9.9.11

AS FOX E A MEDIUNIDADE COMO OFÍCIO


Peça publicitária da época

Dando continuidade à biografia das Irmãs Fox escrita por  Weisberg, ela trata como nenhum outro que li sobre a mediunidade paga. Para Barbara é como se as Fox houvessem criado um novo ofício, mais bem remunerado que qualquer outro ao seu alcance social, como mulheres de classe média-baixa dos Estados Unidos.

Um dólar por atendimento, é o preço que aparece em algumas partes do texto, em outras elas negociam o valor de uma temporada a serviço de pesquisadores, por exemplo, que ficam na faixa de milhares de dólares. Dependendo do ofício, elas receberiam três dólares por semana em uma fábrica, para termos noção do valor da moeda americana àquela época.

Apesar da vigilância de Margaretta Fox, em sua juventude, e dos cuidados de alguns amigos na idade adulta, o ofício as expunha em demasia para a época. Homens as procuravam em um misto de curiosidade e com um desejo interessado no toque de mãos para a realização dos fenômenos. Alguns, mais rudes, gabavam-se disto.

Outra coisa curiosa eram as tourneés por cidades norte-americanas. As médiuns viajavam em busca de um público novo que as pudesse remunerar por algum tempo. O fenômeno tornava-se mais importante que o conteúdo do que diziam os espíritos através delas.


William Crookes (?)  examina uma médium

Barbara não poupa tinta para tratar das fraudes de médiuns profissionais para se manterem nesta nova indústria. Cúmplices, truques de magia, articulações estalantes, ventriloquia, sapatos com chumbo para serem seguros pelos ingênuos observadores, tudo isso é descrito, e as Fox dão mostras de conhecerem estes artifícios. Teriam utilizado estes truques para não descontinuarem suas sessões? Não se sabe. Barbara afirma que não foram flagradas fazendo truques em quarenta anos. O máximo que se conseguiu foi o relatório dos observadores de Buffalo, que não obtiveram batidas após imobilizarem com as mãos os joelhos das jovens.

Penso que muito sofrimento seria poupado se elas aceitassem o conselho evangélico de Allan Kardec: "Dai de graça o que de graça recebestes", ou a sabedoria prática de Chico Xavier. "O telefone toca de lá para cá."

8.9.11

MAGGIE E ELISHA KANE


Capa do livro em inglês

Outro ponto alto do livro "Falando com os mortos" é o envolvimento de Maggie Fox com o Sr. Elisha Kane. Barbara Weisberg desenha um Kane igualmente contraditório. Ao mesmo tempo que se apresenta à sociedade norte-americana como herói, é uma pessoa dependente dos pais, do dinheiro dos pais e da imagem que ele cria de si mesmo na sociedade.
Não se sabe se ele se apaixona por Maggie ou se ela se torna um de seus caprichos, mas ele a proíbe de praticar a mediunidade, a interna em uma escola para mulheres e exige sua conversão ao catolicismo, em vão, posto que suas tentativas de fazê-la aceitável pela rígida sociedade vitoriana e por seus pais não é bem sucedida. Margareth vai viver à sombra deste homem, que resolve sair em expedição ao ártico.
Como não foi aceita pelos pais, Kane exige que um jornal retrate a notícia de que ela iria casar-se com ele após sua volta do Ártico, mas continua a procurá-la. Para o Kane público, Maggie era apenas um ato de caridade, mas para o Kane privado, Maggie parece ser uma fixação.
Elisha Kane no ártico
Kane resolve fazer uma cerimônia particular e não oficial de casamento, enfrentando a oposição de Margaretta Fox (mãe de Maggie). Margareth se submete a esta situação e fica na ingrata situação de ser esposa de Kane sem o ser formalmente. A morte de Elisha Kane a deixará em uma situação ingrata, abandonada pela família, sem profissão (a não ser médium) e sem herança, apenas com as cartas de amor que trocaram e que ela resolve publicar em forma de livro.
Abandonada e frustrada em seus sonhos de mulher, ela voltará a fazer sessões mediúnicas após a morte de seu companheiro, que ela insiste em apresentar como marido, mas que não será capaz de lhe assegurar o futuro após a morte.

Eu pesquisei alguns sites norte-americanos que tratam do tema e achei muito curiosa a identificação das autoras com Margareth. Por que mulheres do século XXI consideram-se semelhantes a uma mulher do século XIX, à parte da sociedade, em busca do amor de um homem que a tripudia? Mistério.

6.9.11

O ALCOOLISMO NA FAMÍLIA FOX



A história das Irmãs Fox se encontra repleta de contradições, uma vez que foi contada por simpatizantes e adversários. Seguramente, seu pioneirismo em assumir publicamente a condição de médiuns lhes trouxe mais adversários que simpatizantes em uma sociedade de origens protestantes, como é a norte-americana, e em uma época vitoriana, como é o século XIX.

Inspirados pela versão adversária, e com algum gosto pelo trágico, Stine Nymand Svensson and Elianna Morningstar Hansen fizeram este curta-metragem de animação.

Kate aparece alcoólatra desde a infância e com a aceitação da família, especialmente de Leah, sua irmã mais velha, o que é difícil de aceitar. Leah aparece como uma exploradora da mediunidade das irmãs, e Margaretta (mãe das Fox) está ausente, o que é também incoerente com o que se tem nos trabalhos encontrados sobre a família.

Barbara Weisberg, citada na última publicação do EC, afirma que na juventude o pai das Fox era alcoólatra e jogador (p. 60), o que gerou o afastamento entre ele e a esposa.

John abandonou seus hábitos em 1830, tornando-se metodista e líder em sua comunidade. (p. 63) As doutrinas evangélicas do livre-arbítrio desta época, que atingiram a comunidade batista, metodista e presbiteriana (p. 63) podem ter sido a razão para o abandono do álcool pelo Sr. John, que iniciou vida nova. É nesta vida nova que ele reatou seu casamento com Margaretta e nasceram suas filhas Margareth e Kate.

