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27.9.20

O TEXTO EVANGÉLICO CONTÉM MITOS?



Ontem fizemos uma exposição sintética do livro “Revisão do cristianismo” a convite da Fundação Maria Virgínia e Herculano Pires (https://www.youtube.com/watch?v=eIB1YtN75gg). Dentre as muitas coisas que Herculano convida a rever no cristianismo, um grande conjunto delas tem um impacto muito grande sobre o nosso entendimento dos ensinamentos do mestre galileu: os mitos.

Influenciado pelo convite Kardequiano de analisar racional e historicamente os evangelhos e documentos dos primeiros cristãos, Herculano mergulhou nas reflexões que os autores do final do século 19 e início do século 20 fizeram a partir de uma mudança de atitude na pesquisa da história do cristianismo. Em vez de fazer uma história atrelada à teologia, autores como Guignebert trabalharam na desvinculação das duas e na construção de uma história baseada na historiografia da época, nas descobertas arqueológicas, na limitada documentação ainda existente, e na comparação do cristianismo com outras religiões, ou seja, concebendo-o como uma religião e não como a religião.

Na medida em que o cristianismo deixa de ser contado como uma “vinda de Deus à Terra” e passa a ser visto como um movimento dos homens, algumas ideias até então interditas ao historiador do cristianismo começam a ser percebidas.

Uma delas é bem simples: os evangelhos não foram feitos a partir do registro exato do que disse Jesus e de sua preservação para o futuro. Os discípulos de Jesus o conheceram e ouviram o que ele ensinava. Com a morte e a percepção de Jesus após a desencarnação, os discípulos entenderam que a mensagem dele deveria ser divulgada, e começaram a ensinar, primeiro aos judeus e depois a todos os que se interessassem, o que eles se recordavam ou entenderam que havia sido ensinado.

Dos evangelistas que eram alfabetizados, talvez Mateus tenha feito anotações de suas memórias, sob a forma de logia, frases ou pequenos períodos encadeados. Hoje os historiadores propõem que o evangelho de Marcos teria vindo da tradição de Pedro, ou seja, João Marcos, ou os hagiógrafos que escreveram o texto desse evangelho, teriam ouvido e escrito os ensinamentos cristãos cuja tradição remonta ao pescador de Cafarnaum. 

Além de não serem registros históricos, de serem textos posteriores às cartas de Paulo, e de serem registros de ensinos orais dos discípulos, concluídos anos ou décadas após o episódio do Gólgota, é bem possível que estejam entremeados com mitos judaicos ou pagãos, é o que reflete Herculano Pires ao longo do seu livro.

O mito não é, em si, uma falsidade, uma irrealidade, como nos explica o filósofo paulistano, mas uma proto-explicação ou explicação não racional, que se origina no interior da alma humana. Enxergar Jesus como o messias, o “ungido”, aquele que veio salvar o povo hebreu da escravidão e associá-lo aos sinais entrevistos na leitura e interpretação dos profetas, seria uma primeira “tentação” dos apóstolos ou dos que participaram da redação dos textos que posteriormente foram escolhidos para compor o Novo Testamento. 

Herculano não se propõe a separar o mito da narrativa nos evangelhos, mas faz algumas análises. Ele entende que boa parte da natividade pode ser mítica, porque apresenta eventos improváveis e que “ajustam” a figura de Jesus à do messias. O nascimento em Belém, por exemplo, o “censo” que exigiria que os habitantes saíssem de suas cidades para as cidades onde nasceram, a declaração de morte das crianças por Herodes, a estrela de Belém que guia os Reis magos e a fuga para o Egito fazem parte dessa mitologia tardia inserida nos evangelhos. Herculano busca mitologemas semelhantes em outras religiões da época para mostrar que é possível que tenha havido uma interpolação de mitos e histórias sagradas na história de Jesus para que ele pudesse ser considerado o messias dos Judeus ou um Deus para os gregos ou romanos. A partir do século quarto, muitos elementos do paganismo irão ser empregados pelas comunidades cristãs para que seus concidadãos aceitem mais facilmente o prestígio do cristianismo junto ao Imperador Constantino, até tornar-se religião oficial do império romano, décadas depois.

