Este livro foi meu companheiro por alguns dias. Minha filha, ao encontrá-lo caído no banco do carro, passou a mão sobre a capa e comentou: - "o sangue gruda na mão." De fato, há sangue que não se lava com facilidade da alma.
O romance é uma ficção de Albert Paul Dahoui, e fico incomodado em comentá-lo, por se tratar de um suspense, e temer estragar a experiência do leitor ir descobrindo a narrativa.
É daqueles livros de linguagem simples, narrativa rápida, capítulos pequenos, descrições econômicas e poucas incursões psicológicas no mundo dos personagens. Delicioso de ler, ele gruda nos olhos e não tarda em intrigar o leitor. Eu estava em uma época difícil de ler, devido às obrigações, mas sempre que tinha um tempinho abria o pequeno volume.
O universo da cidade do Rio de Janeiro está impregnado na narrativa e nos personagens, chegando a ficar até um pouco caricatural, mas muito familiar a quem já esteve ou vive por lá.
A maior contribuição do autor está na reflexão sobre o mundo dos portadores de AIDS (ou SIDA), que continuam sofrendo em silêncio na nossa sociedade, uma vez passado o modismo. Uma pena ele ter situado o romance no início da AIDS no Brasil, porque outros problemas afetam aos pacientes crônicos que dependem de remédios de alto custo: há uma luta muda entre o estado e as necessidades dos pacientes. A indústria farmacêutica desenvolve novos medicamentos, mais eficientes no tratamento de certas doenças e comorbidades, mas os burocratas do Estado empregam estratégias de procrastinação da liberação dos remédios, temendo a perda de controle sobre os orçamentos. Estou passando por isso agora.
Se você trabalha com visitação a hospitais, possivelmente fará uma incursão na alma dos visitados, que nunca fez antes. Via de regra, o que se imagina ser consolo ou ajuda, às vezes é falta de conhecimento.
É quase genial a descrição crua que ele faz do preconceito. Ele mostra como este se baseia em atos simples, e imensamente dolorosos para quem sofre. Ele se esconde na borda dos ouvidos, e se perpetua em rede.
A incursão pelo universo do centro espírita é deliciosa. Lembrou-me muito a comunidade espírita do Rio e de Niterói, com quem já tive boa ligação no passado. O autor não se furta a fazer algumas críticas, sempre na narrativa e nas relações entre os personagens. Gosto da humanização que ele faz dos espíritas. Eles não se tornam heróis "a priori", mas pessoas em luta com seus impulsos e lutas interiores, potencializadas quando em comunidade. Ele consegue tematizar muito bem os conflitos de decisões em sociedades espíritas.
Não sei o que aconteceu com o final do livro, mas me pareceu "guilhotinado", isto é, terminou de forma muito abrupta para o meu gosto. Não dá para escrever sobre isto sem atrapalhar ao leitor, então fica o desafio de ter que ler para conversarmos (em modo privado...).
Alguns pontos vão de encontro com o que eu já estudei sobre os campos de concentração, temos algumas diferenças quanto à visão de espiritismo (quem não tem pontos de vista?), mas é uma leitura não só deliciosa, como necessária.
Chamo a atenção do leitor para os personagens do plano espiritual. Dahoui parece herdar o que há de melhor na narrativa de André Luiz, reescrevendo em uma linguagem dos nossos dias. Não apenas recomendo, como convido o leitor do EC que gosta de literatura espírita a degustá-lo.
Título: O Flagelo de Hitler
Autor: Albert Paul Dahoui
4a. Edição
218 p.
Editora: Lachâtre