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9.11.21

O ESPIRITISMO, O ANTIGO TESTAMENTO E OS ARQUÉTIPOS DE JUNG

Moisés de Michelângelo


Jáder Sampaio


Desde Allan Kardec os espíritas estudam os textos bíblicos, com uma atitude diferente da dos cristãos que a entendem como a “palavra de Deus”, literalmente. Kardec recomenda que se estude a história para uma melhor compreensão do contexto das narrativas e ensinamentos evangélicos na introdução de seu “O evangelho segundo o espiritismo”. Embora pouco tratado, o antigo testamento parte de uma compreensão de um texto e uma religião voltada às mentalidades de sua época, que necessitavam de práticas exteriores, como os sacrifícios, para impressionar a mente da população de então.

Kardec, no capítulo I de “O evangelho segundo o espiritismo”, transcreveu uma mensagem ditada por ‘um espírito israelita”, que vê no antigo testamento o “gérmen da mais ampla moral cristã”, mas comentada de forma restrita, porque senão não teria sido compreendida. Ele explica da seguinte forma:

“Era-lhes necessária uma representação semimaterial, qual a que apresentava então a religião hebraica. Os holocaustos lhes falavam aos sentidos, enquanto a ideia de Deus lhes falava ao espírito. ” (Kardec, Allan. O evangelho segundo o espiritismo, cap 11, item 9)

Na Revista Espírita de 1860, Allan Kardec debate uma questão proposta por um leitor, que entende que os textos das escrituras deveriam ser aceitos como verdades, e pede explicações sobre o caso de Adão não ser visto pelo espiritismo como o primeiro homem da humanidade.

Kardec fala o que hoje entendemos claramente: diversas afirmações que se encontram na Bíblia foram provadas ser falsas, como Josué parando o sol, o mundo criado há apenas 4.000 anos, em apenas seis dias. Ele considera essas explicações como “linguagem figurada”, para a qual é necessária uma interpretação, e que até os teólogos da igreja “se renderam à evidência”.

Nesse texto ele vai ainda se posicionar a favor das ciências naturais como discurso explicativo dos fenômenos naturais, e reduzir o texto do “Gênesis” à condição de conjunto de alegorias bíblicas. Observemos que ao considerá-las como alegorias, e não como mitos, ele reconhece em algum momento o valor explicativo do texto bíblico, talvez a essência das histórias pudesse ser vista como uma narrativa mal contada de algo que realmente aconteceu e foi vivido pelos homens, como o dilúvio.

“Assim falando, cremos servir aos mais verdadeiros interesses da religião. Ela será sempre respeitada, se mostrada de acordo com a realidade e quando não a fizerem consistir em alegorias cuja realidade o bom-senso não pode admitir.” (Kardec, Allan. Os pré-adamitas, Revista espírita, 1860. 

Outro ponto que gostaria de desenvolver nesse texto, diz respeito aos livros de caráter mais histórico da Bíblia. Não é possível comparar os textos sobre os eventos acontecidos àquela época, com os rigores da história contemporânea. Os chamados “profetas anteriores”, que são os livros de “Josué, Juízes, Samuel e Reis”, também considerados livros “históricos”. A Escola Bíblica de Jerusalém entende que a redação do Deuteronômio, por exemplo, tradicionalmente atribuída a Moisés, foi tardia, e baseada em fontes orais ou escritas, “que diferem pela idade” (p. 329)

“Em sua forma definitiva, pois, estes livros são obra de uma escola de homens piedosos, imbuídos das ideias do Deuteronômio, que meditam sobre o passado de seu povo e dele tiram uma lição religiosa.” (p. 329)

A versão final do livro só teria sido completada após a conquista de Jerusalém pelo Império Babilônico, em 539 a. C.  (https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_de_Josu%C3%A9). Para se ter um termo de comparação, Josué é o líder do povo hebreu após a morte de Moisés. Não há registros ou evidências históricas da vida do libertador, chegando até a ser considerado um herói legendário construído ao longo dos anos pelos hebreus, embora possa ter havido um Moisés histórico, sobre o qual se inseriram muitas lendas. As especulações sobre seu nascimento variam entre 1592 a.C. e 1271 a.C. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Mois%C3%A9s). Há que se entender que um livro que vai sendo escrito e reescrito ao longo de mil anos, sem arquivos, com fontes orais, com intenções político-sociais, não pode ser entendido como fonte histórica, senão aceitando-se a incorporação de mitos, lendas, narrativas e até mesmo contradições. 

A Escola Bíblica de Jerusalém, na introdução do livro de Josué, faz uma comparação com a narrativa encontrada no livro do Deuteronômio (último livro da lei), que atribui a Josué uma espécie de liderança de todos os hebreus nas guerras contra os povos que habitavam na Terra Prometida, enquanto em Juízes I se apresenta cada povo lutando por seu território, e muitas vezes sendo derrotado.

