Há alguns meses meu amigo
Alexandre Caroli me sugeriu a leitura do livro “A Terra da Bruma”, que acabava
de ser publicado em língua portuguesa, depois de um século em inglês e total desconhecimento
por parte do público espírita do nosso país. Conan Doyle ainda é conhecido
apenas como o “autor de Sherlock Holmes”, personagem que continua estimulando
filmes e séries de TV até os nossos dias. Os espíritas conhecem o seu História
do Espiritualismo Moderno (traduzido com o nome de História do Espiritismo), e
talvez conheçam “A Nova Revelação”, publicado pela Federação Espírita
Brasileira.
A Terra da Bruma é uma ficção com
raízes profundas na realidade. Ele gira ao redor de dois ou três personagens
que vão aos poucos conhecendo o Espiritualismo Moderno inglês e europeu, em
princípio, para escrever matérias para um jornal. Céticos, eles vão a diversos
espaços onde a mediunidade é praticada.
Não vou falar muito do enredo,
para não estragar a leitura de quem ainda não o fez. Apenas antecipo que é diferente do texto de suspense de Doyle. Ele parece ter escolhido instituições e situações que desejava apresentar ao leitor e inseriu no enredo. É um livro para quem deseja conhecer mais do espiritismo e do espiritualismo europeus do século XIX, e não para quem deseja um romance de suspense.
O que mais me chamou a atenção no
livro são as diferenças entre o modern spiritualism,
a cultura inglesa e o espiritismo brasileiro. Creio que é uma leitura boa para
quem já conhece bem nosso movimento espírita e a obra de Allan Kardec. Pode
gerar alguma confusão nos iniciantes ou desconhecedores do espiritismo. Vou destacar algumas diferenças:
Mediunidade paga: o autor defende a mediunidade paga, ao contrário
de Allan Kardec, como uma forma do médium poder se dedicar ao desenvolvimento
de sua faculdade e poder atender a um público maior de consulentes. No próprio
livro, Doyle mostra também pessoas que resolvem se fazer passar por médiuns
apenas pelo dinheiro e a ação da polícia inglesa, implacável, mesmo com os
médiuns honestos. Do pouco que conheço da história, apesar de ficção, está
muito próxima do que realmente aconteceu na Inglaterra do início do século XX.
Relação com padres da Igreja Anglicana: A Igreja Católica adotou
uma posição de rechaço ao espiritismo de Allan Kardec ainda no século XIX.
Conan Doyle tem personagens que são padres, possivelmente anglicanos, e que
articulam sua fé cristã à mediunidade. Lembrei-me de pessoas como Dale Owen,
Stainton Moses e Haraldur Nielson. Qual terá sido a posição oficial da igreja
anglicana, uma vez que o modern
spiritualism é visto como uma religião pelos ingleses?
Relações com doutrinas orientais: Doyle apresenta ideias esotéricas
e de origem oriental como aceitas pelos espiritualistas. A doutrina das esferas
celestes e a doutrina dos sete céus (judaica, hindu e cristã medieval), por
exemplo, aparecem na boca de guias e expositores. Eliphas Levi (pseudônimo de
Papus), que chegou a ser lido pelos espíritas brasileiros da primeira metade do
século XX, é referido como uma influência de parte do movimento inglês. Como se
deu a aproximação entre o movimento espírita francês e o movimento
espiritualista inglês com o esoterismo, a teosofia e outras doutrinas
ocidentais de influência oriental?
Interesse em fenômenos da mediunidade de efeitos físicos: Doyle
vive a época posterior às pesquisas de Crookes, mas o Instituto Metapsíquico
Internacional, criado por Jean Meyer, está em seu auge. Gustave Geley é um dos
personagens que aparecem na trama com
nome trocado, e as reuniões de materializações, transportes,
transfigurações, voz direta e outros parecem ser comuns em círculos restritos.
Casas mal-assombradas: como não poderia passar batido, há uma
visita a uma casa mal assombrada, coisa que não é muito valorizada hoje por
aqui como objeto de discussão pelos espíritas (exceção feita ao livro sobre
Poltergeist, escrito por Carlos A. F. Guimarães e Carlos Alberto Tinoco). A
relação do espiritualistas ingleses com os espíritos perturbadores é muito
curiosa.
Preces: As preces estão presentes nas reuniões públicas, onde se
fazia mediunidade pública, ao contrário do que acontece hoje nos centros
espíritas brasileiros. O pai nosso aparece como uma referência cristã, mas há
preces ditadas pelos espíritos. Não me recordo de haver lido fazerem preces
espontâneas, muito comuns em nosso meio.
Maçonaria: Há uma citação da maçonaria na página 90. Parece que
havia uma proximidade entre os maçons e os espiritualistas ingleses, assim como
com os espíritas brasileiros, na mesma época.
Mediunidade curativa: Há um relato de trabalhos envolvendo médiuns
curadores. Não me recordo de menção à homeopatia no livro de Conan Doyle, como
acontecia no movimento espírita brasileiro daquela época.
Cientistas pesquisando fenômenos espirituais: Conan Doyle cita em
diversos momentos do texto cientistas da época interessados nos fenômenos
espirituais. Eles são quase todos conhecidos pelo movimento brasileiro de hoje,
embora estejam sendo lidos cada vez menos. Hoje temos um pequeno número de
cientistas dedicados ao estudo da mediunidade, reencarnação, entre outros
fenômenos, embora haja um grande número de antropólogos de franceses e
brasileiros interessados no espiritismo como movimento.
Hábitos da sociedade inglesa e europeia: Alguns hábitos dos
espiritualistas ingleses nos causam hoje algum desconforto. Frequentar sala de
fumantes, discussões regadas a vinho e agressão física a médiuns farsantes,
buscando retratação pública, certamente seriam vistos como inadequados entre
nós.
O médium como pessoa, e não como santo: Para concluir, acho a visão
que Conan Doyle tem dos médiuns muito próxima à de Kardec. Ele não os endeusa,
não os aproxima à imagem dos santos. Os médiuns ingleses são humanos, talvez
“demasiado humanos”. Eles não leram “O evangelho segundo o espiritismo”, nem “o
livro dos médiuns”, então os personagens não parecem se preocupar com uma
transformação moral, embora não sejam devassos. Gostei muito de uma frase que
Conan Doyle escreveu, após um personagem se incomodar com um médium: “É preciso
separar o homem, da coisa” (pág. 241)
A Terra da Bruma
Arthur Conan Doyle
332 páginas
Zahar
2014
1ª Edição Portuguesa
Encontra-se também em formato de
e-book