIÇÕES DE "A GÊNESE"




A Federação Espírita Brasileira acaba de publicar um documento explicando sua posição com relação às alterações do livro A Gênese, em sua edição de 1872.

Essencialmente, a entidade confederativa defende que as modificações devem ter sido feitas por Allan Kardec, ao contrário do que entende a autora Simoni Privato, cujo trabalho notifiquei há algumas semanas.

A explicação da FEB é minuciosa, e recomendo aos leitores do Espiritismo Comentado que a leiam e concluam por si sobre a questão.

24.1.18

AFINAL DE CONTAS O QUE É A LIHPE E O QUE É O 14o. ENLIHPE?


Entrevista com a Coordenação Geral do 14o. ENLIHPE



Pergunta: A LIHPE é um grupo de pesquisadores espíritas ou inclui pessoas não espíritas com pesquisas sobre espiritismo?

Coordenação Geral: A Liga de Pesquisadores do Espiritismo – LIHPE, foi criada por Eduardo Carvalho Monteiro (SP) para aproximar pessoas interessadas na preservação da memória do espiritismo, em forma de rede. Depois o grupo ampliou a esfera de interesses para as mais diferentes áreas do conhecimento com algum  interesse comum com o espiritismo. 

Como foi criada por membros do movimento espírita, atraiu muitos espíritas inicialmente. Depois vieram pessoas do meio acadêmico interessadas no espiritismo, mas não necessariamente espíritas. Posteriormente publicamos trabalhos exclusivamente acadêmicos, tratando do espiritismo como movimento, da história de pessoas ligadas ao meio espírita, e de reflexões sobre o serviço social espírita. 

Acho que a resposta mais honesta é que estamos na fronteira entre o meio espírita e a universidade. Isso às vezes não é favorável, porque alguém da Universidade fica receoso de publicar seu trabalho em nossas formas de publicação e não ter reconhecimento acadêmico, ou um estudioso espírita fica receoso de submeter seu trabalho a um evento nosso e ele não atender aos critérios de pesquisa formal. Isso, contudo, não nos fez ainda migrar para um ou outro espaço institucional e permanecer apenas lá.


Pergunta: O que é o Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo – ENLIHPE?

Coordenação Geral: Como o contato dos membros da LIHPE era apenas pela internet, o próprio Eduardo sugeriu que organizássemos um encontro presencial de tempos em tempos. Ele próprio já havia organizado os dois primeiros, em Brasília e no interior paulista. O terceiro foi em Belo Horizonte, e depois dele Eduardo desencarnou. Com um espaço de alguns anos, voltamos a realizar o evento na instituição que ele fundou em São Paulo, o Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo). Os dois últimos encontros foram na União das Sociedades Espíritas de São Paulo – USE.

Como os encontros são abertos, temos três grupos de participantes: os membros da LIHPE, espíritas interessados no tipo de debate que a LIHPE faz e pessoas do meio acadêmico interessadas no espiritismo. Já tivemos um doutorando italiano participando dos eventos e diversos graduandos e mestrandos querendo fazer doutorado que foram buscar ideias no ENLIHPE.


Pergunta: De que maneira os trabalhos da LIHPE têm contribuído com o avanço da dimensão científica do espiritismo?

Coordenação Geral: As publicações da LIHPE têm contribuído de diversas formas para a construção do conhecimento espírita. Allan Kardec não construiu uma doutrina dogmática e estática, mas propôs uma base teórica para o estudo dos espíritos desencarnados e suas relações com os homens. 

Cabe destacar, antes da resposta, que não há uma posição coletiva da LIHPE ante questões em geral. Eles são de responsabilidade dos seus autores, então, falando honestamente, o que vamos fazer é destacar algumas das contribuições dadas pelos autores que publicaram nos espaços da LIHPE.

Alguns trabalhos fizeram um levantamento da produção científica sobre o espiritismo no Brasil e constataram quase duas centenas de teses e dissertações defendidas há mais de dez anos. Já está na hora de refazer esta pesquisa para fins de comparação.

Temos analisado alguns conceitos e sistemas de pensamento que têm sido divulgado no meio espírita com feição científica ou filosófica, mas que são incoerentes com o pensamento espírita e até com as áreas de conhecimento a que se referem. Elas não visam a destruição de sistemas de pensamento, como, por exemplo, a física “espiritualista” de Amit  Goswani, mas indicar seus pontos frágeis na própria física e suas contradições com o espiritismo. Esta análise está no quarto livro da série, intitulado: O espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais.