As meninas devem ter sido criadas em um ambiente de austeridade, contudo, o alcoolismo manifestaria-se na história de Kate. Weisberg relata problemas domésticos e sociais de Kate em 1886, quando ela é flagrada bêbada em um bar, após a morte de seu marido Henry Jenken. Em 1888 ela foi presa, acusada de negligenciar seus filhos, Ferdie e Henry. "Altos e esguios, com olhos brilhantes, Ferdie e Henry pareciam muito bem-cuidados  aos oficiais de polícia, mas Kate estava inegavelmente bêbada". (p. 335)

Kate afirmou ao jornal World, de Nova York, que "... quando ela e a irmã, Maggie, eram jovens e famosas, forma levadas para inúmeros jantares e festas regadas a álcool; as pessoas lhes enviavam cestas com garrafas de champagne. Foi assim que nasceu seu hábito de beber." (p. 335)

A referência mais antiga que encontrei envolvendo as Fox ao álcool (mas não ao alcoolismo) no trabalho de Weinberg (p. 2690, foi publicada por George Templeton Strong, que se limitava a dizer, em torno de 1852, que "ópio, álcool e excitação mental" desempenhavam papel importante nas manifestações.

Conan Doyle (p. 115) no seu "História do espiritualismo" (traduzido indevidamente como "História do espiritismo") entende que após um fenômeno de efeito físico, muitos médiuns tentavam recuperar suas forças por meio de álcool, e que sentiam-se tentados a fraudar "quando as forças se ausentam" e que sofrem a influência de espíritos "que cercam um grupo promíscuo".

Seguramente a questão do alcoolismo das Fox vai além do uso após as sessões, e como propõe Barbara Weinberg, tem base na sua história familiar, e, arrisco dizer, na situação de franca hostilidade e pressão a qual se encontravam constantemente expostas, associada a aceitação social e pessoal do uso de álcool.

Se os autores do curta acima não são fiéis às biografias existentes (não posso dizer que maldosamente), não se pode deixar de reconhecer a triste trajetória das irmãs Fox pela mediunidade profissional, e pela fragilidade, principalmente de Kate, ao alcoolismo

5.9.11

MAIS SOBRE A VIDA DAS IRMÃS FOX

Margareth e Katie Fox


Barbara Weisberg fez a incursão que muitos de nós gostaríamos de fazer e publicou seu diário de viagens com o título “Talking to the dead: Kate and Maggie Fox and the rise of spiritualism” indevidamente traduzido para “Falando com os mortos: as irmãs americanas e o surgimento do espiritismo”, possivelmente para atingir o público espírita.

O passeio é generoso. Barbara consultou livros, revistas e documentos de diversos arquivos em busca das Fox. Discutiu seus manuscritos com muitos especialistas, procurou descendentes e nos ofereceu não apenas um trabalho biográfico, mas todo um cenário dos eventos sociopolíticos e culturais dos Estados Unidos e Inglaterra no período da vida das Fox.

A primeira pergunta que se faz quando se está diante de um trabalho biográfico polêmico como este é: qual é a visão da autora? Ela é espiritualista? Ela é cética? Ela é uma feminista escrevendo sobre mulheres do século XIX? Não tenho uma resposta. Seu texto oscila entre cada uma destas três tendências, ou, pelo menos, das duas últimas.

Um ponto positivo: ela se esforça para apresentar sempre as opiniões dos que creem nos fenômenos e dos que estão obsessivamente procurando pelos truques que Kate e Maggie Fox teriam produzido.

Apesar da simpatia que ela desenvolve por Kate e Maggie, talvez por percebê-las como mulheres ativas em um mundo extremamente limitado para a mulher, Barbara não oculta os fatos, nem os dissimula: relatórios favoráveis e desfavoráveis, o alcoolismo do pai e depois das duas irmãs, a prisão a que se submeteu Maggie Fox na esperança do amor, ou pelo menos do casamento de Elisha Kane, as fantasias, as declarações que elas fizeram de ter fraudado os fenômenos, seguida do desmentido de sua própria declaração, tudo isso é descrito e exaustivamente referenciado ao longo do seu texto.

O livro aponta para uma época esquizofrenicamente intolerante e interessada. As Fox sofrem ao mesmo tempo o assédio público e o repúdio, comum a muitas personalidades famosas dos dias de hoje, o que legou ao futuro controvérsias e versões sobre sua vida.

1.9.11

REPERCUSSÕES DO 7o. ENCONTRO NACIONAL DA LIGA DE PESQUISADORES DO ESPIRITISMO



Passados cerca de dez dias do término do 7o. Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo, já temos diversos comentários, publicações, sinopses, vídeos e fotografias. Para evitar escrever mais uma, remeto os leitores ao que encontrei. Agradeço comentários indicando outras repercussões na imprensa e em outras formas de mídia.

Fiz uma pesquisa a partir do Google e encontrei as seguintes publicações:


Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo - Eduardo Carvalho Monteiro

Livros lançados no 7o. ENLIHPE http://ccdpe.org.br/wccdpe/?p=302
Palestrantes e Coordenadores http://ccdpe.org.br/wccdpe/?p=279
Hermínio C. Miranda escreve carta para os participantes do 7o. ENLIHPE http://ccdpe.org.br/wccdpe/?p=275
Atividades do Sábado http://ccdpe.org.br/wccdpe/?p=213
Atividades dos Domingo http://ccdpe.org.br/wccdpe/?p=245


Espiritualidade e Sociedade (portal)


You Tube

Conversa com os organizadores http://www.youtube.com/watch?v=I4bJYnqzeM0
Lançamento do livro "O espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais" http://www.youtube.com/watch?v=HoRiFD4ztTE&feature=related

A Era do Espírito (Blog) e comentários


Federação Espírita do Estado de Goiás


Jornal Correio Fraterno


30.8.11

DEOLINDO AMORIM E A IDENTIDADE DO ESPIRITISMO


Deolindo Amorim

Dando continuidade aos artigos sobre a identidade do Espiritismo no Brasil




passo a escrever sobre a reação do movimento espírita ao sincretismo e à criminalização da mediunidade e seus desdobramentos.