Não é difícil perceber que diversos personagens do antigo testamento são legendários e simbólicos, como Sansão, que perde a força com um corte de cabelos, despedaça um pequeno leão (juízes 14:8) com as mãos, massacra um exército (!) de filisteus composto de mil homens, tendo por arma uma queixada de jumento (juízes 15:16) e desencarna derrubando as colunas do templo filisteu (juízes 16:29) apenas com as mãos. Ele é uma espécie de Hércules hebreu, embora a tradição rabínica o considere como alguém que existiu e cuja história de vida tem muitos elementos figurados, que necessitam ser interpretados. Ele foi comparado também a Jesus por estudiosos cristãos. O espírito Lamennais faz uma reflexão sobre Sansão, na qual ele é visto apenas como símbolo. (Kardec, Allan. Meditações filosóficas e religiosas, ditadas ao Sr. Didier pelo espírito Lamennais, Revista Espírita, 1871)

Vistos alguns desses personagens apenas como mitos, despindo-os completamente da possibilidade de sua historicidade, podemos tratá-los como arquétipos, no sentido junguiano? Sim, podemos, mas se formos fazê-lo com seriedade, alguns cuidados precisariam ser tomados. Um deles é extrair dos mitos seu mitologema, ou seja, sua estrutura, e mostrar que ela é comum a outros mitos de outras culturas. Uma das características de um arquétipo é ser algo herdado, que está presente no psiquismo antes do nascimento (Humbert, p. 95), apenas em “estrutura” (os conteúdos, as ideias específicas serão elaboradas ao longo da vida), as imagens originais seriam encontradas nos “contos de fadas, mitos e narrativas pertencentes às diversas culturas” (Humbert, p. 96), elas têm um papel orientador para o sujeito que as produz (em sonhos ou imaginações, por exemplo) (Humbert, p. 97), e por essa função o arquétipo é muito próximo do instinto (Humbert, p. 97). Esses arquétipos não são transmitidos pela cultura e pela educação, porque as imagens originais são inventadas e reinventadas pelas pessoas, foi o que o levou a pensar na “herança com a estrutura do cérebro”, inspirando-se nos comportamentos animais (Humbert, p. 98). Aqui se vê que ele temia propor hipóteses como a reencarnação, consideradas muito metafísicas e, portanto, passíveis de ser entendidas como não científicas.

A história de Sansão, por exemplo, tem muitas semelhanças com a história de Hércules e a história de Jesus, mas isso é assunto para outra publicação.


Referências

A Bíblia de Jerusalém. Nova edição revista. São Paulo: Paulinas, 1985. [Traduzido da edição de 1973 de “La Sainte Biblie”, coordenada pela Escola Bíblica de Jerusalém).

Humbert, Elie G. Jung. São Paulo: Summus, 1985.

Kardec, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. [IPEAK]

_____ Revista Espírita [IPEAK]




27.1.08

Um Romance com Personagens Bíblicos

Reler um livro vinte anos depois é como ler pela primeira vez. Tive em mãos a sétima edição de “O Alvorecer da Espiritualidade”, primeiro livro da série “Às Margens do Eufrates” e não resisti a fazer uma nova leitura.

O espírito que se identifica como Josepho seria o conhecido Flávio Josefo, escritor judeu-romano do século 1 DC? Independente da resposta à pergunta, o autor demonstra ter um grande conhecimento das tradições históricas e legendárias do antigo testamento.

A série é um relato de reencarnações de um mesmo espírito, o autor. Não sou capaz de dizer se se trata de uma estratégia literária ou se o autor pretende realmente fazer um relato memorialista das suas encarnações. A fragilidade documental da civilização hebraica, especialmente no período em que acontecem os eventos do primeiro livro da série, nos permitem dizer apenas que o autor parece conhecer os costumes hebraicos e a genealogia do livro do Gênesis.

Seu personagem central, Javan, mais que um representante de uma classe social ou homem de época, é um indivíduo diferenciado na tribo de Methusala (seria Matusalém, da Bíblia, como referencia Josepho?). Javan parece representar o espírita no mundo contemporâneo, de tendência espiritualista em meio a uma sociedade imediatista; romântico, em meio a pessoas sensualistas; com senso de dever e que toma decisões heróicas, pensando na comunidade e na vida após a morte antes dos interesses pessoais.

A cidade de Enoch, possivelmente a mesma que se diz no Gênesis Bíblico ter sido criada pelo filho de Caim, representa no contexto do livro a vida dirigida pelo poder, pela dominação e pelo sensualismo. Mesmo em Enoch, Javan encontra um patriarca que preza os valores e a tradição, Methusael, que convive com uma geração cainita dividida entre o poder dos guerreiros, simbolizados em Tidal e a teocracia dos sacerdotes de Baal.

Descendentes de Caim e de Seth se enfrentam no contexto do livro.

O autor espiritual e outros membros da equipe de Dolores Bacelar fazem inúmeras notas ao longo do texto e tecem explicações no contexto da ética espírita para muitos dos acontecimentos e decisões dos personagens.

A editora fez um excelente trabalho nas edições mais recentes. Ampliou os tipos, tornou a capa mais sugestiva, criou títulos para os capítulos, colocou as notas no rodapé das páginas, evitando que o leitor tenha que ir ao fim do livro para conhecer seu conteúdo, ampliou o tamanho das fontes facilitando a leitura e as limitações de leitores que, como eu, já passaram dos quarenta anos.

Apesar da profunda impressão que a leitura me causou, não me sinto informado o suficiente para a defesa do caráter histórico da narrativa, mas sem dúvida, seu caráter simbólico traz uma bela reflexão para a comunidade espírita, hoje.

No texto se encontram três ou quatro referências muito polêmicas: Capela, Lemúria, Atlântida e o dilúvio. O autor espiritual defende sua existência, embora relativize a questão do dilúvio, que aparenta ser regional. A referência aos avanços das sociedades atlantes e rutas (habitantes da Lemúria) são surpreendentes e causam estranheza, mas não chegam a comprometer o conjunto da obra.

Outra questão que apenas proponho, mas não tenho condições de desenvolver é se haveria uma influência do pensamento gnóstico no texto do autor espiritual.
Parece-me que conhecer e debater o conjunto da obra, que demonstra as muitas variações e possibilidades da faculdade mediúnica é uma tarefa importante para o movimento espírita, que ainda não lhe deu o devido valor.