“Há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus.” Allan Kardec, O livro dos espíritos, questão 597 a.
Quando o cãozinho Gêra chegou na casa dos Lima, entendeu que havia conquistado um novo território. Macho, movido por seus instintos, começou a demarcar seu território. Urinou pelos quatro cantos da casa, molhou os pneus dos automóveis e deixou bem claro que aquele lugar e todos os que nele habitavam pertenciam a ele.
Como eram bons os Lima! Eles davam comida, faziam carinho e realizavam com alguma limitação, mas corretamente, o seu papel de servi-lo. Eles reconheciam que o território era de Gêra, e por consequência, Gera os aceitava e os desejava.
Um dia, Gêra ficou sem entender por que seus servos não o obedeceram. Eles o pegaram à força e o mergulharam em uma substância gelada, cobriram seu pelo de bolhas e feriram seu olfato com um cheiro forte que ele desconhecia. Contudo, como eles o secaram e deram-lhe comida e água, aquela má impressão passou. Gêra ficou confuso. Os Lima são bons ou maus? Noutro dia, os Lima o levaram a outro ser humano esquisito, com um jaleco branco, fora do seu território. Fora abduzido por seus servos, sequestrado! Eles o chamavam de veterinário. O veterinário o imobilizou, colocou uma máscara desconfortável em sua boca e mexeu em todo o seu corpo. Que desconfortável e que desrespeitoso! Depois, que crueldade, ele o feriu! Gêra não pode acreditar que seus servos permitiram que um estranho o torturasse! Sentiu uma pontada dolorosa entrando corpo adentro! Se eles sabiam que o veterinário o iria torturar, então Gêra não teve dúvidas, eles eram sádicos, malvados, perversos. Chorou imensamente por ter tido essa má sorte.
Passados alguns banhos, vacinas e remédios (que gosto horrível) Gêra entrou em uma crise existencial canina, porque pensara que seus servos eram bons, e de fato eles atendiam suas necessidades e até lhe davam carinho, brincavam com ele, mas ao mesmo tempo permitiam que ele padecesse aqueles sofrimentos! Foi quando surgiu o gosto pela filosofia.
O cão filósofo começou a pensar e inicialmente apontou a contradição dos Lima. Como poderiam ser bons os Lima, se o faziam sofrer? Se os Lima o faziam sofrer, eram maus, sádicos, não poderiam ser bons. A contradição entre a maldade e a bondade dos Lima o levou a uma conclusão lógica: os Lima não existiam. Eram uma ilusão canina. Os cães, em sua fragilidade, haviam criado a ilusão do Dono, em sua história e, ele, fora ludibriado por esta fantasia milenar de sua espécie.
Gêra passou a viver como se os donos não existissem. Não brincava mais com eles, mas sempre comia a comida e água que apareciam. Entrou em um estado de indiferença, ataraxia. Tinha certeza que a comida chegava até ele por acaso, que ela fazia parte de seu território, que as sensações desagradáveis, como o banho, eram fruto de algum mecanismo fisiológico de seu corpo canino, e suspeitava que fosse algum tipo de alucinação que era oriunda do cérebro, afinal, donos não existiam.
Para dar uma contribuição à sociedade, resolveu explicar aos outros cães sobre a alucinação dos donos, e uivava à noite, tentando explicar a verdade o mais longe que pudesse. Às vezes ouvia o cão do território vizinho dizer que ele estava enganado, mas não se deixava convencer, nem abater e estava aberto a discussões, com seus latidos e ganidos. Como era difícil ser um cão esclarecido!