Um autor um pouco esquecido nos dias de hoje é Deolindo Amorim, membro da Liga Espírita do Brasil e intelectual de destaque na imprensa brasileira, ele dedicou muitos de seus escritos à delimitação da identidade do Espiritismo.

Seu trabalho sobre este assunto de maior impacto parece ter sido "O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas" (1957), mas ele publicou "Africanismo e Espiritismo" (1947) e ""Ideias e reminiscências espíritas" (s.d.). Sua obra é extensa.

Imagino que ele, assim como os espíritas de sua época tenham ficado incomodados com a apropriação do termo espiritismo com o sentido de práticas mediúnicas em geral. Por que utilizar um neologismo com um sentido que  não lhe é próprio? Por que permitir que a população brasileira confunda o espiritismo com o africanismo, os orientalismos e quaisquer outras doutrinas e práticas relaionadas aos mortos? Começou, então, uma reação clara, dentro e fora do movimento espírita, de defesa do entendimento da palavra Espiritismo como sinônimo de Doutrina Espírita, codificada inicialmente por Allan Kardec e desenvolvida posteriormente por diversos autores e  médiuns.

"Se o Espiritismo é apenas sessão mediúnica ou a crença nos espíritos desencarnados, basta ser médium ou participar de sessões, seja quais forem, para que algúem seja espírita; se porém, Espiritismo é o corpo de doutrina codificado por Allan Kardec, com todas as suas consequências filosóficas e religiosas, com todas as suas implicações de ordem moral, é claro que não basta ser frequentador de sessões ou ter faculdades mediúnicas desenvolvidas para ser espírita, na exata acepção doutrinária." (pág. 99)

Ele trata da polêmica entre espiritualistas e espíritas, ainda citando Kardec:

"Alguns hermeneutas e polemistas, tão hábeis no modo de explorar o pensamento de Allan Kardec, extraindo frases e palavras isoladas, deveriam ler o que ele escreveu a respeito do vocábulo espírita: As palavras espiritualismo e espiritualista são inglesas, e têm sido empregadas nos Estados Unidos. No começo, apenas or algum tempo, dia ainda Kardec, também delas se serviram na França. Logo, porém, que apareceram os termos espírita e espiritismo - adianta Kardec - "compreendeu-se a sua utilidade, e foram imediatamente aceitos pelo público". Os termos espiritualismo e espiritualista aplicados "às manifestações dos espíritos, não são, hoje, mais empregados senão pelos adeptos da escola americana" (O que é o espiritismo, cap. I, segundo diálogo).

Quando Amorim trata da questão do africanismo, o faz de forma respeitosa, elegante, mas incisiva. Ele diz:

"Nosso objetivo ... é apenas fazer distinção entre Espiritismo e Africanismo, sem outro intuito que não o de esclarecer e separar, à luz dos próprios elementos de estudo, dois campos de pesquisa bem definidos. O Africanismo, com todas as suas seitas e cultos, deve ser estudado à parte, assim como o Espiritismo, porque não há entre um e outro afinidade de cultura nem relação histórica." (Africanismo e Espiritismo, pág. 35)

"As práticas de origem africana, largamente ramificadas, são espiritualistas, dignas de respeito como quaisquer outras práticas religiosas, mas não constituem variante das práticas do Espiriitsmo. Encerrando este trabalho, chego à conclusão de que Africanismo não é Espiritismo." (Africanismo e Espiritismo, pág. 59)




28.8.11

VIDA, MORTE E MEDIUNIDADE


Propaganda do filme. Já saiu de cartaz.

Após acompanhar uma verdadeira guerra de opiniões sobre o último filme dirigido por Clint Eastwood, criei coragem e adquiri o blu-ray, que já está sendo comercializado e possivelmente alugado nas locadoras.

Alguns críticos diziam que era o pior filme do ex-ator e atual diretor, feito para ganhar uns trocados aproveitando a onda espiritualista. Outros diziam que era o melhor filme dirigido por ele, se observássemos que ele trata da vida e do homem, e  não da mediunidade.

Eu gostei de tudo. O roteiro lembra o comemorado Babel, não direi porque, para não atrapalhar as emoções daqueles que não o assistiram ainda.

A mediunidade do personagem de Matt Damon não é o centro do filme, é uma espécie de fundo. O diretor focaliza no conflito que vive o médium em função das dificuldades do exercício de sua faculdade. A cena se desenrola na relação entre o médium e a pessoa que o procura, mais que entre o médium e o espírito. Por esta razão, na minha opinião ganhou um ponto quem acha que o filme é sobre a vida, o humano, as emoções e a sociedade de consumo.

A jornalista Marie vive uma experiência de quase morte que altera todo o seu mundo pessoal e profissional. Suas escolhas decorrentes de sua experiência levam-na ao que no filme e aqui no Brasil chamamos de Conspiração do Silêncio.

Quem mais me tocou foi o menino Marcus e sua busca incansável por seu irmão e pela reconstrução de sua família. Em sua fragilidade ele representa a força do ser humano, sua capacidade de superação e de inspiração.

Os espíritas ganham de graça um passeio pelo mundo dos médiuns londrinos, dos pesquisadores psíquicos e dos herdeiros do "modern spiritualism" anglo-saxão.

