2.4.14

Alma, Espíritos e espírito: qual a diferença para Allan Kardec?


Ilustração de Gustave Doré de A Divina Comédia. Dante e Virgílio estão no sexto ciclo.

Um dos temas que costumam causar polêmica na obra de Kardec é a dupla definição de espírito/Espírito que ele faz em “O livro dos espíritos”.

Na questão 23 ele define espírito (com e minúsculo) como o “princípio inteligente do universo”. Esta definição não constava da primeira edição do livro, bem como a discussão sobre Deus, espírito e matéria (questão 27), na qual Kardec tenta distinguir “o princípio de tudo o que existe, a trindade universal”.

Essa trindade assemelha-se à de um dos autores espirituais de “O livro dos espíritos” quando encarnado: Platão. Ele propõe como trindade o demiurgo (o criador do mundo), a matéria e as ideias puras.  

Observa-se que neste início do livro, Kardec define espírito “em princípio” ou como princípio, não como ente.  Este “princípio inteligente do universo” não existe separado da matéria, embora possa estar ligado a uma forma material tão sutil, que para nós “é como se não existisse” (questão 186)

Prosseguindo , ele faz uma nova definição na questão 76, mas agora está falando dos Espíritos, com a letra “e” maiúscula. Estes, sim, são entes, seres que se encontram na natureza, no mundo espiritual, como define Kardec.  Ele define, portanto, como “seres inteligentes da criação” e ainda redige uma nota que os leitores desavisados costumam não dar muita atenção: “A palavra Espírito é empregada aqui para designar as individualidades dos seres extracorpóreos, e não mais o elemento inteligente do universo”.

Neste momento, Kardec passa a tratar dos seres humanos desencarnados, que existem no mundo espiritual com um períspirito que os delimita à percepção dos demais e dos médiuns. Perceba o leitor que, a partir da questão 76, ele passa a usar a palavra Espírito com maiúscula, mesmo quando ela aparece no meio da frase, para deixar claro que não está se referindo ao princípio inteligente, mas aos seres inteligentes.

Uma curiosidade: na primeira edição de O Livro dos Espíritos, Kardec usa sempre a palavra francesa esprit ou esprits com letra minúscula. Na segunda edição é que encontramos a distinção de esprit e Esprit ou Esprits. Confiram no site do IPEAK:



Por fim resta-nos distinguir Espíritos de almas. Kardec emprega a palavra Espírito para tratar dos desencarnados e alma  (questão 184) para tratar do Espírito dos encarnados.

Concluindo:

O espírito é um elemento universal, de essência distinta da matéria (e de Deus, obviamente)

Os Espíritos são seres inteligentes, desencarnados, que só existem ligados a um envoltório semimaterial denominado períspirito.


As almas são os Espíritos encarnados.

31.3.14

ESGOTADAS AS INSCRIÇÕES DO SEMINÁRIO "MECANISMOS DA MEDIUNIDADE"


Esgotaram-se as inscrições do Seminário Mecanismos da Mediunidade, antes da data prevista. Confirmaram presença membros das seguintes sociedades espíritas listadas abaixo:


Associação Médico-Espírita de Minas Gerais
Casa do Caminho - Sabará 
Casa Espírita Chico Xavier     
Casa Espírita Francisco de Assis             
Casa Fraterna Irmão Ismael
Centro Espírita Jesus de Nazaré - Oliveira/MG
Centro Espírita André Luiz
Centro Espírita Casimiro Cunha
Centro Espírita Divino Mestre - S. José dos Campos/SP
Centro Espírita Irmão Mateus
Centro Espírita Luz e Humildade            
Centro Espírita Manoel Felipe Santiago
Centro Espírita Maria de Nazaré  
Centro Espírita Oriente – Grupo da Fraternidade Irmã Scheilla
Fraternidade  Espírita Irmãos Jacó e Mateus
Fraternidade Espírita Irmão Glacus                      
Fraternidade Luz e Esperança 
Fraternidade Maria Quitéria da Luz
Fundação Espírita Cárita
GEFA - Contagem/MG
Grupo da Fraternidade  Espírita Francisco de Assis
Grupo Emmanuel
Grupo Espírita Allan Kardec
Grupo Espírita da Fraternidade Albino Teixeira
Grupo Espírita Raios de Luz - Lagoa Santa/MG
Grupo Espírita Virgílio Pedro de Almeida
Hospital Espírita André Luiz           
INEDE
Sociedade Espírita Allan Kardec - Montes Claros-MG       

União Espírita Mineira

Sejam todos bem-vindos!


29.3.14

QUEM EVANGELIZA NÃO IMPROVISA!



As atividades de formação da evangelização infantil devem ser planejadas com antecedência, e não improvisadas, semana a semana. O que isso significa?

  1. Uma visão de todo, ou seja, uma escolha de temas e assuntos adequados às idades, que possibilitem a aquisição de uma visão de todo do espiritismo e uma reflexão dos conflitos e problemas que se enfrenta no desenvolvimento infantil e nos relacionamentos.
  2. Um plano de temas para o respectivo ano, não tão fechado que exija um assunto por aula, nem tão amplo que deixe os evangelizadores à deriva nos interesses de sua turma.
  3. Um planejamento de tarefas concomitantes às atividades dentro de sala: a turma de 11 e 12 anos de nossa casa, por exemplo, auxilia anualmente o preparo da festa junina, visita outras unidades de evangelização infantil (nossa casa tem unidades em três cidades), participa de uma atividade anual na qual os próprios alunos apresentam trabalhos que prepararam em grupo, em casa, reúnem-se uma vez ao ano na casa dos evangelizadores para ver um filme, comentar e divertirem-se.
  4. Um planejamento anterior, e de preferência coletivo, das aulas. Temos dois ou três voluntários por sala de aula de evangelização, por pura necessidade. Como é uma atividade voluntária, é preciso que não seja pesada aos responsáveis. Isso significa que eles serão responsáveis por uma ou duas aulas por mês, o que diminui a carga de preparo das aulas. Contudo, precisam reunir-se para que as aulas não fiquem desarticuladas, e para que a experiência de todos seja computada na elaboração das aulas.
  5. Um acerto prévio da logística: que material será necessário levar para a sala de aula? Como fazer o transporte dos alunos? Como obter autorização dos pais para atividades externas? Divulgaremos os aniversários dos alunos?
  6. Projetos de ação mais estrutural: há modificações e demandas que podem ser conversadas com as diretorias dos centros espíritas para serem implantadas em médio prazo (a construção de uma área ao ar livre para atividades, por exemplo, a obtenção de mobiliário adequado às crianças, a instalação de redes de wi-fi para a evangelização, aquisição de data-shows e monitores de televisão, a criação de espaços de leitura de literatura infantil nas bibliotecas, etc.)
  7. Avaliação das aulas: depois de realizada a aula ou conjunto de atividades, atingiram-se os objetivos? Houve entendimento do tema? Houve tematização de vivências da realidade dos participantes? Houve problemas com algum aluno? Alguma estratégia de ensino-aprendizagem foi inadequada ou mal executada? Como fazer melhor da próxima vez?

