Vista aérea de Cafarnaum nos dias de hoje. O espaço coberto é considerado ser o local da casa de Pedro e vê-se ao fundo o Mar de Tiberíades, também chamado de Lago de Genesaré.
Há mais de três décadas, no tempo da máquina de escrever,
preparei um estudo sobre Simão Pedro para fazer na sociedade espírita de mesmo
nome em Belo Horizonte. Tendo aceito este ano para falar nas comemorações da
casa espírita em Caeté-MG, combinamos que o mesmo tema seria abordado.
Como se tratava de uma palestra biográfica, que vai seguindo
os episódios que envolvem o apóstolo ao longo da narrativa dos evangelhos e do
livro de atos, aproveitei a oportunidade para revisitar o texto, consultando a
tradução de Haroldo Dutra de “O novo testamento”.
Gostaria de compartilhar com os leitores algumas reflexões
sobre o episódio narrado por João, do encontro de Jesus, após a morte, com
Pedro, em Cafarnaum.
O episódio é bem curioso, e aparenta ser uma espécie de
história contada pelos apóstolos e não um acontecimento real. Uma das razões é
geográfica. Pedro estava em Jerusalém após a crucificação de Jesus. O rabi
retorna da morte e apresenta-se diversas vezes aos apóstolos e a outras
pessoas. De repente, o episódio narrado por João acontece em Cafarnaum, na
Galileia, a mais de cem quilômetros de caminhada da capital da Judeia. Pedro já
está novamente instalado, pescando, com barcos e redes, juntamente com outros
discípulos. Concluído o evangelho de João, temos o livro dos Atos, com Pedro
novamente em Jerusalém, no episódio mediúnico do dia de Pentecostes. Teria ele
se deslocado, mesmo tendo visto Jesus após a morte, no episódio que envolve o
ceticismo de Tomé, e depois voltado novamente a Jerusalém para construir a
primeira comunidade cristã?
O segundo motivo é literário. O episódio soa a história,
porque Jesus aparece novamente aos discípulos, reedita a pesca do dia em que
converteu os primeiros quatro, e reedita a negação de Pedro, após a refeição da
manhã, fazendo-o repetir três vezes uma declaração de amor fraternal. É uma
espécie de texto de regeneração dos apóstolos, e principalmente de Pedro, após os
eventos da crucificação.
O terceiro motivo é hermenêutico. Um episódio tão marcante
deveria aparecer em mais de um evangelho, e encontrei apenas no evangelho de
João, considerado espiritual.
A leitura do texto traduzido por Haroldo é interessante.
Jesus pergunta três vezes a Pedro:
- Simão, [filho de] João, tu me amas mais do que a estes?
Ante as três respostas afirmativas do apóstolo, Jesus faz
três pedidos convergentes, mas diferentes:
- Alimenta meus cordeiros.
- Apascenta minhas ovelhas.
- Alimenta minhas ovelhas.
Alimentar e apascentar são verbos relacionados a cuidados. Apascentar
(e não pacificar), envolve as ações de conduzir e vigiar no pasto, pastorear,
ou como lemos na tradução de Haroldo, “todas as funções do pastor, tais como
guiar, levar ao pasto, nutrir, cuidar, vigiar”.. Alimentar, segundo as notas da
tradução de Haroldo Dutra, pode ser entendido como levar para pastar, oferecer
pasto.
No antigo testamento, o profeta Ezequiel (capítulo 34) diz
ter ouvido de Deus uma profecia contra os pastores de Israel. Com a leitura do
capítulo, percebe-se logo que ele não fala de ovelhas, cordeiros e pastores,
mas do povo e dos sacerdotes. Ele acusa os pastores de comer a gordura,
servir-se da lã e matar o cevado, mas não apascentar o rebanho (v. 3), ou seja,
aproveitarem-se das leis que obrigam o povo de Israel a sustentá-los, mas não
cumprir com o seu trabalho de dar assistência religiosa.
Ezequiel escreve que as ovelhas de Deus passaram a servir de
pasto às feras e foram entregues à rapina. Considerando os sacerdotes ineptos
para cuidar do povo, Ezequiel escreve que o próprio Deus distinguiria a ovelha
gorda da ovelha magra (v. 20) e que Davi se tornaria pastor de Deus e
apascentaria o rebanho (v. 23), ou seja, ele institui um novo cuidador ao mesmo
tempo em que traz de volta a si uma função que era atribuída aos sacerdotes.
A passagem de João parece fazer uma referência ao capítulo
34 de Ezequiel. Pedro é convidado por Jesus a ser o pastor das ovelhas e
cordeiros, ou seja, a executar uma função sacerdotal no lugar dos sacerdotes do
culto judeu.
Tendo ou não acontecido como está escrito, a passagem do
Evangelho de João marca a construção de uma ekklesia
cristã, de caráter religioso e comunitário, o que justifica as descrições da
comunidade de Jerusalém que encontramos no livro dos Atos dos Apóstolos. Nesta
comunidade não apenas se estudavam os evangelhos, mas também se redistribuíam
alimentos e outros bens entre os que necessitavam. O episódio das viúvas
helenistas e da instituição de diáconos (Atos, capítulo 6) ilustra bem esta
função.