Temos discutido a construção do pensamento espírita, sua metodologia e técnicas de pesquisa, assim como sua interlocução com os avanços científicos e a contemporaneidade. Isso está ligado à comunicação e debate de conhecimento produzido no meio acadêmico sobre o espiritismo.

Temos interagido muito, e conhecido pesquisadores de todo o Brasil, espíritas ou não, que produzem sobre o espiritismo. A LIHPE divulgou, por exemplo, a chamada de trabalhos para o tema do Encontro Nacional de História das Religiões, facilitando a captação de trabalhos ligados ao espiritismo. O trabalho em rede facilita também que alunos de graduação e mestrado conheçam pesquisadores e que pesquisadores conheçam novas pesquisas que saíram em outras áreas do conhecimento que não a sua.

Como há estudiosos da administração na LIHPE, fizemos discussões sobre a administração das instituições espíritas, como organizações do “terceiro setor” e da aplicabilidade ou não de técnicas de gestão próprias de empresas ou do estado.

Com o formato de submissão aberta, criamos um espaço de análise e sugestões para os estudiosos de boa vontade, sem formação acadêmica em pesquisa, que fazem revisões de literatura, discutem questões próprias do espiritismo e fazem pesquisas de observação ou experimental. Nem sempre eles ficam felizes com as análises críticas, mas é assim que o conhecimento se sustenta e avança.

O diálogo direto entre espíritas, acadêmicos e espíritas e pesquisadores não espíritas tem sido, talvez, a marca dos encontros da LIHPE. Temas debatidos nos eventos têm sido objeto de publicações na imprensa espírita e têm gerado novas questões de pesquisa nas universidades.


Pergunta: Quem não é pesquisador pode participar dos encontros da LIHPE?

Coordenação Geral: Pode participar livremente, perguntar e interagir. Pode também  apresentar trabalhos, se estes forem aprovados pela comissão avaliadora. O que se pede é que os trabalhos tenham a forma estabelecida para artigos, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, e que trate um problema de pesquisa com referencial teórico, problema de pesquisa, método, resultado e conclusões. Os trabalhos podem ser de revisão de literatura, baseado em pesquisa experimental, ensaios teóricos ou ter outra forma/conteúdo aceito pelas ciências ou filosofia.

Os trabalhos que tratam de questões que exigem conhecimento específico, como a física ou a biologia, por exemplo, serão encaminhados preferencialmente para pareceristas com formação nessa área. Eles analisarão o conteúdo apresentado.

Pergunta: A apresentação de trabalho no ENLIHPE tem valor acadêmico?

Coordenação Geral: Pode ter, depende do tema apresentado e dos critérios dos departamentos ou faculdades às quais os participantes estão ligados. 

No caso da mera participação, recebemos e atendemos o pedido de alunos de graduação para que pudessem contar como carga horária em seus respectivos cursos.

No caso da apresentação de trabalhos, já constatamos que diversos autores inseriram seus capítulos de livro impressos no Currículos Lattes, que é um dos instrumentos de registro de produção acadêmica. Houve autores que organizaram eventos com os livros que são participantes em suas universidades.

Há que se considerar, contudo, que o reconhecimento da produção é geralmente feito pelos pares nas universidades, e que eles podem não aceitar, como já vimos não aceitarem determinadas revistas técnicas ou subvalorizarem o trabalho. As coletâneas, contudo, seguem as exigências geralmente feitas pela academia: blind review, avaliação por pares, revisão das críticas pelo autor, decisão final de publicação pelos organizadores que têm formação acadêmica.

Já aconteceu de trabalhos apresentados no ENLIHPE serem publicados pelo autor, depois em revistas técnicas de sua área de conhecimento. Nesse caso, eles pedem para não publicar junto com os demais, para que o trabalho que será submetido continue inédito.

Pergunta: Os trabalhos apresentados nos encontros estão disponíveis para o público em geral?

Coordenação Geral: Sim, de duas formas. 

As apresentações orais são gravadas e estão disponíveis através da internet no portal Espiritualidade e Sociedade, nosso parceiro. A página com os encontros gravados é: http://www.espiritualidades.com.br/liga.htm

Os trabalhos escritos são publicados na série Pesquisas Brasileiras sobre o Espiritismo. A publicação e comercialização têm sido feitas pelo Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo – Eduardo Carvalho Monteiro. Os livros relacionados à LIHPE estão na página http://www.ccdpe.org.br/categoria-produto/lihpe/


Pergunta: Temas filosóficos pertinentes ao Espiritismo, como as leis morais e a metafísica, também podem ser objeto de pesquisas científicas?