Por tudo isso, aquela ideia infeliz de procurar na internet uma aula pronta na véspera do dia do encontro da turma, ou de chegar esbaforido no centro espírita para ver o que poderia ser usado para a aula, deve ser evitada a todo custo, para que um trabalho seja efetivo e prazeroso para todos.

25.3.14

NA SALA DE AULA DE EVANGELIZAÇÃO


Imagem: Capa do livro Autismo, de Hermínio Miranda.


A jovem chegou na sala de evangelização, indicada pelo médico espírita. Já tinha 15 anos, mas, após conversa com a coordenação do trabalho, os pais a levaram para a turma de 11 e 12 anos.

O primeiro dia foi particularmente difícil para todos os envolvidos. Os pais ficaram no corredor, do lado de fora da sala. Tudo era muito novo para a nossa jovem e para a turma, que em grande parte já se conhecia. Os evangelizadores perguntavam-se se daria certo. Eles se perguntavam qual seria o benefício para a nossa nova aluna. Será que ela aprenderia?

Ela se portou de forma quase irrepreensível. Ficou quietinha, no seu cantinho. Entrou em luta interna para estar presente naquele ambiente estranho, diferente. Não permitiu que ninguém encostasse nela, e desviou-se silenciosamente das mãos dos passistas ao final da aula, mas não gritou, nem destratou ninguém.

Outro dia, ela não quis levar o trabalho que fizeram em sala para casa. Exerceu seu direito cidadão de deixá-lo na sala de aula, mesmo informada que era seu. Mas o trabalho foi feito por ela. É uma vitória, algo a ser comemorado internamente pelos envolvidos, sem alacridade, apenas respeito. Respeito, por sinal, não falta na relação dos colegas para com ela. É uma colega diferente, mas é colega como outra qualquer. Eles têm um cuidado caprichoso, quase carinhoso, de não fazer o mesmo tipo de brincadeiras, às vezes provocativas, que fazem uns com os outros. Não há queixas, nem perguntas indiscretas sobre a presença dela. Acho que é uma aula de vida para eles, na qual ela dá mais que recebe. E eles recebem com elegância. Quem sabe, um dia, não terão a honra de receber alguém em sua vida com as mesmas necessidades especiais de sua colega?

Passaram-se as semanas e o comportamento só melhora. Ela já se sente meio em casa na sala de aula. Assiste as aulas, com seu silêncio, ora com o olhar introspectivo, ora com o olhar de quem se interessa, mas fica “na sua”.

O passe já faz parte da rotina da aula, e ela vai tomar o copo de água fluidificada, espontaneamente, após o passe. Já não é mais necessário desviar das mãos dos passistas. Como será que ela registra o passe? Será que ela se beneficia das sensações e emoções que o passe desperta em quem está em oração? Talvez.


Vale a pena o esforço dos pais? Levá-la semanalmente, confiar nos evangelizadores e na turma, deixar sua pérola com eles?  Vale, sim. Vale muito. 

Oxalá outros pais despertem para a importância da evangelização inclusiva, e nós aprendamos também cada vez mais a conviver com as diferenças e a apreender as vitórias que passam despercebidas ao mundo.

24.3.14

ABERTAS AS INSCRIÇÕES DO SEMINÁRIO - NÃO DEIXE PARA AMANHÃ.

Estão abertas as inscrições no site da Associação Espírita Célia Xavier para o seminário "Mecanismos da mediunidade e suas relações com a física e o hipnotismo". 

Basta acessar http://www.aecx.org.br e clicar em inscrição on-line. 

Há um formulário pequeno, fácil de preencher e a inscrição está pronta.

Não deixe para amanhã, são apenas 150 vagas e já começaram a ser preenchidas, pelo que acabei de conversar com a secretaria da Associação.

11.3.14

ANDRÉ LUIZ EXPLICADO PELO DR ALEXANDRE FONSECA - BELO HORIZONTE MG



Prezados Leitores


Estamos trazendo o Prof. Dr. Alexandre Fontes da Fonseca, de Campinas-SP, a Belo Horizonte - Minas Gerais, para tratar do livro Mecanismos da Mediunidade. Alexandre tem alguns pós-doutorados em Física, inclusive no exterior, e já publicou na conceituada revista Science, tendo, portanto, uma formação sólida para nos explicar com clareza os conceitos de física utilizados por André Luiz para fazer metáforas aos mecanismos da mediunidade.

Não temos muitas vagas, porque o seminário é uma ação para a qualificação dos médiuns da Associação Espírita Célia Xavier, mas concordamos em abrir para o movimento espírita em geral, para que todos possam aproveitar a vinda do Alexandre. Peço, contudo, aos interessados, para não deixar a inscrição para a última hora. Informações podem ser feitas na secretaria da AECX - 31 - 3334-5787. O endereço é Rua Coronel Pedro Jorge, 314, Prado, Belo Horizonte-MG.

O evento será no auditório da Associação Espírita Célia Xavier, no Prado, que tem capacidade para cerca de 150 pessoas, apenas.

Recomendo aos participantes fazer uma leitura prévia do livro e levar questões, para que o evento seja proveitoso.

