Seu centro espírita é um arquipélago?
Recentemente recebi uma consulta de um amigo de muitos anos,
que atua em uma casa de Minas Gerais e tenta auxiliar a direção geral em seus
propósitos. A atual diretoria, composta de pessoas com algum tempo de vida, na
casa dos sessenta/setenta anos, tem superado as dificuldades pessoais, deixado
o pijama no armário e tenta investir esforços para a realização de coisas
necessárias para o centro como um todo.
Sempre que me entendi por gente no movimento espírita,
talvez pela influência de autores como Chico Xavier (Emmanuel), Raul Teixeira,
Divaldo Franco, Herculano Pires, Deolindo Amorim, Carlos Imbassahy e muitos
outros cuja abordagem considero benéfica e relevante, entendo que o
espiritismo tem um autor importante que desenvolveu a estrutura do pensamento espírita,
que é Allan Kardec, e seu trabalho vem sendo desenvolvido ao longo dos tempos
por diversos autores, encarnados e desencarnados, cuja obras convencionamos
chamar de subsidiárias.
Esta forma de perceber o pensamento espírita parece-me muito
semelhante à da filosofia, por exemplo, que demanda de todos aqueles que
pretendem formar-se nesta área que dominem bem os gregos antigos, como Platão e
Aristóteles. Não conheço físico que consiga estudar mecânica quântica, sem
conhecer as leis de Newton. A psicanálise, nos dias de hoje, não prescinde da
leitura de Freud cujas ideias podem até ser criticadas por autores
contemporâneos, mas são a base de uma das escolas de pensamento psicológicas de
hoje. Não tenho conhecimento enciclopédico, mas creio que poderia continuar
falando de outras áreas do conhecimento. Seja estudando diretamente, seja
indiretamente, todas têm seus clássicos, com ideias que funcionam como
estruturas do pensamento, com o passar dos anos.
Herculano dizia que o espiritismo é “o grande desconhecido”,
e vemos que a obra de Kardec, desenvolvida no contexto da Europa do século XIX,
ainda é pouco estudada no movimento espírita. Acho que os espíritas do nosso
tempo têm a ilusão, após um ou dois anos de centro espírita, que Kardec é fácil
ou rápido de se aprender. Na verdade, o que penso que acontece é uma falta de
programação de estudos das casas espíritas que faz com que os expositores falem
sempre dos mesmos temas. Há muitos expositores, ainda, que estudam pouco, então
se tornam repetitivos e aprendem apenas de oitiva, o que gera um círculo
vicioso. Creio que “O evangelho segundo o espiritismo” e “O livro dos espíritos”
são as obras mais lidas e comentadas em estudos de Kardec, mas os demais livros
e a Revista Espírita, que contém o processo da construção teórica e prática do
movimento espírita, ainda são conhecidos por poucos.
Perdoem se divaguei, voltemos à história do início da
matéria. Sensíveis à necessidade de revitalizar em sua casa o conhecimento do pensamento
de Allan Kardec, os dirigentes convocaram reuniões para sensibilizar os
dirigentes para uma ação do centro como um todo, valorizando Kardec, e meu
amigo surpreendeu-se com uma reação que ele não esperava na casa espírita: o
boicote.
Na administração de casas espíritas, boicote seria um grupo, sob uma direção superior, se recusar a ter relações com os dirigentes que ele
próprio escolheu, ou deixou escolherem. Geralmente é um boicote branco, ou
seja, não se vai nem se faz representar nas reuniões convocadas, não se cumpre
uma decisão coletiva, inviabilizando a gestão. Não é um conflito ou
divergência, apenas indiferença. Nas casas maiores, formadas com muitos grupos,
é cômodo ficar apenas no âmbito da sua reunião ou grupo de trabalho e fingir
que os problemas da casa são dos outros, uma vez que quando uma casa cresce,
seus problemas também crescem.
Ilhar-se dentro da casa espírita é uma forma de criar
inúmeros grupos dentro de um centro, dificultando sua administração. Com o
tempo, os grupos podem desenvolver idiossincrasias e podem ignorar as decisões
tomadas pela comunidade, até mesmo as mais democráticas. Não há conflito nem
discordância, mas aos poucos as pessoas começam a perceber, e as vezes
comentar, as diferenças. Humberto de Campos falou deste problema em um conto
intitulado “Bichinhos”.
O problema fica ainda maior quando uma casa com grande
número de frequentadores se torna um “arquipélago”. A tentativa de empreender
ações coordenadas e de obter apoio para realizações maiores é cheia de
espinhos, fica difícil encontrar pessoas dispostas a ocupar cargos de direção,
pelas seguidas frustrações impostas pelo “clima de boicote”.
Por esta razão, ouvi de um conhecido expositor espírita
sobre a importância de se ter um espaço que congregue as lideranças da casa.
Não é um espaço administrativo, apenas deliberativo ou informativo, mas uma
reunião ou evento periódico, que possibilite que as lideranças se conheçam, se
encontrem e estudem/trabalhem juntas, evitando a territorialização dos grupos
espíritas. São necessários esforços para que haja uma convergência de atitudes
e objetivos ou o centro se fragmenta.
Gostaria de deixar aos dirigentes de reuniões que leram
heroicamente este artigo até o final algumas perguntas: Você tem apoiado a
diretoria que elegeu? Sabe quais são os problemas da casa, que ela vem tentando
solucionar? Você sabe quais são as tarefas da sua casa e incentiva seus colegas
de reunião a auxiliar na sua realização? Ou será que você tem incentivado a
todos a ficarem em uma ilha em um arquipélago que leva o nome de centro
espírita?