Coordenação Geral: A palavra moral foi usada no século XIX e por Allan Kardec com dois sentidos: o sentido de costumes e no sentido psicológico. Quando se fala em leis morais, o mestre francês está procurando regularidades que explicam o ser humano, individualmente e em sociedade. A psicologia e a sociologia moderna fazem isso também, embora saibam que nem sempre se encontram regularidades com facilidade, então praticamente abandonaram o termo lei, ainda usado na física, e preferem teoria, no sentido de um conjunto de explicações que possibilitam o entendimento ou a compreensão de determinado fenômeno psicológico ou social.

Com o passar do tempo viu-se que não se estuda psicologia ou sociologia exatamente com os mesmos métodos que se estudam as ciências naturais: a física, a química e a biologia. Então novos métodos foram aceitos como científicos, mas como eram diferentes dos até então usados, começou-se a falar em ciências humanas e sociais. Kardec esbarrou nessa questão, quando desenvolveu novos métodos para entender o que os espíritos diziam a ele.

Quanto à metafísica, o nome se deve a quem classificou a obra de Aristóteles. O espiritismo trata da metafísica com dois tipos de instrumentos, a argumentação filosófica e o estudo de questões em que os conceitos metafísicos são concebidos como melhor explicação plausível para fenômenos naturais ou psicológicos. Uma criança que se lembra de ter sido outra pessoa, e após estudo dá mostras de ter conhecimentos da vida desta pessoa, que teriam que ser aprendidos, é um destes pontos de contato entre as ciências e a metafísica. Se as explicações naturais forem insuficientes, o conceito de espírito e o de reencarnação passam a ser uma explicação convincente ao problema.

Há questões no espiritismo que não estão ao alcance das ciências, como a questão de Deus, e que são tratadas com argumentação filosófica. Ainda assim, o ponto de contato que tem sido usado para se pensar a possibilidade de Deus são as leis universais. Einstein questionou como pode a física clássica ter leis tão regulares, enquanto no mundo subatômico tudo é incerto e probabilístico. Nos dias de hoje essa forma de pensar é costumeiramente chamada de “design inteligente” do universo. Kardec defende a ideia de Deus com um axioma e suas implicações: se há efeitos inteligentes, a causa precisa ser igualmente inteligente. Ele supõe Deus a partir do próprio ser humano.


Pergunta: Explique sucintamente como o público não acadêmico poderia identificar as características de uma pesquisa de boa qualidade, de outra que não atenda aos critérios formais.

Coordenação Geral: É uma pergunta difícil até mesmo para quem tem formação em pesquisa, mas vou dar alguma dicas, sem ter a pretensão de esgotar o tema.

1. A boa pesquisa se baseia em livros e artigos rigorosos, se possível, revisto por pares ou escrito por autor com domínio da área. Faz um esforço para identificar estes autores. Ela distingue opiniões pessoais dos autores de argumentos fundamentados. Ela identifica uma questão ainda não explorada ou polêmica e tenta responde-la com fundamentação. A boa revisão de literatura abrange os autores que concordam e os que discordam da opinião inicial que o pesquisador tem sobre seu tema, e analisa os dois.

2. A boa pesquisa argumenta em cima das informações que conseguiu obter, não fazendo inferências ou incluindo opiniões do autor sobre outros assuntos. Se o artigo é sobre mediunidade e os dados colhidos são sobre o trabalho de um médium, as conclusões devem ficar nesta esfera e não serem ampliadas para o movimento espírita, por exemplo. Para se discutir o movimento espírita em bases de pesquisa, é necessário ter dados sobre ele, e não apenas impressões ou experiências pontuais.

3. Quando é uma pesquisa de observação, a descrição das informações obtidas deve ser detalhada, e o leitor deve entender como foi feita, quais os critérios de análise ou classificação, e o que exatamente se observou.

4. Uma boa pesquisa não generaliza além do que é capaz. Se foi estudado um médium ou um passista, não se pode concluir que todos os passistas ou todos os médiuns agem como ele. Para se ter uma generalização de base estatística, é necessário trabalhar com amostras representativas (número de pessoas que possibilitam falar do todo, com uma margem de erro pequena).

5. Uma boa pesquisa se detém em um problema de pesquisa bem definido. Ele geralmente contribui para um melhor entendimento teórico e pode ter relevância social. 

6. Uma boa pesquisa explicita seus pressupostos. São pontos teóricos que são tomados como certos e que não serão discutidos, por já terem sido antes. Os comportamentalistas, em psicologia, partem do pressuposto que a análise do comportamento é a via principal para o entendimento do homem, e criticam  o conceito de mente, por exemplo. Os psicanalistas partem da existência do inconsciente, do Édipo e de outros conceitos básicos considerados aceitos pela psicanálise, para dar sua contribuição.