Bem-vindos à nossa casa

Jáder Sampaio

Mais informações podem ser obtidas no site http://www.aecx.org.br


8.3.14

ORÍGENES, REENCARNACIONISTA CRISTÃO?






Continuo publicando textos derivados da leitura que estou fazendo sobre os cristãos primitivos, e hoje comento a vida e duas propostas de Orígenes, similares à proposta espírita. Roque Frangiotti fez uma busca nas fontes disponíveis sobre a vida de Orígenes e se tornou nossa principal fonte nesta pequena biografia, assim como o texto filosófico de Giovanni Reale.

Vida de Orígenes

Cristão de Alexandria, de 185 d. C., Orígenes nasceu em família cristã e viu seu pai ser martirizado em 202, por ordem de Lúcio Sétimo Severo (imperador romano). Este evento tornou o jovem Orígenes, com 18 anos, responsável por mãe e irmãos, sem os bens da família, que foram confiscados pelo império. Ele passou a sustentá-los com aulas de gramática, que havia aprendido com o pai e desenvolvido com esforço próprio.

Com a perseguição romana, os catequistas haviam fugido de Alexandria, e Orígenes aceitou o convite do bispo Demétrio para realizar este trabalho, dirigindo a escola de catequese de Alexandria, quando passou também a acompanhar e exortar os mártires.

Nesta época, o cristianismo era alvo de críticas de cunho filosófico e de disputas internas entre doutrinas que se desenvolveram a partir de pontos conflituosos da fé cristã. Giovanni Reale (p.45) afirma que Orígenes combateu gnósticos, adocionistas e modalistas.

Este trabalho só foi possível porque Orígenes criou o Didaskaleion, um “centro de ensino superior”, considerado “o primeiro esboço daquilo que será a universidade na Idade Média” (Frangiotti, p. 11). Era um lugar que ensinava não apenas a doutrina cristã e as escrituras, mas também as diversas áreas da cultura chamada profana. Esta iniciativa possibilitou ao alexandrino o estudo da filosofia.

A Héxapla

Orígenes fez viagens de estudos, em busca das diferentes versões da Bíblia, para poder fazer estudos comparativos. Um de seus trabalhos é a Héxapla e que é uma Bíblia em seis colunas, a saber:
  1. O texto hebraico com caracteres hebraicos
  2. O texto hebraico com caracteres gregos
  3. A versão bíblica de Áquila
  4. A versão bíblica de Símaco
  5. A versão bíblica de Teodicião
  6. A versão bíblica da Septuaginta (os setenta)
Seu sucesso e reconhecimento por cristãos e autoridades cristãs de diversas partes do mundo parece ter despertado a inveja de Demétrio, que o destituiu do magistério e do presbiterato, além de excomungá-lo.

Orígenes foi para Cesaréia da Palestina, onde passou seus últimos vinte anos. Lá ele continuou a ensinar e organizou um centro de estudos, além de uma biblioteca que se tornou célebre e na qual trabalharam no futuro “Pânfilo, Eusébio e São Jerônimo” (Frangiotti, p. 15) Ele também passou a pregar e comentar diariamente a escritura para os cristãos.

No governo do imperador Décio iniciou-se uma nova perseguição aos cristãos, quando Orígenes foi preso e torturado, desencarnando anos depois.

Eusébio de Cesaréia afirma que Orígenes escreveu cerca de 2.000 livros, e Jerônimo fez um levantamento de 800 títulos. Muito se perdeu do que Orígenes escreveu porque algumas de suas doutrinas e ideias foram condenadas pelo II Concílio de Constantinopla, em 553, o que “provocou o desaparecimento sistemático de sua imensa obra”. (Frangiotti, p. 17)

A Hierarquia Deus – Jesus e o Espírito Santo

Seria muito difícil comentar a obra de Orígenes como um todo, então deter-me-ei em dois pontos que interessam a nós, espíritas.

Ao estudar o espírito santo, Orígenes faz uma hierarquia entre Deus, Jesus e o espírito santo. Ele defende a homoousia (Jesus foi emanado de Deus, e tem a mesma natureza do Pai), que nos é estranha, porque entendemos Jesus como espírito superior e distinguimos a natureza de Jesus da de Deus, em função das características divinas discutidas por Kardec. Contudo ele admite alguma subordinação do filho ao Pai (Reale, p. 45) Já o espírito santo teria um papel santificante.

Até o momento, em boa linguagem espírita, entendo que Jesus, após a desencarnação continua acompanhando o movimento cristão através da mediunidade dos profetas cristãos e de outros médiuns das comunidades. Entendo também que outros espíritos superiores, missionários de Jesus, tinham o seu papel junto a estas comunidades, sendo identificados como o Espírito, como diz Denis, ou o Espírito Santo, como afirma a tradição católica. Reale afirma que Orígenes via no Espírito Santo uma “função específica na ação santificante”.

Preexistência e Reencarnação

O segundo ponto que nos interessa é a defesa da preexistência do espírito antes da concepção. Orígenes entende que os espíritos preexistem e quando cometem pecado, nascem, ou seja, encarnam.  É uma leitura muito próxima da de Kardec que entende que o ciclo das encarnações é necessário ao desenvolvimento dos espíritos e que possibilita a reparação das faltas cometidas.

Outra similitude, que encontrei em Reale (p. 46) diz respeito à reencarnação. Para que o leitor não pense que estou inventando ou lendo mal, passo a citar textualmente:

“É doutrina típica de Orígenes (derivada dos gregos, embora  com notáveis correções) a que segundo a qual o “mundo” deve ser entendido como série de mundos, não contemporâneos, mas subsequentes um ao outro. Tal visão relaciona-se estreitamente com a concepção origeniana segundo a qual, no fim, todos os espíritos se purificarão, resgatando suas culpas, mas, para se purificarem inteiramente, é necessário que sofram longa, gradual e progressiva expiação e correção, passando, portanto, por muitas reencarnações em mundos sucessivos.” (Reale, p. 46)

Vê-se, portanto, que Léon Denis leu acertadamente quando escreveu em seu “Cristianismo e Espiritismo”

“De todos os padres da Igreja, foi Orígenes quem afirmou do modo mais positivo, em numerosas passagens dos seus princípios (Livro 1º.), a reencarnação ou renascimento das almas. É essa a sua tese: “A justiça do Criador deve patentear-se em todas as coisas”.

