29.4.17

MEMÓRIA DA CASA ESPÍRITA



Sala de leitura da Biblioteca do Congresso Norte Americano. Ao fundo, as estantes com livros. Com a digitalização e a internet, como será no futuro?



Recentemente, um irmão muito querido de nossa casa espírita resolveu pedir à diretoria para fixar um quadro com a foto de Célia Xavier em um de nossos corredores ou saguão de maior trânsito e o retirasse da biblioteca, que fica bem escondida, "nos porões" da Associação. Seu objetivo era nobre: que as pessoas conhecessem mais a história da casa. 

O primeiro questionamento, é se ao ver o quadro, talvez com o  nome de Célia Xavier, se as pessoas entenderiam do que se trata. Em um país como o nosso, marcado pelo sincretismo, talvez pudessem entender que se tratava de um nicho, ou fazer associação ao que seria um santo católico, e passar a orar para ela neste lugar, descaracterizando nosso objetivo. É o que aprendi no curso de ciências políticas como "efeitos não esperados de uma política".

Contudo, a demanda do amigo tem razão de ser, por diversos motivos. Uma casa é um grupo de pessoas que se associa com objetivos e disposição para agir a partir de princípios. Para que ela não se perca no rumo da história, é necessário conhecer e compartilhar sua razão de ser e sua ética. Senão, as pessoas começam a agir de acordo com seus próprios princípios e entendimentos, transformando a organização em uma "terra de ninguém", um amontoado de grupos e reuniões, cada um trabalhando com uma finalidade, ética e princípios individuais e, pior, até contraditórios entre si.

Com o tempo, as coisas mudam. As demandas dos frequentadores se alteram. A economia se transforma. A rotina das pessoas fica diferente. As leis mudam. As pessoas na direção vão se sucedendo. Surgem novos projetos. Aparecem novas propostas. E a gestão, principalmente, fica no dilema entre o que deve ser mudado e o que não se muda, por ser princípio, base da identidade da organização.

Quando falamos da memória das organizações, creio que desejamos duas coisas. A mais importante é entender como, por que e para que elas foram criadas, quais são seus princípios, aquilo que não deve ser mudado, e o que foi sendo realizado e transformado no passar do tempo. A segunda coisa é reconhecer o trabalho de determinadas pessoas, que se dedicaram, que conseguiram ganhar notoriedade pelos resultados de seu trabalho, por suas ideias, pelo apoio aos demais membros da associação, ou seja, por ter feito a diferença.

Os homens espartanos lutavam corajosamente para não ir ao Letes, o rio onde as almas seriam esquecidas. Eles atingiam seu propósito de vida se seus atos fossem contados às novas gerações. Alguns tiveram suas histórias transformadas em lendas, e seus feitos foram idealizados ao infinito e eles se tornaram mais heróis que homens, semi-deuses. Não devemos fantasiar heróis no movimento espírita, mas compartilhar entre nós a experiência de homens e mulheres que construíram as organizações que nos encontramos.

Uma organização sem história é uma casa vazia, que todo novo morador se sente no direito de decorar e reformar a seu gosto. Uma organização com história é uma comunidade, que o novo membro passa a ter que conhecer para interagir, que os associados passam a ter que avaliar com fundamentação antes de decidir qualquer coisa.

A falta de história, portanto, não se resolve apenas com uma fotografia no corredor. Ela demanda informação, sentido e propósito. É um conjunto de ações coordenadas com a finalidade de compartilhar as histórias, valores, regras e tudo o mais que compõe o que o centro espírita é, ou se tornou no passar do tempo. Pode envolver palestras, treinamentos, exposições, livros, folhetos, filmes, entrevistas, youtube, sites, e diversas outras estratégias de comunicação. Não se resolve com um ato isolado, ou o esforço de uma pessoa. Só atinge maioridade, quando se torna um propósito do coletivo da associação, com o empenho do seu corpo diretor, no passar dos anos.

Quando Kardec propôs em seu projeto para o espiritismo, no século XIX, que o movimento precisava de um museu, fico pensando que ele já intuía a importância de se conhecer a trajetória dos centros e do movimento espírita, uma trajetória que não se reduza a inaugurações de prédios ou paredes com fotos de diretores, tão ao gosto da administração pública do nosso país.

Para terminar com uma provocação, respeitosa, gostaria de inverter a pergunta do irmão. Ele pergunta por que a foto da fundadora está na biblioteca-museu, onde "ninguém vai". Acho que o lugar das imagens do passado deve ficar mesmo em um biblioteca-museu, onde se tenha acesso não apenas à imagem, mas à informação associada a ela. Minha pergunta é por que a biblioteca-museu, diferentemente de muitas outras casas, está escondida nos porões da associação.

25.4.17

ANTONINA LEVA BÍBLIAS PARA A SALA DE AULA


Antonina tinha um novo desafio: a aula prevista era sobre a Bíblia. Ela imaginava que seus alunos tinham contato com o livro, porque viviam em uma região com grande influência dos evangélicos.