Cenas belíssimas, cortes secos, música deliciosa, cenários ricos e variados, o filme se parece às vezes com uma projeção de slides de três histórias que se embaralham. Eu vi e recomendo.

18.8.11

AURÉLIO VALENTE E A IDENTIDADE DO ESPIRITISMO


Aurélio A. Valente

O sincretismo é uma prática viva em meio ao povo brasileiro. A diversidade cultural em uma história de dominações e resistências e o uso da aculturação como estratégia de dominação são alguns dos fatores que predispõem à uma mentalidade de coexistência incoerente de tradições filosóficas, culturais e religiosas.

No início do século XX, Aurélio Valente, tendo obtido as primeiras letras espíritas no grupo dos "Filhos Pródigos" e no grupo "Paz e Harmonia", escreveu um livro sobre mediunidade, preocupado não apenas com a instrução em língua portuguesa, mas com os atavismos católicos que coexistiam em meio espírita à proposta de Allan Kardec. Em 1929, então presidente da União Espírita Paraense, ele proferiu uma conferência que serviu de base ao seu livro "Sessões Práticas e Doutrinárias do Espiritismo".

"... Casamentos, batizados e outros sacramentos da Igreja de Roma foram adaptados e adotados por alguns espíritas, incapazes de se desfazerem de pronto das tradições seculares."

"A Doutrina Espírita não ensina de forma alguma, nem admite, nem mesmo por tolerância, essas práticas que constituem verdadeira profanação da sua simplicidade característica."

Com estas palavras fortes Valente não apregoava a intolerância com o Catolicismo Romano, mas a resistência ao sincretismo do movimento espírita.
Na década de 1930, quando Aurélio Valente escreveu seu livro, ele comenta também as aproximações das sociedades espíritas aos cultos dos índios brasileiros e afrodescendentes.

"A maneira de praticar o Espiritismo vai, desde os grupos bem organizados e escrupulosos, aos desorientados e fanáticos. Chegou-se, até, a estabelecer distinção entre "sessões de mesa" e "sessões de linha". Estas, onde pontificam africanos e índios, de acordo com os propósitos bons ou maus, são chamadas "linha branca" ou "linha negra"." (1973, p. 193)

Ele descreve as práticas religiosas, que envolvem dança, roupas especiais, calças arregaçadas, etc., e afirma:

"A isso alguns dão o nome de Espiritismo, enquanto outros o denominam de afro-catolicismo. Uma coisa, porém, afirmamos: não é Doutrina Espírita. (1973, p. 194)

Não encontrei no texto de Aurélio Valente qualquer menção ao termo Kardecismo. Apesar de usar uma frase de efeito, ele emprega Espiritismo ao longo de seu livro, como sinônimo de Doutrina Espírita. Não encontrei também as expressões baixo e alto espiritismo, que Giumbelli atribuiu aos órgãos do estado brasileiro e à medicina de então.
 
Esta resistência ao sincretismo (assim como a confusão entre as propostas filosóficas e religiosas) é antiga e data da chegada das ideias espíritas ao Brasil, como se pode ler na correspondência entre Telles de Menezes e Desliens, mas isso é assunto para outra publicação.

17.8.11

KARDEC E O ESPIRITISMO


Robert Hare (1781-1858)


A introdução de "O Livro dos Espíritos" inicia-se com um parágrafo sobre a terminologia que Allan Kardec utilizaria para designar a obra que ele desenvolvera a partir do exame de comunicações de espíritos por médiuns diferentes, de grupos, cidades e, posteriormente, países diferentes.

Como se pode ler no livro de Alfred Russel Wallace, O Aspecto Científico do Sobrenatural, a expressão "modern spiritualism" (espiritualismo moderno) já era amplamente utilizada nos países de língua anglo-saxã. Ele cita Augustus de Morgan, Robert Hare e o Juiz Edmonds como homens de ciência que estudaram os fenômenos e produziram trabalhos a respeito da comunicação entre os Espíritos e os homens.

Buscando dar uma identidade nova, distinta do movimento já existente (apesar das similitudes em grande número de seus princípios e propostas), Allan Kardec propôs um método para a identificação dos espíritos e para a análise de suas comunicações dos espíritos. Da aplicação do método na análise dos diálogos com os Espíritos, ele publicou "O Livro dos Espíritos", com a seguinte explicação:

"Para coisas novas precisamos de palavras novas; assim o exige a clareza da linguagem, para evitarmos a confusão inerente ao sentido múltiplo dos mesmos termos. As palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida; dar-lhes uma nova, pala aplicá-las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo (...) Em lugar das palavras espiritual, espiritualismo, empregaremos, para designar esta última crença, as palavras espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso, mesmo, têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, reservando ao vocábulo espiritualismo a sua acepção própria. Diremos, pois, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas."

15.8.11

GALILEU MOSTRA PESQUISADOR DE REENCARNAÇÕES E UFJF O TRAZ PARA O BRASIL AMANHÃ.

Erlendur Haraldsson. Nome diferente, não? Este islandês tem publicado trabalhos que sugerem a recordação de vidas passadas por crianças, dando continuidade a uma tradição de décadas iniciada pelo Dr. Ian Stevenson.

A revista Galileu entrevistou-o e fez uma publicação isenta e informativa a respeito deste autor e de seu trabalho. Confiram em


Se gostarem do autor, uma dica. A Universidade Federal de Juiz de Fora irá trazê-la para uma conferência. Maiores informações abaixo, confiram!  Mas rapidamente porque a conferência será amanhã.

MÃES DE CHICO NAS LOCADORAS E À VENDA EM DVD

12.8.11

O "BAIXO ESPIRITISMO" EM PRISÃO CELULAR


Com a declaração da república, iniciou-se uma nova ordem social no Brasil do final do século XIX. Época curiosa, posto que antes de se promulgar uma nova constituição (1891), decretou-se (em 1890) um novo código penal (cf. Giumbelli, Emerson. O cuidado dos mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997, pág. 79)

Neste documento, o artigo 157 (Dos crimes contra a saúde pública) criminalizou o espiritismo.