Referências Bibliográfica

Denis, Léon. Cristianismo e espiritismo. 7 ed. Rio de Janeiro, FEB, 1978.
Frangiotti, Roque. In: Orígenes. Contra Celso. São Paulo, Paulus, 2004.
Reale, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia. Patrística e Escolástica. 4 ed. São Paulo, Paulus, 2011. Vol. 2.



23.2.14

OS PROFETAS ENTRE OS JUDEUS, OS CRISTÃOS E OS ESPÍRITAS



Estamos estudando, em nossa reunião mediúnica, o capítulo de "O evangelho segundo o espiritismo" que trata dos profetas (capítulo 21 – Haverá falsos cristos e falsos profetas).

O que é profeta?

O senso comum associou os profetas às profecias e entende, hoje, que seriam pessoas com o dom de desvendar o futuro. Na sociedade hebraica, os profetas seriam, de algum modo, um elo entre os homens e Deus, sendo, portanto, capazes de dar sinais da divindade, o que envolve curar doenças, saber de coisas que as pessoas comuns não sabem, e, como diz Kardec, eles seriam “todo enviado de Deus com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as coisas ocultas e os mistérios da vida espiritual.” Jesus foi identificado como profeta pela mulher samaritana, no evangelho de João (4:19).

Os profetas estão presentes no cristianismo primitivo. A Bíblia de Jerusalém os identifica como homens que falam em nome de Deus sob a inspiração do espírito santo (pág. 2070) Isso seria um carisma especial, assim como haveria outros carismas, como o dos apóstolos, Perto destes últimos, os profetas teriam um “conhecimento imperfeito e provisório, em relação com a fé.”

O cristianismo primitivo aproxima o profeta do que o espiritismo, hoje, denomina médiuns. Não acreditamos que os médiuns percebam diretamente a Deus, nem ao chamado espírito santo, a não ser que esta denominação tenha o significado de espíritos superiores, identificados com o cristianismo, como muitos dos que se comunicaram à época de Allan Kardec.

Esta reverência respeitosa que desperta a figura do profeta (médium), seja no contexto judaico, seja no cristão primeiro ou no espírita, pode proporcionar uma aceitação quase acrítica do que ele diz, após ser reconhecido como tal. Isto faz com que pessoas sem caráter desejem ser vistos como profetas para obter todo tipo de vantagem dos ingênuos. Daí a preocupação em não se deixar enganar. Kardec dava aos médiuns um papel de intermediários, e não lhes incendiava o ego, cuidado muito importante para o espiritismo do século XXI.

Os profetas entre os cristãos dos primeiros séculos

Os cristãos primeiros tinham a preocupação de não ser enganados por quem se dizia profeta, desde as inúmeras advertências do próprio Jesus (Mateus 7:15-20, por exemplo). Encontramos alguns cuidados na Didaqué, um livro escrito entre 70-120 d.C., de autor desconhecido, mas possivelmente um judeu convertido, da escola de Tiago Menor que imigrou para a Síria. Ele se preocupa com os cristãos que ensinam o cristianismo (didáscalos ?) e com os profetas que viajam de comunidade em comunidade. Ele propõe que haja hospitalidade entre os cristãos, mas com discernimento.

“Se o hóspede estiver de passagem, deem-lhe ajuda no que puderem: entretanto, ele não permanecerá com vocês, a não ser por dois dias, ou três, se for necessário. Se quiser estabelecer-se com vocês e tiver uma profissão, então trabalhe para se sustentar. Se ele, porém, não tiver profissão, procedam conforme a prudência, para que um cristão não viva ociosamente entre vocês. Se ele não quiser aceitar isso, é um comerciante de Cristo. Tenham cuidado com essa gente.” (Didaqué 12:1-5)

Nesta época aceitava-se que o profeta fosse sustentado pela comunidade, se verdadeiro. Contudo, o autor da Didaqué tem o cuidado de estabelecer o que se daria ao profeta. Ele compara o profeta ao professor, e como o professor é digno do seu alimento, o profeta também seria. Neste ponto da história, parece já haver uma mistura entre a função de profeta e a de didáscalo. Como ninguém enriquece com o cristianismo primitivo, o profeta também não. A ele são destinados “os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas”. Este é um hábito semelhante ao judaico, de destinar estes bens aos sacerdotes. Gosto particularmente do versículo quatro:

“Se, porém, vocês não têm nenhum profeta, deem aos pobres.”

O Espiritismo e os profetas

Passados os séculos, Kardec retoma o debate dos profetas em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, porque sabe que tanto médiuns, quanto espíritos, podem equivocar e se equivocarem. Por isso, preocupa-se em instruir o movimento espírita que observe o caráter dos médiuns, assim como os cristãos primeiros se preocupavam com o caráter dos que se apresentavam como profetas.

“O fato de operar o que certas pessoas consideram prodígios não constitui, pois, sinal de uma missão divina, visto que pode resultar de conhecimento cuja aquisição está ao alcance de qualquer um, ou de faculdades orgânicas especiais, que o mais indigno não se acha inibido de possuir, tanto quanto o mais digno. O verdadeiro profeta se reconhece por mais sérios caracteres e exclusivamente morais.” (O Evangelho segundo o espiritismo, cap. XX!, item 5)


Sábias palavras, muito atuais em uma época na qual muitos ainda se deslumbram com o que parece sair da boca ou das mãos dos médiuns.

15.2.14

ALLAN KARDEC E OS DIFERENTES ESPÍRITAS.


Diferentes tipos de grãos

Quando um autor desenvolve uma tipologia de grupos de pessoas, não há dúvidas que ele deseja destacar as diferenças entre elas. No caso do movimento espírita, uma das primeiras tipologias que lemos está no capítulo Do Método em O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec.

Proselitismo e incredulidade

Kardec começa o capítulo discutindo o proselitismo, que considera natural, e propõe que se faça pela instrução. Aqui ele desenvolve uma opinião muito interessante, da qual geralmente não damos muita atenção: ele considera que tentar convencer materialistas, pessoas que não acreditam na existência do espírito, via de regra, é perda de tempo.

