Família
Chegamos ao interior de Minas
Gerais em plena sexta-feira da paixão. Nos anos 1950, mais de 90% da população
brasileira era católica e os ritos e recomendações eclesiásticos eram seguidos.
Neste feriado eram fechados quase todos os estabelecimentos das cidades, e era
amplamente difundida a abstenção do uso de carnes vermelhas e de aves.
O movimento da cidade se parecia com
o de um sábado normal, com o comércio aberto e os bancos e escolas fechados. Os
ovos de chocolate tiveram um ano tímido e amargo. Os problemas com a economia e
a esperança de conseguir uns trocados foram maiores que o apelo da fé e o
ambiente de silêncio respeitoso pela lembrança da crucificação do Rabi tornado
deus pelos interesses dos imperadores romanos do século IV.
Meu sogro sempre nos conta uma
história do passado, com um tom um pouco maroto, no qual ele e os amigos, na
juventude, combinaram com o dono de um pequeno restaurante do interior preparar
carne de boi. O dono se recusou, mas aceitou recebê-los no botequim após a meia
noite. Na hora combinada, eles foram chegando, aos poucos, abrindo a porta
encostada e se assentando para consumir a iguaria. Só depois da meia noite se
ouvia o chiado da carne sendo passada e os amigos felizes, prestes a consumir
uma ceia inesperada. Roma locuta, causa
finita.
A abstenção da carne
A abstenção do consumo de carnes
na sexta-feira da paixão é uma orientação da igreja católica. Procurei as
origens desta prática, mas não encontrei nada conclusivo. O consumo de peixes
(e em uma fonte encontrei também outras carnes de animais como rãs, ostras,
etc.) é justificado por alguns autores em função da etimologia latina da
palavra, que vem de carnis, e que
seria empregada apenas para animais de sangue vermelho. Portanto, nesta
acepção, a abstenção de carne não atingiria peixes, anfíbios e répteis. O blog
Aleteia[1]
dá outra explicação. Diz tratar-se de proibição das carnes de animais criados
sobre a terra (incluindo aves...) e destaca que as carnes eram usadas como objeto
de celebração (o bezerro cevado, da parábola do filho pródigo, por exemplo),
não sendo correto celebrar-se a sofrida morte de Jesus.
A explicação mais comum é que se
trataria de uma espécie de privação voluntária, com a intenção de recordar o
sofrimento de Jesus, da via dolorosa ao falecimento na cruz. Na idade média a
carne vermelha seria um alimento nobre e caro, e sua abstenção tem o sentido de
renúncia. Hoje, a industrialização tornou as carnes bem mais acessíveis,
especialmente em nosso país, onde ela é muito produzida. Há carnes vermelhas de
preços muito variados, ao mesmo tempo em que peixes e derivados podem ser bem
sofisticados e caros. Imagine um cristão que se abstém de carne e consome
caviar, em seu lugar, ou um corte importado de bacalhau. A prática exterior,
portanto, perdeu seu sentido original.
O consumo de bacalhau no Brasil
parece vir da culinária portuguesa, já que em outros países não há qualquer
recomendação do uso desta forma de preparo de peixe e a abstenção da
sexta-feira da paixão. Ouvi rumores que havia interesses econômicos da Igreja
por detrás da recomendação do consumo de peixes, mas não encontrei nenhum
registro disto.
Nem no templo, nem no monte
Quanto mais estudamos, mais se vê
que a abstenção do uso de carnes foi perdendo seu sentido original e seu
contexto. É o risco das práticas exteriores, que se tornam uma espécie de
costume vazio do seu significado original.
Para nós, espíritas, as práticas
exteriores devem ceder lugar à interioridade. Para Jesus, também. Quando
questionado pela mulher samaritana sobre as diferenças de culto exterior entre
judeus e samaritanos[2]
o mestre ensinou:
“Mulher, crê-me que a hora vem,
em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Deus é Espírito,
e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João
4:21-24)
Concluindo
A abstenção da carne, ato
exterior, é pouco importante para os cristãos-espíritas. A data, e o feriado
religioso, cada vez mais são usados para o descanso do trabalho, o lazer e o encontro
com os familiares, assim como outras datas religiosas, cada vez mais vazias do significado
religioso.
Uma vez que entendemos Jesus como
modelo e mestre da humanidade, qual seria o nosso papel, como comunidade
espírita, nesta e em outras datas? Em uma sociedade que vive cada vez mais em
torno do dinheiro, do trabalho e do consumo, talvez haja uma oportunidade para
recordar o Jesus que mostrou de forma marcante que a vida não se encerra na
cruz do Gólgota e um incentivo para reunir-se a família.
[1] http://aleteia.org/2017/03/01/heres-why-catholics-dont-eat-meat-on-fridays-during-lent/
Acesso em 18/04/2017
[2] Os
judeus, na época de Jesus, adoravam a Iavé no Templo de Salomão, em Jerusalém.
Os samaritanos construíram um templo no monte Garizim (ou Gerizim) após o
exílio, que teria sido destruído em 126 a.C., mas cujo local continuava sendo
usado para sacrifícios e cultos.