"Praticar o espiritismo e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou de amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credibilidade pública:

Penas - de prisão celular de um a seis meses, e multa de 100$000 a 500$000.

(...)

Parágrafo 2o. Em igual pena, e mais na de privação do exercício da profissão por tempo igual ao da condenação, incorrerá o médico que diretamente praticar qualquer dos atos acima referidos ou assumir a responsabilidade deles."

O artigo 156 proíbe também o exercício da homeopatia, do magnetismo animal e do hipnotismo (entre outros) "sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos" - sob pena de prisão celular e multa.

O legislador deu voz aos segmentos sociais que combatiam a legitimidade do espiritismo no Brasil: a igreja e a medicina (leia-se a tese de doutorado de Angélica A. S. Almeida - "Uma fábrica de loucos": psiquiatria e espiritismo no Brasil).

Bezerra de Menezes, usando seu pseudônimo Max, iniciou uma série de artigos críticos publicados no jornal O Paiz, nos quais critica contundentemente o legislador.

Nestes artigos, uma das estratégias usadas pelo presidente da FEB foi mostrar ao público as pessoas de renome no meio científico e cultural que estudavam e afirmavam-se adeptas do espiritismo.

Ele critica também a pena de prisão celular destinada aos espíritas "castigo inquisitorial, que já fez seu tempo, e que só um espírito acanhado e retrógrado podia lembrar-se de implantar na legislação hodierna" (Bezerra de Menezes. Estudos Filosóficos. Segunda Parte. São Paulo: EDICEL, p. 159)

Sob pressão, o legislador declara que não teve a intenção de condenar incondicionalmente as práticas espíritas:

"... o código não condena as práticas espíritas em absoluto, nem como meio de investigação científica, nem como diversão ou distração (...) mas como indústria ilícita, de que seus exploradores tiram proveito em detrimento da saúde pública." (Giumbelli, 1997. p. 86)

Contudo, o próprio Giumbelli mostra que havia uma intenção de "deslegitimar" o espiritismo, posto que ele faz um levantamento bibliográfico de cientistas europeus que afirmam ser o espiritismo "uma simples 'superstição', não tendo sido jamais comprovados os fenômenos que a ele se atribuem"; bem como o polêmico episódio envolvendo a condenação de Leymarie. (1997, p. 87)

O fato é que as autoridades policiais realizaram diversas ações repressivas contra o movimento espírita, realizaram algumas prisões e obrigaram a federação a defender médiuns em juízo, como bem descreve nosso antropólogo em seu livro premiado.

Uma das consequências do trânsito dos espíritas por delegacias e cortes, consequente ao código penal republicano, foi o emprego do termo "baixo-espiritismo".

"Encontramo-la mencionada nos textos de médicos, em análises do campo religioso, nas sentenças e acórdãos judiciais, nos documentos produzidos pelos aparatos policiais, em reportagens jornalísticas e nas declarações dos próprios agentes religiosos." (Giumbelli, 1997. p. 221-222)

O termo ganha relevância como elemento de distinção, uma vez que a legislação em si não fornece elementos para os atores sociais envolvidos reconhecerem todo o universo cultural e social a que o termo mal empregado remete. Um dos problemas envolve os diversos cultos afro-católicos:

"Na literatura sobre os cultos 'afro-brasileiros', não é raro que encontremos a expressão 'baixo espiritismo'. Dois elementos são básicos para sua definição: o 'sincretismo' de formas culturais originalmente africanas com elementos advindos do 'espiritismo' e a existência de práticas curativas com base nos conselhos dos 'espíritos' de diversas origens." (Giumbelli, 1997. p. 222)

Yvonne Maggie (apud Giumbelli) encontra no início da década de 30 o termo "baixo espiritismo" incorporado no discurso de promotores e juízes:

"Daí, se distinguir o baixo espiritismo para caracterizar o delito: é magia negra, o bruxedo, a feitiçaria, o 'cangerê', a 'macumba', africanismos rudes que podem perturbar as ideias, alterar o estado nervoso, provocar consequencias atentatórias à ordem pública, à moral da coletividade (...) sempre ligado ao propósito de dano." (Revista Forense, 1934. apud Giumbelli, 1997. p. 225)

O trabalho de Giumbelli nos convence da relevância do código de 1890 na geração histórica de uma questão identitária em torno da palavra espiritismo. Ao generalizar, o código aproximou e, ao mesmo tempo, demandou uma diferenciação entre espiritismo e cultos afro-brasileiros, medicina e prática mediúnica, num emaranhado de significados e grupos que causam polêmica até os dias atuais.

Recomendo aos leitores o texto "As muitas faces da intolerância contra o espiritismo", de minha autoria, que publiquei no livro "Pesquisas sobre o espiritismo no Brasil", em 2009, para que esta questão seja ampliada.

6.8.11

7o. ENCONTRO NACIONAL DA LIGA DE PESQUISADORES DO ESPIRITISMO - SP

COMO INSCREVER-SE NO 7o. ENLIHPE?

Já se encontra disponível a ficha de inscrição para participar do 7o. ENLIHPE.

Acesse http://www.ccdpe.org.br/, com o número da identidade (RG) e do CPF em mãos.

Depois basta depositar o valor da inscrição (R$50,00). Este valor compreende o CD com os resumos dos trabalhos do encontro, um livro do 6o. Enlihpe, certificado e 5 coffee breaks.

3.8.11

SAIU A PROGRAMAÇÃO DO 7o. ENLIHPE


  

7º ENLIHPE – PROGRAMAÇÃO

Tema Central: ESPIRITISMO E CIÊNCIA: OBJETOS, FRONTEIRAS E MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO.