Ele analisa os que chamou de “materialistas por sistema”, definindo-os como quem considera o homem como “simples máquina, que funciona enquanto está montada, que se desarranja e de que, após a morte, só resta a carcaça”. Se aceitarmos variações sobre este tema, temos nos dias de hoje os que se intitulam céticos, e se consideram adeptos das ciências, negando sistematicamente qualquer avanço que se faça na pesquisa do espírito.

“Com tal gente nada há o que fazer: ninguém mesmo deve se deixar iludir pelo falso tom de sinceridade dos que dizem: fazei que eu veja e acreditarei. Outros são mais francos e dizem sem rebuço: ainda que eu visse, não acreditaria.”

Kardec conhecia o lado humano dos supostos investigadores: “A maioria deles se obstina por orgulho na opinião que professa”.

Tipos de espíritas

Se passarmos as páginas vemos que ele se voltou ao movimento espírita de sua época. E analisando os que se interessavam pela proposta espírita, estabeleceu alguns tipos ou classes.

Ele começa pelos que, desconhecendo a proposta espírita, não a tendo estudado, se identificam com os grandes princípios da doutrina. Ele os chama de espíritas sem o saberem. Hoje há um grande número de pessoas que simpatizam-se com alguns princípios nucleares da proposta espírita, como a existência de Deus, a imortalidade da alma, a mediunidade, a reencarnação, a ética racional e humanista, cristã em seus princípios. Eles não se identificam como espíritas, mas se sentem confortáveis quando em contato com nossa literatura e, eventualmente, em nossas reuniões.

Entre os que estudaram, ele identificou os que ficam apenas na esfera das manifestações espirituais. Kardec os chamou de espíritas experimentadores. Ele tirou o termo experimentador de “experiência”, o conhecimento oriundo geralmente da observação, dos órgãos dos sentidos. Mais do que meros curiosos, que ainda vemos chegar nos centros espíritas, eles são pessoas que estudam e dedicam-se ao espiritismo como um conhecimento de fenômenos espirituais, e não como uma abordagem de conhecimento do ser humano. Kardec não condena o estudo dos fenômenos espirituais, quando cria este tipo-ideal, ele critica que os espíritas se mantenham exclusivamente nesta esfera de investigação ou estudo.

O próximo tipo que ele propôs são os espíritas imperfeitos. Estes estenderam seus estudos à esfera da filosofia espírita e da ética espírita. Eles sabem que os fenômenos são um dos pilares de uma nova visão de mundo, que tem uma proposta para os homens. Sabem que o estudo da vida após a morte não é mero diletantismo, mas desvela uma nova forma de ver as pessoas, seus relacionamentos, a forma de lidar com seus sentimentos, e entende a necessidade de se ter uma ação e uma vivência interior coerente com esta nova realidade. No entanto, deixam para lá. Vivem suas vidas como se nada disso fosse real. Em linguagem cristã, são homens e mulheres do mundo, dos valores encontrados e aceitos na trama social em que se encontram. Não se acham convencidos realmente da necessidade de transformarem-se.  Hoje em dia eles se contam aos milhões, em meio aos que se auto-intitulam espíritas ou apenas simpatizantes.

O terceiro tipo que ele propôs, é muito interessante, se analisado à luz da história do cristianismo. Além do estudo dos fenômenos e da filosofia e ética espíritas, eles se acham convencidos da importância de se ter uma ação diferente no mundo. Esta ação é ao mesmo tempo, social e psicológica. Valorizam a caridade (que em outros momentos de sua obra Kardec distingue do assistencialismo, e categoriza em material e moral). Eles encaram a existência terrena como “prova passageira”. 

Kardec os chama de “verdadeiros espíritas” ou “espíritas cristãos”. É curioso que Kardec não faz qualquer paralelo com os santos, do movimento cristão. Ele considera os espíritas cristãos como pessoas com suas lutas interiores e exteriores, não como um grupo de pessoas de vida exemplar, capazes de enfrentar o martírio, que apresentam virtudes heroicas e que são capazes de produzir milagres.  Uma leitura do capítulo “Sede Perfeitos”, em O Evangelho segundo o Espiritismo, é bem esclarecedor.

Por fim, Allan Kardec fala dos espíritas exaltados. Eles são uma mistura de ingenuidade e entusiasmo, uma forma de fanatismo. Eles acolhem de forma acrítica o que dizem os médiuns, e apesar da boa-fé, são ingênuos. Eles também povoam o movimento espírita e fazem muitos estragos quando se tornam divulgadores do espiritismo, de alguma forma, porque projetam para as pessoas uma imagem muito diferenciada da proposta racional espírita.


Outros autores fizeram tipologias de espíritas em outros momentos históricos, como é o caso de Leopoldo Machado. Espero poder retornar ao tema no futuro, porque o texto já está bem extenso.

4.2.14

AS PESSOAS COMUNS PODEM LER A BÍBLIA?



O "Livro dos Mártires" é uma obra simpática à reforma que, além da história dos mártires do cristianismo primitivo, narra os detalhes dos debates entre católicos (chamados de papistas) e reformadores da igreja (chamados de protestantes) que levaram principalmente estes últimos à fogueira, na Inglaterra e Escócia dos séculos XV e XVI.

Muito curioso o debate inquisitorial que se estabeleceu entre o Mestre Latimer e Buckenham, prior dos Beneditinos. À época, católicos romanos resistiam à ideia de permitir a tradução da Bíblia do latim para os idiomas usados na Europa. Latimer, percebendo os abusos dos príncipes da igreja, tornou-se simpatizante desta proposta reformista. Buckenham tenta demovê-lo deste ponto de vista (o que é raro no livro, de ordinário o que se buscava era a constatação da heresia, sem debates, para enviar hereges para o poder temporal, que lhes daria a fogueira, às vezes com um toque de sadismo da parte de padres e militares, às vezes não).

