Apesar do uso de palavras e da imagem de pessoas do espiritismo, a instituição criada por João de Deus não leva o indicativo de espírita.
O assunto da semana em diversos
círculos que frequento têm sido as acusações de assédio sexual a João de Deus.
O volume de denúncias e detalhes veiculados pela mídia em geral é imenso, e é
muito difícil no momento acreditar que possa ser alguma espécie de conspiração
contra esse homem, ou algum fenômeno de massas. Até ontem, eram mais de
trezentas denúncias vindas de diversos lugares do Brasil e do exterior.
Aguardemos, contudo, a confirmação que virá pelo trabalho da justiça.
Enquanto isso, tenho acompanhado
com interesse as declarações que vão surgindo, e, em paralelo a elas os
comentários e opiniões dos entrevistados. É verdade que tenho ouvido muito dos
católicos e evangélicos do meu círculo de conhecimentos que aquilo não se
parece com o espiritismo e com os espíritas brasileiros. O espiritismo desfruta
de boa reputação diante da população em geral.
Exploração da Fé
Considerando factíveis os
relatos, todos se perguntam como uma pessoa conseguiu enganar a tantos por
tanto tempo. Ao contrário do que pensa a coach Ammy que levava estrangeiros
para Abadiânia, não se trata de doutrinação[1],
mas de exploração da fé ingênua ou acrítica.
Manipulação da ignorância
Boa parte das mulheres foram
atrás da faculdade de João de Abadiânia esperando encontrar uma espécie de
homem-santo, um profeta, alguém que cura gratuitamente, praticante da caridade
e digno de confiança. Ele se apresenta à sociedade como um médium, e se identifica com a expressão João de Deus. Como ele afirma curar, e tem uma reputação
confirmada até mesmo por jornalistas mundialmente famosos como Oprah Winfrey[2],
é visto também com algumas licenças que concedemos aos médicos, como o acesso
ao corpo para fins de promoção da saúde.
Outra coisa que facilita a
manipulação das vítimas é a imagem que se criou do Dr. Fritz, através de outros
médiuns, um alemão rude, que dá ordens, desafia as autoridades presente e exige
obediência, mas que no final obtém a cura. É mais uma concessão a ser tolerada na
espera de um resultado que desafia as melhores práticas da medicina. É algo bem
diferente da racionalidade, afetividade e respeito às pessoas, características
que encontramos no espiritismo ao se referir aos espíritos superiores.
A ignorância do espiritismo age
contra as vítimas. O médium acusado de assédio diz que vai fazer um
“alinhamento de chacras”[3],
que vai “desbloquear um chacra”, coisas inexistentes na literatura espírita,
mas que são ouvidas como uma espécie de procedimento médico espiritual. Na
leitura das denúncias, João parece não se preocupar, ou mais, se servir da
confusão do emprego de palavras de doutrinas orientais pouco conhecidas pelo grande
público para que a vítima não se assegure do óbvio: ela estaria sofrendo abuso
sexual.
Outro desconhecimento do
espiritismo é bem manipulado por João: a mediunidade. Mediunidade é uma
faculdade, uma capacidade das pessoas em geral, independentemente de sua ética.
A cura por meios espirituais na tradição judaica, no entanto, é atribuída a
Deus através de seus profetas ou emissários, e na tradição cristã-católica, aos
homens santos. Como João cura (e há inúmeros relatos de pacientes que não
melhoraram com a medicina e que melhoram após participar das reuniões de João[4]),
ele toma emprestada a “aura de santidade”, que, ante as mentes ingênuas, lhe
traz uma reputação de confiabilidade. Poucos tornam públicas, contudo, das
pessoas que não obtiveram melhoras orgânicas, nem do comércio que alguns
denunciam existir por detrás dos grandes espetáculos públicos de mediunidade[5],
tão condenados pelas instituições espíritas sérias.
Outra coisa que João consegue com
mentiras é a fragilização dos vulneráveis. “Feche os olhos, porque a luz é
muito forte e pode cegar”, ele diz a uma mulher. [6]
Diante de uma menor aos gritos,
assustada com a óbvia violação da intimidade, João não se alteraria. Ele diz
que se trata de uma obsessão e pede à sogra que a acompanhava, para não abrir
os olhos[7],
e, de certa forma, ignorar o pedido de ajuda da jovem.
Para quem resiste: intimidação
Uma forma de intimidação
simbólica é a ameaça da volta da doença[8].
João foi acusado de fazer isso com uma mulher que o procurou com câncer de
mama, como se ele tivesse o poder sobre a saúde e a doença, ou autoridade a
partir de um conhecimento sobre a psicogênese das doenças.
Outra acusação de possíveis
vítimas de João de Deus é a de intimidação. Na denúncia da filha, que se afirma
abusada na infância, entre os dez e os quatorze anos, se encontra uma acusação
de ameaça de morte[9].
A questão da reputação
Li nos relatos jornalísticos
sobre o caso a alegação de medo[10],
diante da reputação social que João tem, especialmente em Abadiânia, uma cidade
na qual a Casa de Dom Inácio é muito influente e economicamente importante[11].
Por que não denunciaram antes?
Vulnerabilidade, manipulação da ignorância,
desconhecimento do espiritismo e dos orientalismos empregados, medo, ameaças...
todas essas razões e talvez outras ainda não exploradas vão criando o ambiente
para que um abusador possa ter cometido com tantas mulheres, atos libidinosos
não consentidos.
Mesmo ante tantas acusações,
ainda não podemos escrever que João de Deus cometeu os atos descritos. Todavia,
confiamos no trabalho da justiça e da polícia para avaliar os relatos, levantar
evidências e esclarecer por completo o triste escândalo que envolveu um médium
famoso, uma instituição percebida pela população como espírita, toda uma
comunidade no interior de Goiás e pessoas vulneráveis vindas dos quatro cantos
do mundo em busca de saúde e espiritualidade.
[1] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/mulheres-relatam-abusos-sexuais-do-medium-joao-de-deus-em-atendimentos-espirituais.ghtml
[2] A
apresentadora manifestou-se após saber das acusações e declarou “esperar que a justiça
seja feita”. (Folha de São Paulo - https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2018/12/espero-que-a-justica-seja-feita-diz-oprah-winfrey-sobre-joao-de-deus.shtml)
[3] https://vejario.abril.com.br/blog/beira-mar/banho-de-cristal-do-medium-joao-de-deus-conquista-elite-carioca/
[4] https://vejasp.abril.com.br/cidades/joao-de-deus-relatos-de-cura/
[5] https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-escolha-de-rezende/
[6] https://extra.globo.com/noticias/brasil/menores-de-idade-estariam-entre-as-vitimas-de-joao-de-deus-23293609.html
[7] https://guiame.com.br/gospel/noticias/crimes-sexuais-fazem-do-guru-espiritual-joao-de-deus-o-maior-abusador-conhecido-do-pais.html
[8] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/
[9] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/
[10] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/ex-funcionaria-diz-ter-sido-abusada-por-joao-de-deus-durante-atendimentos-na-casa-dom-inacio-de-loyola.ghtml
[11] https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/12/08/interna_nacional,1011637/moradores-de-abadiania-dizem-nao-acreditar-em-denuncias-contra-joao-de.shtml