SÁBADO – 20 de agosto de 2011

8:00h Recepção e credenciamento
8:30h Formação da Mesa de Abertura. Prece inicial.
8:40h Palavras iniciais (LIHPE e CCDPE).
8:55h Apresentação e Lançamento do livro com textos do 6º ENLIHPE – O Espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais, edições CCDPE-ECM e LIHPE, por Jáder Sampaio,
9:20h Apresentação de trabalho convidado – Júlio Prieto Peres (Deve a psicoterapia considerar a reencarnação?)
10:10h Perguntas e comentários
10:30h Intervalo. Mesa de autógrafos dos livros do 6º Enlihpe (todos os autores presentes)


Sessão Coordenada I

10:50h Apresentação de trabalho – Ademir Xavier (Uma abordagem estatística para cálculo de tempo médio entre reencarnações sucessivas)
11:10h Perguntas e comentários

11:30h Apresentação, lançamento e mesa de autógrafos do livro O Movimento Espírita Pelotense e suas raízes sócio-históricas e culturais, de Marcelo Freitas Gil, Vol. 3 - Coleção Espiritismo na Universidade (CEU), editoras Unifran, CCDPE-ECM e LEP.


12:00h Encerramento das atividades matutinas. Informações sobre o almoço e programação. Visita ao acervo do CCDPE


13:30h Apresentação do Trailer – O Filme dos Espíritos


Sessão Coordenada II

14:00h Comunicação de projeto de pesquisa – José Lourenço (A importância do planejamento para as instituições espíritas)
14:20h Apresentação de trabalho – Marco Milani (Planejamento Estratégico em Centros Espíritas: aspectos fundamentais para a implementação de quadro geral de desempenho)
14:40h Perguntas e comentários


15:00h Apresentação e Lançamento de livro Diálogo com os Céticos, de Alfred Russel Wallace, editora Lachâtre, tradução de Jáder Sampaio
15:20h Intervalo.




Sessão Coordenada III

15:40h Comunicação de projeto de pesquisa – Cléria Bueno (As três virtudes: Moral, Justiça e Equidade à luz do Direito Natural , da Psicologia e da Doutrina Espírita)
16:00h Perguntas e comentários


16:20h Lançamento de livro e mesa de autógrafos do livro A História Viva do Espiritismo - Instituições Centenárias em funcionamento no mundo em 2008 , de Washington L. Nogueira Fernandes, edições CCDPE-ECM
16:40h Apresentação de trabalho convidado - Washington Fernandes (Análise do conteúdo da Literatura Mediúnica a partir de Emanuel Swendenborg e a psicografia do médium Divaldo Pereira Franco)


17:10h Encerramento das atividades vespertinas. Informações sobre o retorno das atividades no dia seguinte e outras informações gerais


DOMINGO – 21 de agosto de 2011

8:00 às 9:20h Assembléia da LIHPE (Resultados da avaliação do 7º. ENLIHPE, propostas para o 8º.ENLIHPE, plano de trabalho da LIHPE para 2011-2012, ações conjuntas entre LIHPE e CCDPE)


8:00 às 9:20h
Visita ao acervo do CCDPE (para quem não participa da LIHPE – CCDPE)


9:25h Abertura das atividades do dia 2


9:30h Apresentação de trabalho convidado – Elaine de Lucca (A regressão no processo terapêutico)
10:10h Perguntas e comentários


10:20h Intervalo. Mesa de autógrafos – O Amor Perfeito, Elaine de Lucca


Sessão Coordenada IV

10:40h Comunicação de projeto de pesquisa – Nadia Luz (Simetrias Históricas: o conceito teórico e a prática na metodologia de Hermínio Miranda)
11:00h Comunicação de projeto de pesquisa – Kátia Penteado (Reencarnação: uma associação entre o mito de Er e o Espiritismo)
11:20h Apresentação de trabalho – Jeferson Betarello (Ciência Espírita: objetos, limites e método de pesquisa)
11:40h Perguntas e comentários


12:10h Apresentação e lançamento de livro da FEEGO, Os Primórdios do Espiritismo em Goiás, Volume 1, da Coleção Memória Espírita do Estado de Goiás, Airton Veloso e Eurípedes Veloso


12:30h Sessão de encerramento. (LIHPE e CCDPE)
Almoço de confraternização

31.7.11

O 7o. ENLIHPE ESTÁ CHEGANDO



O Sétimo Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo ocorrerá nos dias 20 e 21 de Agosto, em São Paulo - capital.

O tema deste ano é "Espiritismo e Ciência: Objetos, Fronteiras e Métodos de Investigação".

Local do evento: Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo - Eduardo Carvalho Monteiro. Alameda dos Guaiases, 16 - Planalto Paulista, São Paulo.

As inscrições estão abertas e são limitadas. Podem ser feitas pelo e-mail

7enlihpe-inscricao@ccdpe.org.br




Taxa de inscrição: 50,00

Depósito Banco Itaú, agência 0745, c/c 60.000 - 7 em nome do Centro de Cultura, Documentação e Pesquisa do Espiritismo Eduardo C Monteiro. Enviar comprovante pelo e-mail acima.

Informações pelos fones 11 - 5072.2211(secretaria ccdpe) e 11 - 5561.5443 e 11 - 9983.8425 com Márcia Carvalho Monteiro

Trabalhos Escolhidos.

Serão apresentados de trabalhos que foram previamente inscritos e selecionados por uma comissão avaliadora. Os temas e autores serão divulgados em breve.

Divulgação de Livros:


Durante o evento serão lançados e divulgados os seguintes livros:





O Espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais é uma seleção de trabalhos apresentados no 6o. Encontro Nacional da LIHPE. Trata de temas na fronteira entre o espiritismo e a física, a política, a sociologia, a psicologia, o jornalismo, a educação de jovens e adultos e também um novo levantamento de teses e dissertações de temática espírita defendidos no Brasil.