Buckenham desenvolve um argumento curioso:

“Primeiro apresentou-se Buckenham, o prior dos beneditinos, declarando que não era oportuno que as escrituras fossem apresentadas em inglês para evitar que os ignorantes corressem o risco de abandonar a sua vocação. O lavrador, por exemplo, quando tomasse conhecimento de que no evangelho “Nenhum homem que, tendo posto as mãos no arado, olha para trás é apto para o reino de Deus”, poderia talvez abandonar sua vida de lavrador. Da mesma forma, o padeiro, quando soubesse que um pouco de fermento altera a massa toda, poderia eventualmente deixar nosso pão sem nenhum fermento, e assim, nossos corpos sofreriam.”

A réplica de mestre Latimer foi irônica, e ridicularizou o exemplo do padeiro. “No mínimo se exigiria que ela (as escrituras em inglês) tivessem uma história muito longa na língua inglesa para permitir que os ingleses ficassem loucos a tal ponto que o lavrador não ousasse olhar para trás e o padeiro deixasse de fermentar seu pão – Toda fala – disse ele – tem suas metáforas e significações figuradas.”

Quinhentos anos se passaram e a igreja católica não foi capaz de impedir as traduções da Bíblia para todo o mundo (felizmente), nem o desenvolvimento das ciências e das filosofias ocidentais, mesmo perseguindo e queimando os tradutores, quando o braço secular o permitia, caçando hereges e constrangendo da forma possível. Contudo, vejo hoje uma sociedade e uma juventude que após os textos virulentos de desconstrução do pensamento cristão pelos niilistas, como Nietzsche, ou pelos socialistas materialistas, como Engels e Rosa Luxemburgo, tem se tornado cada vez mais desconhecedora do pensamento cristão, e quando se arvora a criticá-lo, confunde o literal com o metafórico, entre outros problemas.


Como o pensamento cristão é fundamental para a ética espírita, precisamos incentivar o estudo dos evangelhos nas sociedades espíritas, para que os espíritas não se tornem ignorantes do cristianismo, e, portanto, presas fáceis à argumentação cética e niilista, nem tenham que se abster do uso da razão e das ciências para continuarem espíritas (o que seria o fim do espiritismo proposto por Kardec).

28.1.14

UM GRUPO ESPÍRITA EM OURO PRETO NO FINAL DO SÉCULO XIX

Rua da Escadinha - Ouro Preto-MG. Ao fundo a Basílica do Pilar.

Recebi do Chrystiann Lavarini alguns números interessantes, acessáveis no site do Arquivo Público Mineiro, de um periódico espírita denominado A Caridade. Trata-se de um tabloide publicado pelo Grupo Spirita Antonio de Padua, que funcionava na casa quatro da rua da escadinha, em Ouro Preto-MG.

Os temas tratados são diversos, mas a questão da relação com a Igreja Católica, base da cultura dominante, é marcada. Os autores discorrem sobre a reencarnação, sobre o pensamento de Kardec, sobre mediunidade de curas e traduzem trechos da Revista Espírita (a francesa, publicada inicialmente por Kardec), entre outros assuntos, inclusive não ligados ao espiritismo. 

Chamou-me a atenção ser um periódico de 1898, período em que a capital do estado estava se mudando para Belo Horizonte, que foi oficialmente inaugurada em dezembro de 1897. Eu desconhecia grupos espíritas oficiais nesta época, na região da capital, embora no início da próxima década (1902), houvesse a fundação da União Espírita de Belo Horizonte, que se tornou Federação Espírita Mineira em 1908.

Apesar de histórico, o movimento espírita de Ouro Preto estagnar-se-ia e a nova capital mineira continuaria a ser terra fértil para a criação de novos grupos e sociedades espíritas. Ignoro números oficiais mas conheço pessoalmente apenas um grupo espírita na cidade, contra centenas em BH, passado pouco mais de um século.

Felipe Vieira Batista Silva escreveu para a ANPUH, um artigo analisando um dos quatro números disponíveis do jornal A Caridade. http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340733225_ARQUIVO_AMPUH2012-Felipe.pdf 

Influenciado pelas ideias de Bourdieu, Felipe se detém na análise das relações de poder entre o espiritismo nascente e o catolicismo majoritário. Seus olhos se detém no texto que transcrevo abaixo, que percebe como um pedido real de intervenção do clero e da polícia a práticas supersticiosas toleradas pela igreja, mas vejo de forma diferente.

À época, com a publicação do novo código civil, "o espiritismo, a magia e seus sortilégios, o uso de talismãs e cartomancias...." foi criminalizado. O autor de "A Caridade", possivelmente se ressente de denúncias do clero, quando escreve:

"Entretanto os padres, que tanto mal dizem do Spiritismo, admittem e toleram semelhantes praticas abusivas, que são exercidas por mulheres, que vão todos os dias ao confissionario. E’ necessário, pois, que a sociedade se acautele e promova os meios afim de exterminar do seio mais esse cancro do fanatismo. Será melhor que os confessores pela influencia que exercem sobra as suas confessadas, as aconselhem, prohibindo mesmo a pratica desses responsos e sortilégios, tão condemnados pelo Divino Mestre. 

Tambem poderá vir em nosso auxilio a policia, syndicando desses factos que tantos males já tem causado a sociedade. 

Por nossa parte havemos de combater essas supertiçoes e sortilégios: e se não tiverem um paradeiro voltaremos mais circumnstanciadamente ao caso (A CARIDADE, 1898, n.  p.4). 

Felipe entende que é uma luta de poder entre religiões, uma tentando deslegitimar a outra, e não uma "discussão defensiva dos princípios que regem as práticas católicas e/ou espíritas". Não me parece que isto está acontecendo neste trecho, que apresenta uma ironia. O autor do artigo em A Caridade denuncia de forma sutil as incoerências e abusos do uso da lei do código civil, que deve ter sido utilizada pelas autoridades eclesiásticas, junto à polícia, para a repressão da prática espírita na época. Infelizmente, são necessárias novas fontes para o devido embasamento desta suposição, mas a recuperação do documento pelo Arquivo Público Mineiro e sua disponibilização em meio digital nos traz mais conhecimento da história do espiritismo nas Minas Gerais

Quem quiser ler A Caridade tem acesso direto pelos links abaixo:

http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/viewcat.php?cid=20722 
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/viewcat.php?cid=20726  
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/jornaisdocs/viewcat.php?cid=20720

25.1.14

SOFRIMENTO, MORTE, SOBREVIVÊNCIA E CORAGEM

Kübler-Ross e uma paciente


Acabo de ler, no meu Kindle, “A Roda da Vida”, de Elisabeth Kübler-Ross, uma autora suíça que ficou conhecida internacionalmente por seu livro “Sobre a morte e o morrer”. Fiquei profundamente tocado com a leitura.