7. Uma boa pesquisa faz um grande esforço para obter os artigos mais recentes sobre o tema que trabalha, apresentando o essencial para o leitor. É o que se chama de “estado da arte”.

8. Uma boa pesquisa, ao concluir, reponde seu problema de pesquisa (mesmo que a resposta seja “ainda não sabemos”) e se posiciona com relação aos autores que já publicaram sobre o assunto.

9. Há outras formas de pesquisa, como a recuperação do pensamento de um autor antigo. Geralmente se lê a obra ou os livros desse autor, em seu idioma original, o que já se escreveu sobre ele, e, se explica o autor e dialoga com seus outros leitores. Pode-se discutir a lógica interna do trabalho do autor, a interpretação que fizeram dele, as implicações do que ele fez para o futuro, por que não foi aceito em sua época, como pode contribuir hoje.

10. O bom trabalho é claro, para quem domina os conceitos básicos da área. Trabalhos cheios de expressões técnicas, mal definidas e mal empregadas, ou com um tom hermético (ele dá a impressão que só o autor entende do assunto e que mais ninguém na área é capaz de entender) costumam ser muito equivocados. Um bom autor consegue explicar suas ideias e deixar clara sua argumentação para quem tem uma base conceitual do que está escrevendo. Este tem sido um exercício utilizado nos programas de pós-graduação no Brasil, o de escrever trabalhos de divulgação.

Pergunta: Qual a relação da LIHPE com a história do espiritismo?

Coordenação Geral: Antes de responder esta pergunta é preciso distinguir memória de história. A memória a apresentação de fontes históricas, escritas, pictóricas e orais. Quando alguém escreve sobre o centro espírita que frequentou ou o evento em que foi, apresentando fotos, relatos, entrevistas e textos, ele está trabalhando como um memorialista. A LIHPE, desde o Eduardo Carvalho Monteiro, que era memorialista, mas não era historiador, tem valorizado a preservação da memória.

O historiador é um profissional da história, e além das fontes históricas ele constrói um conhecimento teórico compreensivo ou explicativo. Tem, portanto, um domínio de sua disciplina e é capaz de interlocução com seus pares. Há historiadores na LIHPE fazendo seu trabalho, como o Fausto Nogueira e o Marcelo Gulão, por exemplo, mas para se tornar historiador é necessária uma longa formação. Atualmente só podemos aproximar historiadores de memorialistas.

A instituição que o Eduardo criou para apoiar a pesquisa histórica do espiritismo foi o Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo, que ganhou seu nome após sua desencarnação. Eduardo colecionou milhares de obras espíritas, recuperou obras raras, e guardou documentos. O centro foi iniciado com seu acervo, e tem recebido outros acervos com o passar dos anos, trabalhando para classificar, preservar e deixa-los acessíveis aos pesquisadores e estudiosos interessados. O CCDPE-ECM não é a LIHPE, mas tem sido um parceiro muito próximo, publicando nossos livros e apoiando os eventos. Mais informações sobre o CCDPE-ECM podem ser obtidos em: http://www.ccdpe.org.br/


Pergunta: Como se associar à Lihpe?

Coordenação Geral: Basta enviar um e-mail para contato@lihpe.net O moderador do grupo irá solicitar dados de identificação e repassará as regras de funcionamento da LIHPE ao interessado.  


14o. ENLIHPE
Apoio: União Espírita Mineira


21.1.18

O APOCALIPSE GNÓSTICO DE PAULO DE TARSO E A REENCARNAÇÃO

13 manuscritos descobertos em Nag Hammadi - Egito, 1945


O Novo Testamento é um livro cujos evangelhos são baseados em narrativas originalmente feitas em aramaico, que era a língua semítica falada em regiões como a Galileia e a Judeia, escritas anos depois, a partir de recordações, anotações em entrevistas, em grego koiné (ou helenístico, mais próximo da língua popular falada no oriente), atualizado para um grego mais erudito depois do cristianismo ser “protegido” por Constantino em 312 e traduzido no final do século IV para o latim por São Jerônimo, a pedido do bispo de Roma, Dâmaso.

Embora seja visto como a “palavra de Deus” por boa parte da comunidade cristã atual, ou então como inspirados (supervisionados pelo Espírito Santo) é entendido pelos espíritas em geral como o registro das experiências dos primeiros cristãos e de sua memória dos ensinos e vida de Jesus de Nazaré, considerado o Cristo.