O movimento espírita pelotense, escrito pelo historiador Marcelo Freitas Gil, da LIHPE, usa dos recursos da História Cultural para compreender a origem e constituição do movimento espírita de uma das cidades que tem pouco menos de 6% de espíritas que se declararam como tal ao censo.


É possível usar o instrumental das ciências naturais para se pesquisar fenômenos espirituais? Esta pergunta é a base do trabalho de Alfred Russel Wallace, naturalista conhecido pela sua teoria da evolução das espécies, em parceria com Charles Darwin. Wallace detêm-se no pensamento de David Hume, cujos argumentos contra a possibilidade da pesquisa dos milagres influenciou gerações de filósofos posteriores. Wallace também discute a posição filosófico-histórica que situa a crença em espíritos em sociedades primitivas, criando, assim, um óbice à sua adoção por homens considerados civilizados ou modernos.
 
É a primeira tradução para o português que temos notícia, o que incentivou a editora a lançá-lo mais de um século depois de escrito, dada a sua atualidade e importância.
 
 
Os primórdios do espiritismo em Goiás, foi escrito pelos irmãos Airton e Eurípedes Veloso, mineiros radicados no estado goiano e trabalhadores da Federação Espírita do Estado de Goiás. O livro é o primeiro que integra a série "Memória Espírita do Estado de Goiás" e segundo o segundo autor é "uma peça do  memorial representado pela LIHPE". Os autores participaram do ENLIHPE e utilizaram sua formação em história e seu conhecimento do movimento goiano para produzirem este belo trabalho.
 
Outras Informações:
 
Mais informações podem ser obtidas no site www.ccdpe.org.br, inclusive preços de hotéis indicados para os participantes que vêm de fora de SP.

 


12.7.11

REENCARNAÇÃO E CRISTIANISMO

Figura 1: Constantino queimando livros de Arius. Ilustração de um compêndio de lei canônica . Fonte: Wikipedia (inglês) verbete "First Council of Necaea"


Vez por outra recebo a visita de leitores evangélicos e católicos no blog. Eles deixam alguns comentários que nem sempre publico, por fugirem totalmente ao tema tratado ou por entender que se prestam a um diálogo de surdos.

Recentemente recebi um comentário no qual o autor afirma que o espiritismo "nega pelo menos 40 verdades da fé cristã" e que "a crença na reencarnação é incompatível com o cristianismo ou doutrina cristã". Ele questiona por que o movimento sonega ou esconde este fato dos seus adeptos.

Também recentemente um professor de religião de uma de minhas filhas ensinou que o espiritismo não faz parte do cristianismo, porque, entre outras coisas, não acredita na doutrina da trindade, embora os espíritas se considerem cristãos.

1. A Questão da Trindade

A questão da trindade não era pacífica no início do cristianismo, tanto é que foi convocado um concílio no ano 325 para tratar do tema, o Concílio de Nicéia. Se a trindade foi objeto de discussão, em um encontro de representantes do cristianismo, é sinal que se tratava de um tema polêmico. Desconheço um concílio ou sínodo católico para discutir se a existência de Deus é um princípio cristão, posto que é ponto pacífico e universal.

Ário ou Arius (ou ainda Arrius, como prefere Rodrigues) foi um dos membros da escola de Alexandria que negava que Deus e Jesus participassem de uma mesma substância. Sobre o Concílio de Nicéia, pode-se ler o livro "A Esquina de Pedra", escrito por Wallace Leal V. Rodrigues, editora O Clarim, que entremeia uma narrativa romanceada a informações sobre o concílio e a época. Ao final deste livro ele insere uma nota na qual faz referência ao livro "History of the First Council of Nice", de Hilton Hotema, e cita o seguinte:

"Além de Constantino e Eusébio de Cesaréia, apenas 300 bispos votaram no esquema de Constantino e que estes eram ... 'homens iletrados e simples, incapazes de compreender o que se passava'... Esses prelados ignorantes, aflitos de refressarem às suas cidades e temerosos de serm tomados por hereges, concordaram com o imperador, ansiosos de ver terminado o Concílio." Segundo o autor, 1800 bispos participaram do Concílio.

Outra afirmação do Prof. Hotema é com a vitória de Constantino, Arius foi considerado herege e excomungado. Seus escritos se tornaram escassos porque foram destruídos, como era habitual à época. Isto se pode ver na figura 1.

O que se pode concluir é que a trindade não era doutrina oficial da igreja antes do ano 325. Se ela for considerada condição sine qua non para ser considerado cristão, muitos dos cristãos, mártires e talvez pais da igreja dos primeiros séculos serão considerados hereges.

O livro "Cristianismo, a mensagem esquecida", de Hermínio Miranda o tema é abordado e ele faz referência a um teólogo contemporâneo, Hans Küng, que propõe seja Jesus considerado homem e que haja entendimento entre as religiões, e que a adesão ao credo niceano não seja o critério para a identificação do cristão. Nesse livro, o tema também é tratado, ao contrário do que afirma nosso crítico. E a reencarnação, pode ser considerado um ponto polêmico da comunidade cristã dos primeiros séculos?
2. A Questão da Reencarnação

A reencarnação, tão contrária a alguns dogmas católicos, é ainda mais bem tratada na literatura espírita que a questão da trindade. Kardec, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, dedica um capítulo inteiro a explicar passagens que sugerem: que a reencarnação era conhecida pelos judeus e que pode-se interpretar diversas passagens envolvendo os ensinos de Jesus como sendo favoráveis à tese reencarnatória.