Ela separou então, para a aula, diversas Bíblias. Ela queria dizer que não existia apenas uma tradução, mas diversas traduções, e diferenças no texto. Levou uma Bíblia de tradutor católico, do latim, outra de tradutor protestante, do latim, a Bíblia de Jerusalém e a Bíblia do Peregrino, uma das Testemunhas de Jeová, intitulada tradução do Novo Mundo.

Seus alunos estavam indóceis, então ela começou sua aula com um “brainstorming” para verificar o que os alunos conheciam. Ela disse:

- Vocês vão me dizer a primeira coisa que vêm à mente quando eu disser uma palavra, tudo bem?

- Qual palavra, professora?

- A palavra é Bíblia!

Então todos os nove alunos começaram a falar: Mateus! Deuteronômio! Esdras! Apocalipse!

Eles conheciam livros que ela mesma não conhecia... Com certeza não aprenderam na escola. Antonina engoliu seco, mas continuou. Ela foi explicando a composição e a formação da Bíblia, quando mostrou os diversos livros que havia levado.

Eles folhearam, interessados, vendo que havia diferenças.

Um dos alunos falou:

- Na Bíblia das Testemunhas de Jeová, o livro Apocalipse foi traduzido com o nome Revelação, porque a palavra quer dizer isto em português.

Ela mostrou a “Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas”, a Bíblia das Testemunhas de Jeová.

- Deixa eu mostrar para você! Disse o aluno.

Ele localizou rapidamente o último livro da Bíblia e mostrou, triunfante:

- Olha aqui! Revelação!


Com o fim da aula, Antonina ficou pensando, admirada. Eles já conheciam muitas coisas sobre a Bíblia. Como haviam aprendido? Qual seria a extensão do conhecimento? Seria a apreensão das histórias que compõe o livro considerado sagrado? Estas histórias seriam capazes de transmitir os valores cristãos, ou seriam vistas apenas como os filmes de cinema, uma realidade ficcional, distante e sem conexão com as nossas vidas? Eles são, mesmo, capazes de aprender muitas coisas!

8.4.17

A FORMAÇÃO DO EVANGELIZADOR OU EDUCADOR ESPÍRITA DA INFÂNCIA





Muitos colegas dos tempos de juventudes espíritas, agora com os cabelos grisalhos, estão escrevendo sobre suas experiências, vividas no movimento espírita, tentando repassá-las para as novas gerações e as direções de trabalhos.

Tive duas experiências importantes no passado: fui professor de desenvolvimento de recursos humanos e fui coordenador de evangelização infantil para crianças em situação de vulnerabilidade social, em uma unidade nossa próxima de muitas favelas da Belo Horizonte dos anos 80. Desde então, nossa casa tem um problema crônico de formação de pessoas para este tipo de tarefa, não sei dizer o quanto este problema atinge os demais centros espíritas.

Há uma discussão atual sobre o nome a ser dado. Evangelização sugere apenas o ensino do evangelho e tem um pé na prática eclesiástica, então o nome educação espírita parece bem mais amplo e adequado. Contudo, isto não significa abandonar o ensino dos Evangelhos e dos princípios que embasam fortemente a ética espírita. E também, penso que a mudança de nomes não é algo que deva se transformar em “cavalo de batalha”, porque já vi as pessoas discutindo para mudar palavras, sem qualquer preocupação com a alteração da prática. Kardec dizia que “para ideias novas, palavras novas”, então esta mudança deve ser o objeto central das nossas preocupações, e não discutir para usar termos novos para conceitos velhos.

Nossa questão neste texto, contudo, é: como preparar evangelizadores ou educadores espíritas para o exercício de sua prática?

Tenho visto a realização de cursos intensivos para a preparação deles. Contudo, é uma atividade bem complexa, que não se resume a um curso de final de semana. Eles trabalham com a educação de crianças em faixas etárias e condições socioeconômicas muito diferentes. Para formar um professor de educação infantil nas escolas em geral, é necessário o magistério ou a graduação em pedagogia. Nosso trabalho é voluntário e pontual, então não há como exigir esta formação dos interessados, mas é possível realizar uma série de ações complementares para o seu desenvolvimento na tarefa.

No Lar Espírita Esperança, em Belo Horizonte, implementamos nos anos 80 uma série de ações que visavam o desenvolvimento do corpo de educadores espíritas, que foram.