O livro é uma autobiografia corajosa, na qual Elisabeth nos conta sua jornada em busca de si-mesma, do nascimento até o que poderia chamar decrepitude do corpo.  Considero a autora corajosa, porque ela não se preocupa muito com o que vão pensar dela. Ela relata suas vivências e experiências, suas escolhas, suas lutas, seus erros e equívocos e as crenças às quais se entrega, mesmo algumas que me soaram como ingênuas.

Esta franqueza clara de Elisabeth chocou o mundo em que viveu. Ela sempre viveu anos à frente de sua época, e apesar de sua péssima experiência com alguns cristãos, ela sempre viveu estritamente dentro da proposta do cristo.
Ela nos fala da frieza do coração dos homens, que ela enfrentou a vida toda, e começa com um pai controlador e rigorosíssimo, que ela aprendeu a compreender e amar, sem nunca deixar subjugar seus ideias superiores. Da Suíça, oásis de tranquilidade na Europa convulsionada pela segunda grande guerra, Elisabeth, ainda jovenzinha, vai se voluntariar para ajudar os poloneses e outros países destruídos pela insanidade dos governos europeus, sem ter nem um travesseiro onde recostar a cabeça.

Maydanek é um campo de extermínio, onde a Dra. Ross vai aprender sobre a sombra dos seres humanos com a judia Golda, que sobreviveu por um triz do holocausto. Golda ensina a ela que todos temos um lado negro, e que poderíamos estar no lugar dos que trabalharam sob ordens para a máquina da morte dos nazistas. A compreensão de Golda é uma grande lição para a humanidade, um foco de luz em um momento de profundas trevas.

Nas paredes das câmaras de gás, Elisabeth viu borboletas, imagem que  irá acompanhar o leitor ao longo de sua trajetória. Por que pessoas diante da morte resolvem desenhar borboletas nas paredes de seu local de execução?





Em alguns momentos, depois de enfrentar a intolerância de sua época, encontramos a Dra. Ross, que está à beira dos leitos dos moribundos, auxiliando-os a superar medos, ódios, problemas que os fazem sofrer. Dos leitos aos seminários, sempre mal vistos pelo tabu da morte, que apavora o imaginário dos médicos e hospitais, sempre preocupados em fazer viver o corpo, e muitas vezes negligentes com a alma-mente de seus pacientes, e com a deles própria.

Mais um pouco e vemos a Dra. Ross às voltas com pacientes que relatam experiências de quase morte, as que notabilizaram o Dr. Raymond Moody Jr. Mais um pouco e surgem as experiências mediúnicas e o projeto para lidar com a AIDS, no seu pior momento, em que ela foi percebida pelo povo americano como o “câncer gay”, e todos passaram a temer os aidéticos, da mesma forma que eram temidos os leprosos no tempo de Jesus (ou talvez pior).

O livro já está no mercado há muito tempo, e fiquei me perguntando por que ninguém fez uma resenha dele no Reformador, por exemplo. Pelo menos, não encontrei com os instrumentos de busca nada sobre a Dra. Ross.  Acho que os espíritas vão detestar (e com razão) a dependência dela com o cigarro, a mediunidade paga, as fraudes mediúnicas da qual é vítima, a crença em fadas, e muitas outras pequenas coisas que aparecem no livro. Contudo, acho que nenhum de nós deixará de admirar a posição dela contra a eutanásia, e a forma corajosa como ela ajuda as pessoas a entenderem o sofrimento como uma lição a ser aprendida, sua humildade, ao descobrir professores em todas as classes sociais, aprender com eles e ensinar suas lições, seu destemor ante o risco real da violência da Europa pós-guerra, das doenças e mesmo do sofrimento da morte. Admirei a forma com que ela lidou com a violência a que foi submetida sistematicamente, por pessoas que se auto-intitulavam cristãs, mas que se deixaram levar pelo medo e pelo preconceito. Ela é uma daquelas pessoas raras, que nos faz ter orgulho de sermos humanos. Adorei também a leitura que ela faz da supervalorização dada a conhecimentos científicos. Sem desmerecer a ciência (bem, sou ou fui cientista e gosto muito dela), ela nos mostra que há momentos em que as teorias e técnicas por si só não não têm respostas para os nossos problemas, como os cientistas podem ficar míopes, por apenas serem capazes de visualizar suas teorias e conhecimentos, frágeis ante novos desafios que surgem. Gostei também de sua indignação contra os burocratas, mesmo que seja exagerada em determinados momentos, o que é típico das pessoas obstinadas e cheias de energia como ela. Adorei também sua denúncia da cisão de comportamento de alguns religiosos, que, como dizia Jesus em seu tempo, dizem “Senhor, Senhor nas esquinas, mas devoram a casa das viúvas”.


Eu não quero contar mais sobre o enredo, porque ela escreveu um livro cheio de surpresas, similar a um romance de suspense, e quanto mais eu falar, mais atrapalho a experiência do leitor. Peço aos espíritas que se contenham para ler o livro, porque mesmo tendo coisas que vão de encontro aos nossos valores, e que não apoiamos, ele fala de uma grande e teimosa alma, digna da nossa admiração em um mundo contemporâneo cheio de relativismos vãos, consumismo e narcisismo.

22.1.14

JOVEM UNIVERSITÁRIO FALA DE UM LIVRO DE HERMÍNIO MIRANDA



Capa do livro com foto de George Washington Carver

Cada dia mais eu gosto do lado luminoso da internet. Hoje eu trouxe para vocês o Lucão, jovem universitário, sem qualquer ligação com o Espiritismo, mas também sem preconceitos contra os espíritas, que está comentando o livro "O Pequeno Laboratório de Deus", de Hermínio Miranda. 

Minha velha amiga, que já fez a grande viagem, Dona Ada Eda, adorava este personagem, cuja história leu antes de Hermínio publicar seus artigos e depois o livro.