Dois dos discípulos de Kardec escreveram livros sobre a reencarnação (Denis e Delanne), mas Denis acrescenta muita informação ao debate, ao mostrar em seu Cristianismo e Espiritismo, como a reencarnação era crença conhecida em meio aos judeus (através de citações de textos originais), com muitos exemplos, e defender a tese da doutrina secreta, ou do sentido oculto dos evangelhos. Ele cita passagens dos pais da igreja favoráveis à reencarnação, e a famosa dúvida de Santo Agostinho. Nele vemos a questão da reencarnação presente na comunidade e nos teólogos de Alexandria, antes do século IV.

Fosse a reencarnação um fenômeno pontual, não teríamos o episódio medieval dos cátaros, que foram vítimas de genocídio em função dos interesses da igreja, como nos mostra Hermínio Miranda em seu livro "Os Cátaros e a Heresia Católica"?

Outra fonte que trata desta questão é o livro "A reencarnação segundo a Bíblia e a Ciência", escrito por José Reis Chaves. Este mesmo autor trata rapidamente do concílio de Nicéia no seu "A Face Oculta das Religiões".

3. Concluindo

Se admitirmos uma visão histórica, o espiritismo é uma releitura do cristianismo, em sintonia com muitos estudiosos do pensamento e vida de Jesus, de dentro e fora da igreja católica. Desta forma, não se trata de sincretismo, posto que desde o seu primeiro livro ele se propõe a fazer uma leitura racional dos evangelhos e elege o cristianismo como uma referência ética.

Se reduzirmos o cristianismo à igreja e seus dogmas, entendemos que teremos o catolicismo, que é algo muito menor que o pensamento e a comunidade cristãos. Com certeza, há tensões diversas entre o pensamento espírita e o católico, ou seja, espiritismo não é catolicismo; contudo, o cristianismo não se subsume ao catolicismo e às doutrinas evangélicas queiram seus membros admiti-lo ou não.

Por fim, não se oculta nada da comunidade espírita. Via de regra, o espiritismo é um conhecimento público, e cada vez mais acessível, mas cabe ao que se diz espírita e ao que se diz crítico do espiritismo estudá-lo.

10.7.11

A QUESTÃO DE DEUS: KARDEC, TOMÁS DE AQUINO E JOHN DUNS SCOTUS

Figura 1: John Duns Scotus

Uma das questões que sempre me intrigou em "O Livro dos Espíritos" é a de número três: pode-se dizer que Deus é o infinito?

Homem do século XX, infinito é um termo que sempre vi associado à matemática e às ciências naturais, nas infindáveis tentativas dos físicos mensurarem o tamanho do universo.

Com esta concepção estreita que tenho, a pergunta não fazia sentido, parecia-me própria do panteísmo, que Kardec distingue tão claramente da concepção espírita de Deus.

Ao ler História da Filosofia, especialmente os autores da patrística e da escolástica, esbarrei em um pensador cristão interessante: John Duns Scotus ou Scot (1266-1308).

Nos dilemas entre a fé e a razão, o conceito de ente infinito ocupa um papel importante no pensamento de Scotus. Reale e Antiseri (2011) apresentam a questão a partir dos sentidos e do intelecto. Se é mais ou menos fácil identificar a finalidade dos sentidos do homem, qual é a finalidade do intelecto? Scot afirma que o intelecto, essencialmente humano (ente unívoco), tem por finalidade o conhecimento.

Afirma Valverde (1987) que Scotus se opõe ao raciocínio de São Tomás de Aquino, que tenta demonstrar a existência de Deus a partir dos dados dos sentidos e que, por isso, tem uma concepção limitada dele.

"Desse modo, Deus ficaria reduzido à mera causa primeira do mundo físico". (pág. 179)

Scotus, portanto, segue outra trajetória dedutiva, a de considerar o ser a partir de suas propriedades intrínsecas, sem recorrer aos sentidos. Ele estabelece pares de "modos de ser" que Valverde cita: finito e infinito, possível e necessário, entre outros. Não é difícil para Scotus mostrar que o homem é um ente finito (unívoco, pelo que pude entender), que, portanto, dispensa a demonstração da existência. A questão se torna demonstrar a existência do ente infinito.

Scotus parte da premissa de que as coisas possivelmente existem (embora não seja necessário que existam). É contudo necessário que existam, partindo do fato que existem. Então, ensina Reale que Scotus pergunta qual é a causa ou fundamento da existência, e mostra que não pode ser o nada, porque o nada não é causa. Também não são as coisas, porque elas não podem dar a existência a si mesmas (Lembremos que nessa época ninguém cogitava da teoria da evolução de Darwin e Wallace). Então é necessário por a razão desta possibilidade em um ser diferente, que transcende a esfera do produtível e das coisas possíveis.

Reale e Antiseri continuam sua explicação mostrando que se as coisas são possíveis, o ente primeiro também é possível. E se ele é possível, ele existe em ato, já que nenhum outro o produziria. Por consequência, uma vez que nenhum outro o produziria, ele é real

Scotus supera Tomás de Aquino ao afirmar que este ente, que é causa primeira, tem por característica interna ser infinito "porque é supremo e ilimitado". A consequência deste raciocínio é que "o ser infinito é o Ser, ..., porque é o fundamento de todos os entes e, antes ainda, de sua possibilidade." (Reale e Antiseri)

Mesmo utilizando o conceito de ente infinito para demonstrar a existência de Deus, Scotus admite que o conceito é "em si mesmo pobre e insuficiente, porque não consegue nos introduzir na riqueza misteriosa de Deus".

As questões iniciais de "O Livro dos Espíritos" apontam, portanto, para as discussões da filosofia escolástica e situam-se no conflito entre fé, razão e empirismo, o que sugere a participação de espíritos que dão prova de um conhecimento cada vez mais limitado a um grupo menor de pessoas, com o avanço da centralidade das ciências empíricas em nossa cultura.