Não seria demérito que Jesus tivesse nascido em Nazaré, filho de Maria e José, com irmãos e tivesse vivido no lar de um carpinteiro. Mais humano, ele se torna mais extraordinário aos nossos olhos, porque nessas condições desfavoráveis ele se torna capaz de interlocução com os estudiosos de sua cultura e de sua época, e é capaz de elaborar uma proposta de ser humano, de vida e de sociedade completamente diferente daquilo que existia e que se vivia em seu tempo. Cercado por socidades que "naturalizaram" a instituição da escravidão, por exemplo, Jesus propõe tratarmos a todos como pessoas, filhos do pai. É uma concepção além do tempo e do lugar em que Jesus viveu, além das escrituras judaicas e, incomodamente possível.

Essa abordagem racional e histórica não nos leva a desvalorizar os evangelhos, as cartas dos apóstolos e os documentos que os cristãos produziram nos primeiros séculos, mas exige uma leitura crítica, um olhar histórico, capaz de entender que o texto, quando se aproxima do mito, não é um conjunto de “verdades ocultas” cujas alegorias devem ser descobertas pelo leitor, mas uma expressão vívida dos ensinos de Jesus, a par com o desejo de reconhecimento do mestre pela sociedade da época por seus apóstolos e discípulos.

A proposta de Herculano é intelectualmente corajosa, porque é revisionista não só do cristianismo das igrejas, mas por propor aos espíritas uma atitude mais racional no que tange ao estudo dos evangelhos. Concordando ou não com Herculano Pires, o livro merece ser estudado, debatido e entendido por nós sem a pretensão de verdade absoluta, mas com a pretensão de rigor e honestidade intelectuais.


3.5.20

REVISÃO DO CRISTIANISMO: A HERANÇA MÁGICA

Capa antiga do livro "Revisão do Cristianismo"


Herculano Pires não escolheu arbitrariamente o título de seu livro. Na história, o revisionismo é um “reexame crítico de fatos históricos presumidos e da historiografia existente.” Ele pode surgir do uso de novas fontes (por exemplo, o conhecimento do cristianismo primitivo após a descoberta de novos documentos em Qmram e Nag Hammadi), novas perspectivas ou visões (por exemplo, a história da escravidão da ótica dos escravos), pela mudança do zeitgeist (em um tempo diferente o historiador pode valorizar o que era considerado pouco importante por gerações passadas, por exemplo, a questão de gênero na história) ou mesmo pelo surgimento de novos conhecimentos científicos (o surgimento da técnica de datação a partir do carbono 14 alterou, por exemplo, muito do que se afirmava sobre história natural e sobre objetos atribuídos a personalidades históricas). Ele se propõe a fazer revisões do conteúdo e das formas que o cristianismo assumiu com o passar da história. 

No capítulo 3 do livro Revisão do Cristianismo, ele busca rever o que entende ser uma herança dos tempos da magia no cristianismo. Por magia não se entendam as bruxas da idade média, ou os textos de Papus no século 19, mas uma prática de sociedades ditas primitivas. Ele mesmo a descreve como o uso de palavras, objetos e ritos com base na crença de que atuem de forma misteriosa na matéria. A magia pressupõe um poder oculto às pessoas, mas conhecido e dominado por iniciados. Herculano explica assim o emprego de palavras, ritos e objetos mágicos: “A magia das palavra socorria a escassez do saber.” (p. 14)

A representação do mago em cartas de Tarô. Há semelhanças entre o mago e o padre na missa.

Na revisão do cristianismo uma das propostas de Herculano é retirar todos os elementos mágicos de suas palavras e práticas. Ele entende que a proposta de Jesus de Nazaré para a religião é completamente espiritual, nada exterior e nada mágica.

Onde se veria magia mesclada à prática cristã? O autor dá vários exemplos: 

- Na analogia entre o sangue do cristo e o sangue redentor dos sacrifícios de animais realizados pelo judaísmo de sua época;

- no uso de objetos considerados sagrados, como cruzes, medalhas, escapulários, bentinhos, rosários, fitas, velas, véus, paramentos, cálices e outros; (p. 14)

- no batismo, como rito de passagem, e no emprego de água e sal (mesmo simbólico) na criança;

- Em outros ritos de passagem que foram introduzidos sob a forma de cerimônias, como o matrimônio religioso (que não existia nem na cultura judaica), a crisma e a extrema-unção com seus óleos;

- na hóstia consagrada, que se supõe transubstanciada (ou mesmo consubstanciada, se entendido como união mágica entre a farinha de trigo e o corpo de Cristo) ou transformada no corpo de Jesus de Nazaré, que o crente ingere;

- e quando um padre diz a um crente: “Seus pecados estão perdoados”.

