Sala de leitura da Biblioteca do Congresso Norte Americano. Ao fundo, as estantes com livros. Com a digitalização e a internet, como será no futuro?
Recentemente, um irmão muito querido de nossa casa espírita resolveu pedir à diretoria para fixar um quadro com a foto de Célia Xavier em um de nossos corredores ou saguão de maior trânsito e o retirasse da biblioteca, que fica bem escondida, "nos porões" da Associação. Seu objetivo era nobre: que as pessoas conhecessem mais a história da casa.
O primeiro questionamento, é se ao ver o quadro, talvez com o nome de Célia Xavier, se as pessoas entenderiam do que se trata. Em um país como o nosso, marcado pelo sincretismo, talvez pudessem entender que se tratava de um nicho, ou fazer associação ao que seria um santo católico, e passar a orar para ela neste lugar, descaracterizando nosso objetivo. É o que aprendi no curso de ciências políticas como "efeitos não esperados de uma política".
Contudo, a demanda do amigo tem razão de ser, por diversos motivos. Uma casa é um grupo de pessoas que se associa com objetivos e disposição para agir a partir de princípios. Para que ela não se perca no rumo da história, é necessário conhecer e compartilhar sua razão de ser e sua ética. Senão, as pessoas começam a agir de acordo com seus próprios princípios e entendimentos, transformando a organização em uma "terra de ninguém", um amontoado de grupos e reuniões, cada um trabalhando com uma finalidade, ética e princípios individuais e, pior, até contraditórios entre si.
Com o tempo, as coisas mudam. As demandas dos frequentadores se alteram. A economia se transforma. A rotina das pessoas fica diferente. As leis mudam. As pessoas na direção vão se sucedendo. Surgem novos projetos. Aparecem novas propostas. E a gestão, principalmente, fica no dilema entre o que deve ser mudado e o que não se muda, por ser princípio, base da identidade da organização.
Quando falamos da memória das organizações, creio que desejamos duas coisas. A mais importante é entender como, por que e para que elas foram criadas, quais são seus princípios, aquilo que não deve ser mudado, e o que foi sendo realizado e transformado no passar do tempo. A segunda coisa é reconhecer o trabalho de determinadas pessoas, que se dedicaram, que conseguiram ganhar notoriedade pelos resultados de seu trabalho, por suas ideias, pelo apoio aos demais membros da associação, ou seja, por ter feito a diferença.
Os homens espartanos lutavam corajosamente para não ir ao Letes, o rio onde as almas seriam esquecidas. Eles atingiam seu propósito de vida se seus atos fossem contados às novas gerações. Alguns tiveram suas histórias transformadas em lendas, e seus feitos foram idealizados ao infinito e eles se tornaram mais heróis que homens, semi-deuses. Não devemos fantasiar heróis no movimento espírita, mas compartilhar entre nós a experiência de homens e mulheres que construíram as organizações que nos encontramos.
Uma organização sem história é uma casa vazia, que todo novo morador se sente no direito de decorar e reformar a seu gosto. Uma organização com história é uma comunidade, que o novo membro passa a ter que conhecer para interagir, que os associados passam a ter que avaliar com fundamentação antes de decidir qualquer coisa.
A falta de história, portanto, não se resolve apenas com uma fotografia no corredor. Ela demanda informação, sentido e propósito. É um conjunto de ações coordenadas com a finalidade de compartilhar as histórias, valores, regras e tudo o mais que compõe o que o centro espírita é, ou se tornou no passar do tempo. Pode envolver palestras, treinamentos, exposições, livros, folhetos, filmes, entrevistas, youtube, sites, e diversas outras estratégias de comunicação. Não se resolve com um ato isolado, ou o esforço de uma pessoa. Só atinge maioridade, quando se torna um propósito do coletivo da associação, com o empenho do seu corpo diretor, no passar dos anos.
Quando Kardec propôs em seu projeto para o espiritismo, no século XIX, que o movimento precisava de um museu, fico pensando que ele já intuía a importância de se conhecer a trajetória dos centros e do movimento espírita, uma trajetória que não se reduza a inaugurações de prédios ou paredes com fotos de diretores, tão ao gosto da administração pública do nosso país.
Para terminar com uma provocação, respeitosa, gostaria de inverter a pergunta do irmão. Ele pergunta por que a foto da fundadora está na biblioteca-museu, onde "ninguém vai". Acho que o lugar das imagens do passado deve ficar mesmo em um biblioteca-museu, onde se tenha acesso não apenas à imagem, mas à informação associada a ela. Minha pergunta é por que a biblioteca-museu, diferentemente de muitas outras casas, está escondida nos porões da associação.