Estou lendo a dissertação de
mestrado “Orígenes ensinou a reencarnação? Uma resposta às teorias
neo-gnósticas da reencarnação cristã com referência particular a Orígenes e ao
segundo concílio de Constantinopla (553)”, escrita por Dan Schlesinger. Ela foi
defendida no Departamento de Teologia e Estudos Religiosos da Universidade de
Glasgow, na Escócia, em 2016.
Trata-se de um belo texto, bem
fundamentado de um estudioso da área, simpático ao pensamento ortodoxo cristão
que entende que não se deve entender que haja reencarnação no Novo Testamento.
Há muito que comentar e discutir
na argumentação do mestre Schlesinger, se puder, vou pinçar alguns argumentos
polêmicos e comentá-los no Espiritismo Comentado.
Um ponto interessante que ele
apresenta é o que ele denomina como princípio básico de hermenêutica
(interpretação dos textos bíblicos) aceita pelos teólogos cristãos em geral: “a
escritura interpreta a escritura”. Isso significa que, como bem explica o
autor, “onde as passagens são isoladas, obscuras ou aparentemente
contraditórias”, interpreta-se levando em conta outras passagens e regras de
interpretação bíblica que se referem ao texto. Ele diz que os neo-gnósticos
(ele chama de neo-gnósticos os autores do movimento new age, e não dá mostras
de conhecer o espiritismo) fazem eisegese (interpretar um texto dando ideias do
próprio leitor) e não exegese (interpretação minuciosa do texto).
Em outras palavras, ele diz que
os membros do movimento new age fazem
uma interpretação forçada dos evangelhos para acomodar suas próprias crenças,
e, portanto, defende que a teologia tradicional não faz isso, possivelmente por
causa da coerência interna das interpretações com os textos das escrituras e
possivelmente com a tradição cristã, que supõe remontar à interpretação dos
apóstolos e dos primeiros cristãos.
Olhando com algum afastamento, acho
essa argumentação bem falaciosa, em função de alguns argumentos que passo a
apresentar.
O primeiro é que o conjunto de
livros que compõem o Novo Testamento foram objeto de escolha no final do século
IV e início do século V, por Jerônimo (considerado santo), a pedido do papa
Dâmaso I, e logo a seguir traduzidos para o latim, compondo a Vulgata. Ele
consultou outros cânones existentes, mas teria comentado, segundo Léon Denis,
que ele estava ciente que sua escolha não seria aceita pelas diversas
comunidades cristãs ao redor do mundo na época.
O argumento que se emprega em
defesa do trabalho de Jerônimo, é que ele escolheu apenas os textos que eram
coerentes entre si, que não eram contraditórios.
Então, a regra da hermenêutica
incorre na chamada “petição de princípio”, que é uma falácia, citada pelo
próprio autor contra os “neo-gnósticos” e contra nós, porque uma pessoa
escolheu os textos da escritura, mas só se pode interpretar as passagens
obscuras usando-se os textos que ele escolheu. Em outras palavras, a compreensão
de Jerônimo e de sua tradição se torna, na verdade, um critério para a
interpretação dos evangelhos. Temos, então uma regra que impõe uma hermenêutica
dos vitoriosos da história, já que havia um número enorme de textos (como o
Pastor de Hermas que foi usado por muito tempo pelos cristãos primeiros e
depois retirado do cânone) e de interpretações (as mais “populares e
discordantes” foram consideradas heresias).
Repetindo, é um erro lógico
também chamado de circularidade. Eu só posso interpretar usando os textos que
alguém escolheu como certos porque são considerados coerentes entre si, com
critérios que Jerônimo considerou.
Esse é um ponto importante,
porque permite a consideração e análise de outros textos produzidos nos
primeiros séculos, como fontes para a compreensão do que os primeiros cristãos
pensavam, para fins do entendimento possível do que Jesus deve ter ensinado aos
apóstolos. É uma abordagem hermenêutica que inclui estudos históricos e a
necessidade de compreensão de como os grupos cristãos foram se formando, e não
apenas assume como heresias o que a ortodoxia vitoriosa assim o considera.
Por essa razão, é sensata a
recomendação de Allan Kardec que conheçamos a época e os costumes para entender
o texto bíblico e a provocação de Hermínio Miranda quando coloca no título de
seu livro sobre o cristianismo a expressão “heresia católica”.