Jáder Sampaio
“Segue-se que devam negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes [epidemia de cólera] e baixar a cabeça ante o perigo? Absolutamente: tomarão todas [as precauções] aconselhadas pela prudência e uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não a devem procurar.” (Allan Kardec, O espiritismo e o cólera, Revista Espírita, novembro de 1865. P. 327)
Recentemente ouvi um expositor
espírita buscando Kardec para analisar um capítulo de livro de Divaldo Franco
sobre a pandemia. Iniciativa importante, uma vez que o pensamento kardequiano é
a estrutura básica do pensamento espírita em geral.
Causa primeira de todas as coisas
Ao analisar sua argumentação,
encontrei conclusões falaciosas com base em ideias colhidas no texto de Kardec,
que criam uma interpretação muito singular do autor, contraditórias às vezes,
com o próprio pensamento de Kardec.
Uma das afirmações que ele fez:
“Deus é a causa primária de tudo:
tudo é tudo mesmo, não é de uma coisa e outra não. ”
Ele não considerou o termo
primária (também traduzido como primeira), e mudou o sentido da frase. São
frases diferentes: “Deus é a causa de todas as coisas” e “Deus é a causa
primária de todas as coisas”. Na primeira frase, se eu sou infectado por um
parasita, isso é causado por Deus. Tudo o que acontece ao homem é causado por
Deus (inclusive o sofrimento). O universo e tudo o que acontece nele está
determinado pela vontade divina, portanto, não existe livre-arbítrio. Ele é
apenas uma ilusão.
Na segunda frase, as escolhas do
homem são de responsabilidade humana. Isso é o chamado livre-arbítrio, ou
liberdade de escolha. Deus criou o universo, ou seja, a natureza e os seres
espirituais (entre eles o homem). Por ter criado o princípio inteligente, o
princípio material e as leis que regem o universo, Deus é a causa primeira, ou
primária. Ele não é a causa imediata de todas as coisas. Aquilo que o homem
faz, as mudanças que ele, por exemplo, impõe à natureza com ações irrefletidas
ou criminosas, são causadas imediatamente por ele[1].
Nessa visão, o vírus não foi diretamente
criado por Deus. Sua mutação é consequência da ação do homem, seja modificando o meio ambiente ou
manipulando microorganismos em laboratório. Sua negligência ou desconhecimento,
associados às leis naturais, têm o Sars Cov 2 como resultado, e ele age no
homem segundo sua natureza. Deus não o criou porque desejava punir os homens
(isso é uma humanização divina), ou para fazer desencarnar em massa as pessoas
da Terra, ele é uma consequência indesejada das ações do homem na natureza, no
uso do seu livre arbítrio.
As leis universais são perfeitas,
fruto de Deus. As ações humanas são imperfeitas, uma vez que esse ser conhece
apenas parcialmente as leis universais ou as negligencia, fruto da ignorância e
do livre-arbítrio, assim como do egoísmo e do orgulho. Sempre que um homem vai
de encontro às leis universais (essas, sim, criadas por Deus), ele, com sua
escolha, leva consigo “todo o pacote”, ou seja, suas consequências.
O que causa a COVID-19? A
infecção com o Sars-Cov-2. Por que somos infectados pelo Sars-Cov-2? Uns porque
não usaram qualquer tipo de prevenção e tiveram o contato com o vírus, que se
multiplicou em seus organismos. Outros porque usaram de meios de prevenção e
mesmo assim foram infectados pelo vírus. Contudo, o risco dos primeiros é muito
maior que o risco dos últimos, se analisarmos um grande número de casos.
O que acontece com os que não se
preveniram? Desencarnam como o espírito André Luiz. Ele não desejava
desencarnar mais cedo, mas não se cuidou, e acabou indo antes do tempo. Isso
acontece também com os suicidas. Ninguém planeja encarnar para desencarnar
através do suicídio.
O que acontece com os que se
preveniram e desencarnaram? Ou passam por uma expiação ou por uma prova. Talvez seja o momento previsto para a desencarnação.
Cabe a nós, espíritas, diante
dessa forma de entendimento, recomendar a todos que tomem os cuidados
necessários contra a doença, que se vacinem, que tomem as medidas já estudadas
e propostas pela medicina, para que não venham a desencarnar antes do tempo.
[1] Em
“O evangelho segundo o espiritismo”, Kardec escreve que “há males nessa vida
em que a causa primária é o homem...” ou seja, há coisas decorrentes da ação e
das escolhas humanas. Dessas, Deus só pode ser considerado causa primeira ou
primária por ter criado o universo e estabelecido as leis que o regem.