21.1.14

PÚBLIO CORNÉLIO LÊNTULUS, VOCÊ EXISTIU?



"Roba de Timbério" - Frase do Dr. Axel Munthe, atribuída aos nativos, em O Livro de San Michele

Há alguns anos estávamos na plenária da LIHPE (Liga de Pesquisadores do Espiritismo) quando um dos participantes pediu informações sobre a existência de Públio Lêntulus, personagem de Emmanuel em "Há Dois Mil Anos", que teria sido sua encarnação à época de Jesus.

Baseado em uma série de arrazoados de um amador, estudioso da história romana, ele defendia a inexistência de Públio Lêntulus, com base na falta de registros. Dizia, se não me falha a memória (o historiador amador), que os nomes dos senadores romanos eram todos conhecidos e que o personagem não existia. A carta de Públio Lêntulus (a que descrevia Jesus), muito veiculada, parecia falsa, e ele explicava suas inconsistências.

Trabalhei muitos anos como pesquisador nas universidades, e sei que as áreas de conhecimento são muito complexas, ainda mais a história, que está sempre sendo objeto de descobertas e estudos. Contudo, eu não tinha formação para debater com os críticos, e não encontrei, nos estudos superficiais que fui capaz de fazer, informações que fizessem avançar o debate, então fiquei no meu canto, à espera de coisa melhor. A bem do espiritismo, aceitei que Emmanuel poderia ter criado um personagem, posto que se trata de um romance, já que as evidências à sua existência não pareciam favoráveis. Isso não diminuiria a contribuição e as inumeráveis evidências fornecidas através da mediunidade de Chico Xavier.

Por outro lado, já havia participado de outras discussões, onde o aparente não é como se mostra. História antiga é uma ciência que exige base, conhecimento de meios e fontes, muitas fontes. Os grandes autores da universidade que conheço aprendem bem rapidamente a evitar afirmações bombásticas, a dizerem-se donos da verdade ou a fazerem afirmações universais incondicionais, porque sabem que basta uma fonte, um dado, uma pequena pesquisa, para levar ao chão uma teoria que na verdade é um castelo de cartas. Por isso, os grandes pesquisadores procuram ser cuidadosos com seus temas e parcimoniosos (parcimônia é considerada uma virtude pelos pesquisadores, aqui em Minas se diz que "quem fala muito, dá bom dia a cavalo"). Eles afirmam suas conclusões com base nas informações que têm, e deixam à comunidade científica o trabalho de corroborar ou falsificar (no sentido de encontrar evidências contrárias) o que argumentam. Por sinal, desejam pares que se interessem por seus problemas, com quem possam dialogar, apesar dos orgulhos e vaidades do gênero humano. 

Finalmente, parece que um historiador simpatizante da possibilidade da veracidade da informação de Chico Xavier, empreendeu suas energias e tempo para buscar novos dados para esta questão. Encontrou novas fontes e informações para cotejarmos com a crítica já publicada. Pessoalmente, gostei do cuidado no relato dos caminhos que ele trilhou até chegar às conclusões lapidadas que fundamentam a tese da existência real de um Públio Cornélio Lêntulus, que poderia, sim, estar na Judeia, tratando de assuntos pessoais, com a autorização do imperador, e que por isso não seria autoridade superior a Pôncio Pilatos, entre outras informações importantes. 

Creio que ainda estamos no meio do caminho, e há muito o que se estudar, mas fico muito feliz em ver o tema avançar realmente com base em pesquisa cuidadosa, e não em arroubos ruidosos.

Remeto o leitor ao seguinte endereço eletrônico para degustar o belo trabalho de Carlos Henrique Nagipe Assunção, e agradeço ao Alexandre Caroli Rocha e ao Geraldinho Lemos a informação da publicação.

17.1.14

COMO FUNCIONA O CÉREBRO DE MÉDIUNS PSICÓGRAFOS? UMA PESQUISA COM NEUROIMAGEM.


Júlio Perez

Há alguns anos, quando discutíamos a pesquisa da mediunidade, provoquei os palestrantes a fazer estudos de associação entre o funcionamento cerebral e o fenômeno mediúnico, mas os participantes não viam nas técnicas disponíveis, como a eletroencefalografia, possibilidades de análise confiável e segura para a proposta. O que havia disponível eram estudos de caráter especulativo, como o livro de Jaime Cerviño, publicado pela FEB (Além do inconsciente), os ensaios de Jorge Andréa ou descrições feitas por espíritos, pela via mediúnica, como os trabalhos de André Luiz (Missionários da luz, Nos domínios da mediunidade). São contribuições importantes, mas que necessitariam ser postas em teste, para consolidação ou reconstrução do que se acha proposto.

Passados os anos o conhecimento do funcionamento do cérebro e o desenvolvimento de novas técnicas de neuroimagem possibilitaram o desenvolvimento da neurofisiologia. Com um conhecimento maior do funcionamento cerebral , o acesso a aparelhos de neuroimagem para pesquisa acadêmica e uma nova cultura de pesquisa no Brasil, a questão voltou à cena. O que acontece com o cérebro quando, por exemplo, um médium psicografa? O padrão neurofisiológico e as áreas cerebrais afetadas seriam as mesmas de uma pessoa que escreve?

Os doutores Júlio Peres e Andrew Newberg publicaram um artigo com alguns dos achados feitos em uma pesquisa de neuroimagem com dez médiuns: cinco considerados menos experientes e cinco considerados mais experientes, com a técnica SPECT, considerada mais adequada ao tipo de tarefas que foi exigido dos médiuns. Eles tiveram seus cérebros  estudados enquanto escreviam normalmente, e quando em transe, psicografando. O artigo mostra as diferenças de fluxo sanguíneo e outras descobertas encontradas, e discute as diversas explicações possíveis aos achados.

Quem se interessa pelo tema, não deve deixar de ler este trabalho, que saiu publicado agora em língua portuguesa, na Revista de Psiquiatria Clínica da USP.  O acesso via Scielo é o link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832013000600004&lng=en&nrm=iso Ele também tem um link para baixar o artigo em formato pdf, mais confortável aos olhos do leitor.