Os livros que o compõem foram fruto de escolha de um conjunto ainda maior, do qual grande parte foi destruída por ser considerada herege (contrária aos dogmas eclesiásticos) ou apócrifa (sem autoridade canônica). Os dogmas da Igreja Católica, contudo, foram sendo construídos ao longo da história, sendo parte deles fruto de decisões tomadas por sínodos e concílios, séculos após os ensinamentos de Jesus. Alguns dos livros hoje considerados apócrifos foram muito utilizados pela comunidade cristã primitiva, regionalmente ou amplamente. Alguns autores anatematizados foram heróis intelectuais de gerações de cristãos, até terem seus trabalhos questionados e queimados, por diversos motivos, mas principalmente pelo cristianismo ter se tornado religião de imperadores de Roma.

Entendendo-se, então, desta forma mais histórica e crítica, o estudo sério do cristianismo merece de seus estudiosos a atenção aos caminhos que foram traçados e abandonados, e aos textos que, por razão dogmática e talvez arbitrária, foram abandonados.

Não é um estudo fácil, porque alguns hereges, como os gnósticos, são acusados de “inventar” textos intuitivamente e dar-lhes valor igual aos textos que teriam sido redigidos tendo por fonte a memória dos apóstolos, suas cartas e experiência (como é o caso do Apocalipse), considerada origem segura por católicos e protestantes. Os textos que não foram apoiados por nenhum dos pais da igreja são considerados pseudepígrafos (imaginários), e os que contam com a simpatia de algum dos autores da patrística são considerados apócrifos. Ainda em nossos dias há comunidades católicas que têm seu Novo Testamento com algum livro considerado apócrifo, como é o caso de “O pastor”, de Hermas, de do livro de “Atos de Paulo” que fazem parte do Novo Testamento da Igreja Ortodoxa da Etiópia. Esta bíblia também a primeira epístola de Clemente.

No meio espírita, Hermínio Corrêa de Miranda fez pesquisas em fontes secundárias sobre os escritos gnósticos e, posteriormente, o catarismo ou heresia albingense. Uma de suas fontes principais para a gnose é a escritora Elaine Pagels, que teve seu livro “Os evangelhos gnósticos” publicado em português.

Ela trata de fragmentos de textos do antigo e novo testamento que foram encontrados em Nag Hammadi, no Egito, por um pastor, em 1945. Os textos escritos em pergaminho e peles foram encontrados em uma caverna, numa região muito seca e quente, que os conservou durante quase dois milênios. O conjunto dos textos recuperados é chamado de Biblioteca de Nag Hammadi ou evangelhos gnósticos e ficou durante muitos anos sendo montada como um quebra cabeças e traduzida. 

Entre os escritos considerados pseudepígrafos, temos o Apocalipse Gnóstico de Paulo, que é o Códice V da Biblioteca de Nag Hammadi. Este documento faz parte da tradição setiana dos gnósticos. Ele é visto como falsificação (forgery) ou fruto de imaginação pelos estudiosos católicos e protestantes. Diz-se que os setianos combinam os evangelhos com um tipo de platonismo.

Neste livro, Paulo é guiado da montanha de Jericó por um menininho pelos dez céus, com a finalidade de chegar aos doze apóstolos. Ao passar pelo quarto céu, Paulo vê anjos parecidos com deuses, trazendo uma alma da terra e açoitando-a. Ela se queixa do castigo e pede testemunhas que provem que ela cometeu pecado, ao aduaneiro, uma espécie de cobrador de “pedágio” para a entrada. São trazidas três testemunhas, que depõem contra a alma, acusando-a de ira, raiva, inveja, desejo (concupiscência?) e obscuridade (ignorância?).

A alma “abaixa a vista, angustiada” e é derrubada para “um corpo que foi preparado para ela”

Este texto, sem dúvida, trata da reencarnação, mesmo sendo considerado falso, por não ser aceito que foi escrito ou ditado por Paulo de Tarso.

Não há dúvida que este texto gnóstico trata da reencarnação, ou, pelo menos, da volta de uma alma a um corpo “feito para ela” como punição por ter cometido pecados e não estar pronta para ser aceita em um estágio superior nos céus, o que não é aceito pelo espiritismo, senão, como uma alegoria.

Talvez a ideia da reencarnação tenha sido levada aos gnósticos a partir do platonismo de que são acusados de mesclar com o cristianismo, contudo, não há como afirmar com certeza que eles seriam os primeiros cristãos a tratar da questão da reencarnação. Mesmo sendo considerados hereges, os gnósticos são uma das muitas seitas cristãs que se formou nos primeiros séculos, com uma teologia talvez singular, mas articulada a escritos cristãos que comporiam no futuro o cânone.