Um desafio importante para o pensamento espírita é evitar a confusão de palavras e distinguir diferentes conceitos em diferentes autores.
Desdobramento, por exemplo, é uma palavra amplamente utilizada pelo movimento espírita brasileiro contemporâneo, para referir-se a um tipo de mediunidade na qual o Espírito do médium aparenta sair do corpo e incursionar-se pelo plano espiritual. Na obra de Kardec, no entanto, este termo não é empregado. Para referir-se à mesma faculdade, o fundador do espiritismo usa a expressão "sonambulismo mediúnico", e o explica a partir da teoria da emancipação da alma.
Um termo praticamente redefinido é a expressão kardequiana princípio inteligente. Lendo sua obra, vê-se que o principal emprego para esta expressão é fazer oposição à ideia de um princípio material, ou seja, adotar uma posição filosófica dualista, na qual espírito (com e minúsculo) e matéria formam os elementos constitutivos do universo, não se podendo reduzir um ao outro. Allan Kardec está propondo a existência de uma natureza material e uma natureza espiritual, que se interagem, mas são irredutíveis uma à outra.
Um dos recursos da hermenêutica usados para identificar o sentido das palavras é verificar como são utilizadas pelo mesmo autor em diferentes textos produzidos, se possível (desde que ele não as tenha redefinido, como pode acontecer com os filósofos e cientistas ao longo de sua obra). São diversas as passagens nos textos de Kardec na qual encontramos uma explicação do que é princípio inteligente. Selecionei algumas, de obras e passagens menos lidas, para fundamentar minha análise do sentido desta expressão:
3. O Espírito propriamente dito é o
princípio inteligente; sua natureza íntima nos é desconhecida; para nós ele é
imaterial, porque não tem nenhuma analogia com o que chamamos matéria.(O espiritismo em sua expressão mais simples, os grifos são nossos)
Vê-se que Kardec não atribui "princípio inteligente" apenas ao princípio espiritual que animaria seres anteriores ao homem na escala evolutiva.
6. Terá o princípio espiritual sua
fonte de origem no elemento cósmico universal? Será ele apenas uma
transformação, um modo de existência desse elemento, como a luz, a
eletricidade, o calor, etc.?
Se fosse assim, o princípio espiritual
sofreria as vicissitudes da matéria; extinguir-se-ia pela desagregação, como o
princípio vital; momentânea seria, como a do corpo, a existência do ser
inteligente que, então, ao morrer, volveria ao nada, ou, o que daria na mesma,
ao todo universal. Seria, numa palavra, a sanção das doutrinas materialistas. (A Gênese, cap. 11 - Princípio espiritual)
Neste trecho de um capítulo que merece ser lido por inteiro, Kardec justifica porque mantém uma posição dualista. O princípio espiritual não apresenta propriedades da matéria. Ele percebe claramente que o monismo, se levado às últimas consequências, está associado ao pensamento materialista ou fisicalista. O monismo, como doutrina filosófica, embora possa ter muitas acepções, geralmente é utilizado nos nossos dias como a inexistência ou impossibilidade de se defender com bases empíricas a existência de outra natureza que não a material. É uma expressão do ceticismo radical e de uma concepção das ciências naturais.
21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem,
não está no invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no
princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse
princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre
realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o
Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte, mais lúcido
e mais apto.(A Gênese, cap. III, O Bem e o Mal. Os grifos são nossos)
Esta também é uma das passagens de Kardec na qual se vê que quando ele emprega a expressão princípio inteligente, não se refere apenas aos seres anteriores aos humanos, mas a um princípio que se opõe ao princípio material. Ele argumenta pela necessidade da interação entre os princípios (espirito e matéria) para a evolução do espírito. Kardec defende aquilo que o Prof. Rubens Romanelli (espírita mineiro e professor universitário) denominaria "o primado do espírito".
Podemos continuar, citando outras obras e contextos em Allan Kardec, mas ficaria enfadonho. Creio que é suficiente para demonstrar que nosso uso contemporâneo de "princípio inteligente" não é o mesmo empregado pelo mestre lionês.