Diversas outros exemplos, da ordem do ritual, das promessas de curas e dos objetos sagrados merecem ser revistos, para que o cristianismo seja visto como algo espiritual, próprio ao sujeito, e não algo mágico, concepção que teria sido construída aos poucos, após o cristianismo primitivo, com a finalidade de fazer com que uma população de mentalidade mágica e mítica aceitasse o cristianismo como identidade.

Parece algo básico, mas ainda nos dias de hoje, no meio espírita, algumas pessoas vindas de outras tradições religiosas ou espiritualistas, que não refletiram a diferença entre magia e espiritualidade, desejam realizar sincretismos, que as façam relembrar ou reviver experiências vividas algures, como uma casa espírita que fazia um momento eucarístico com pão e vinho, aos moldes da prática católica, como relatou meu pai em viagens feitas ao interior mineiro para a divulgação do espiritismo.

1.4.20

HERCULANO PIRES, ERNEST RENAN E CHARLES GUIGNEBERT



Uma das contribuições que Herculano Pires deu ao pensamento espírita foi o diálogo com os autores acadêmicos de sua época. Estou estudando o livro “Revisão do Cristianismo”. Estilo jornalístico, ele escreve um texto contínuo e apenas indica ao leitor os autores que comenta no corpo do texto, mas à medida em que se vai lendo, percebe-se com quem ele “conversa”.


Logo no início do texto há uma citação de Charles Guignebert. Quem é ele? Por que foi retirado do texto dele a epígrafe do livro?

Guignebert é um autor francês que nasceu dez anos após a publicação de “O livro dos espíritos”, mas que efetivamente começou sua contribuição à universidade então chamada de Sorbonne, em 1919, quando assumiu a cadeira de história do cristianismo. Em sua “aula inaugural” ele diz que vai fazer da história do cristianismo, “uma história como as outras”.

Por uma história como as outras, se entende que os professores de história do cristianismo deviam pertencer à igreja ou às confissões de fé cristãs da época, e de alguma forma mesclavam a história com a apologia ao cristianismo.

Nessa mescla se encontra o caráter mitológico imiscuído nos estudos históricos. Possivelmente os dogmas se articulavam com a razão. Guignebert se propõe a fazer um trabalho de caráter laico. 

Antes de Guignebert, temos Ernest Renan, que escandalizou sua época denominando Jesus como “homem incomparável”. A frase aparentemente comum para nós, espíritas, que o concebemos como espírito superior, causou espécie entre seus contemporâneos que enxergavam Jesus como Deus.

Renan e Guignebert estão no texto de Herculano, que vai em busca da distinção entre Jesus de Nazaré, o homem, e Jesus Cristo, o mito construído ao longo da história. Iniciativa talvez inédita nos meios espíritas, apesar do texto já existente de Allan Kardec, referindo-se (e criticando também) Ernest Renan na Revista Espírita.

Em que ano foi publicada a primeira edição de Revisão do Cristianismo? Como o livro foi acolhido pelo meio espírita da época? Isso fica a encargo dos historiadores e dos leitores de Herculano Pires, e, quem sabe, se torna objeto de outra publicação.

POST SCRIPTUM

Recebi, fruto da gentileza do Herculano Pires Filho, a informação abaixo:

"Mestre Jáder, eis as informações solicitadas: 

Revisão do Cristianismo 1a edição 1977 - Editora Paideia
        
Barrabás 1ª edição 1954 (recebeu o PRÊMIO DO DEPARTAMENTO MUNICIPAL DE CULTURA  DE S.P.)
  
Lázaro 1ª edição 1971 Edicel

Madalena 1ªa edição 1979 Edicel"

Agradeço a contribuição ao Espiritismo Comentado!