  1. O horário da atividade foi expandido. Evitamos que os voluntários chegassem “correndo”, na hora da aula e saíssem “voando” após a entrega dos alunos aos pais.
  2.  Reuníamos o grupo sessenta minutos antes, não apenas para uma prece e avisos gerais, mas para um pequeno estudo ligado à evangelização. Os temas eram teóricos ou práticos e variados. Podiam tratar de alguma aula bem sucedida, alguma questão psicológica no relacionamento professor-aluno, algum tema pedagógico. Era feito pelo coordenador, mas podia contar com a colaboração de algum convidado ou membro do grupo. Assim o grupo começava a se tornar o que os cientistas sociais chamam de “comunidade de prática”.
  3.  Os novos educadores não iniciavam sua prática em uma sala de aula fixa. No primeiro ano, eles ficavam por dois meses em cada sala de aula (tínhamos turmas divididas por faixas etárias), observando como os educadores planejavam suas aulas, como lidavam com as crianças, e colhiam experiência. Ao final dos dois meses, eles eram responsáveis por uma aula na turma em que "estagiavam". A cada quinze dias, os “estagiários” se reuniam com a coordenação para compartilhar suas experiências e seus problemas. Nesta conversa rápida de trinta minutos, ia ficando mais claro se eles se identificavam com o trabalho, quais suas preferências e suas dúvidas e demandas. Esta conversa poderia gerar temas para a reunião anterior às aulas.
  4. Como os voluntários tinham dificuldade em reunir-se durante a semana para planejar suas aulas, eles se reuniam no dia da tarefa, após a saída dos alunos, para preparar as próximas aulas. Trabalhavam em conjunto, podiam conversar sobre os alunos, seus acertos e erros, seus problemas em sala de aula. Com esta prática, os educadores mais experientes interagiam com os novatos e os “estagiários”. Tinham acesso a todo o material pedagógico (não era muito) disponível na unidade e podiam usar os recursos da mesma para preparar as aulas. Uma hora era mais que suficiente para esta fase do trabalho.
  5.  No meu primeiro ano como evangelizador, meus colegas mais experientes tinham por prática fazer os planos de aula. Eu aprendia a técnica com eles, e a usei muito depois, até mesmo na minha experiência como professor universitário. Da forma que era elaborado, o plano permitia a visualização do tema, dos conteúdos, das estratégias didático-pedagógicas a serem usados, da distribuição das atividades pelo tempo e de como avaliar sua apreensão pelas crianças.
  6.  Como registrávamos os planos em cadernos, eles passaram a ser usados como material de consulta por outros evangelizadores. Infelizmente eu os perdi nas muitas mudanças que fiz ao longo da vida. Por esta razão tenho publicado no Espiritismo Comentado as histórias de Antonina e de outros educadores, mesmo sabendo que ainda não conseguimos atingir o público-alvo: os educadores infantis de espiritismo.
  7. Oferecíamos um curso de curta duração para formação geral pelo menos uma vez por ano. Uma limitação era que visávamos apenas os jovens da casa. Hoje, neste tipo de iniciativa, há uma interação entre casas diferentes na capital de Belo Horizonte, e públicos diferentes, como os frequentadores de grupos de estudo, ESDE e até mesmo reuniões públicas.
  8. Na capital mineira, hoje, há eventos voltados para educadores experientes. Infelizmente, muitos deles não veem a necessidade de participar. É importante que a programação destes eventos deixe claro o que eles irão agregar à sua experiência, para que não reajam com o velho preconceito de que não irão aprender nada, que é “mais do mesmo”.
  9. Montamos grupos de estudo de voluntários para desenvolver material sobre diferentes estratégias de educação. Chamou-se Projeto Evangelizar. Um grupo preparou um trabalho sobre música nas aulas. Outro grupo trabalhou com fantoches, com teatro de sombras e com como preparar material de apoio pedagógico em geral. Um terceiro grupo preparou um trabalho sobre planejamento de ensino. Um quarto grupo ensinou sobre jogos e recreação... Já nem me lembro mais de quantos trabalhos foram feitos. Ao final da elaboração os membros do grupo apresentavam ao corpo de educadores da Associação Espírita Célia Xavier para que o conhecimento circulasse e atingisse seu objetivo.
  10. O Professor Raul Teixeira, de Niteroi – RJ, em sua pós-graduação teve contato com a “elaboração de objetivos de ensino”, de Mager e Pipe (e outros autores), e fez uma oficina com todos os que trabalhavam com educação (infância, juventude e adultos) em nossa casa espírita. Os autores mudavam o foco do planejamento do ensino para o planejamento da aprendizagem, e discutiam a articulação entre objetivos gerais (de planos) e objetivos específicos, técnicas de escrita de objetivos, entre outros.
  11. Observamos que a aprendizagem das crianças em geral, e principalmente das crianças em situação de vulnerabilidade social era baixa. Pensamos à época em fazer uma programação mais voltada à conexão entre o espiritismo e a vida infantil, que uma adaptação do roteiro de ensino do espiritismo para adultos.

Alguns dos voluntários desta época continuam na tarefa até hoje, levaram sua experiência para onde foram, para outras casas espíritas, para outras cidades... Creio que hoje há muito o que agregar à experiência de trinta anos atrás. Pedagogia de projetos, construtivismo, novos recursos com a revolução da informática, barateamento de publicações, surgimento de novas editoras espíritas, aumento da formação superior nos meios espíritas...


O mais importante é que a educação espírita infantil não seja um mero improviso, que não seja uma mera exposição ou um esquema padrão de aulas, que ela envolva as crianças e que crie laços entre elas e a casa espírita. Que se pense não em treinamento de educadores, mas no seu desenvolvimento continuado através de ações diversificadas e na construção e reconstrução do conhecimento não formal através das gerações. Não sei se nossa experiência é útil a outras casas, em outros lugares, mas sei que há muito o que ser feito e que precisa ser bem feito.