Na minha juventude ouvi os militantes políticos na
universidade criticarem a distribuição de bens, como cestas básicas, para os
pobres. Eles chamavam essa prática de “amansar o cordeiro”, porque não resolvia
o problema de sua exclusão social. Era um discurso raso, que não ia além da
afirmação aparentemente óbvia.
Na nossa casa, por exemplo, a distribuição de cestas básicas
tinha uma finalidade promocional. Ajudava famílias que haviam migrado da roça
para a periferia de Belo Horizonte a se estabelecer. Muitas dessas famílias
chegavam na esperança de um novo futuro, mas sem emprego nem bens. Algumas
delas entravam em um ciclo negativo, cujas perdas contínuas e a fome levavam o pai
ao alcoolismo, à depressão e ao afastamento do núcleo familiar. Uma cesta de
alimentos nem de longe atendia as necessidades desses núcleos, mas combatia a
fome e as reuniões mensais que fazíamos davam algum alento. Mantido o núcleo
familiar, aumentavam as chances de adaptação à cidade grande.
No caso do Chico, o significado do que ele fazia era
completamente diferente. Ele se dedicou à humanização dos miseráveis, ao
estabelecimento de laços de afeto com eles. Parece bobagem aos olhos de um
intelectual que deseja, justificadamente, a inclusão social do excluído, a
existência de direitos mínimos, como o trabalho, a renda, a moradia, a saúde e a
alimentação. Mas não é.
Roberto e Marival contaram-nos de uma tarefa na qual o Chico
visitava as periferias de Uberaba. Lugares sem luz nem água encanada. Lampião
na mão, lá ia um grupo de voluntários, visitar as periferias. Marival surpreendia-se com a capacidade do
Chico guardar os nomes das pessoas. E o Chico lhe explicava que quem ama, lembra.
Esse é um primeiro ponto a se observar. Os pobres não eram “pessoas pobres”
para o Chico. Eram o seu Antônio, a dona Maria de João, a Celestina, filha de
Dica. Ele visitava a casa, e era uma visita tão ilustre, que o filho de uma
família fez poesia para o Chico. A tarefa não era a distribuição do que quer
que levassem. A tarefa era a convivência. Acho que ninguém entendeu direito o
Chico.
Depois Juselma nos explicou a questão da moedinha. Uma
garrafa de água de dois litros, acho, cheia de moedinhas de dez centavos,
depois de vinte e cinco centavos, e vai subindo o valor na medida em que o
tempo e a inflação corroíam a capacidade de compra do nosso dinheiro. Por que
isso? Qual o sentido? Perguntava-se a professora Juselma, perspicaz. As moedas
de pequeno valor de compra dificilmente fariam a diferença na vida das pessoas,
embora quem ganhe muito pouco dinheiro tenha uma visão diferente de uma moeda
de um real, por exemplo.
Mas não tinha nada a ver com distribuição de renda. Tinha a
ver com proximidade psicológica. Com o aumento da fama do Chico, ele atraía
espíritas e interessados de todas as classes sociais. Seguramente, os das
classes superiores se insinuavam, se achavam no direito de serem recebidos, e
se aproximavam, às vezes de forma importuna e inoportuna, o que também nos foi
narrado. A moedinha era uma espécie de reserva de tempo para que o pobre também
pudesse se aproximar do Chico. Ele se sentia no direito de pegar uma moedinha e
de agradecer ao Chico. Juselma nos disse que era um pequeno momento, o pobre
beijava a mão do Chico e o Chico beijava a mão do pobre, em retribuição. Nesse
pequeno instante, uma palavra, um pedido, uma fala rápida. Tudo à sombra do
abacateiro, para receber até quem tivesse alguma resistência com o espiritismo
e os centros espíritas. Qualquer um poderia se aproximar nessas horas e os
pobres não ficavam “no fundo do templo”, como percebia outro Francisco, o de
Assis. O Chico não cobrava a conversão dos pobres, que eles se tornassem
espíritas. Isso também nos foi contado pelo Marcel. A mulher que elogiou
abertamente o marido, mas se queixava dele não ser espírita. O Chico teria
dito:
- Se ele é tão bom assim, não mexe em nada não. Deixa ele
ser quem é.
Outra percepção do Marcel, a do Chico diante da dor da
perda. A mulher chegou desesperada com a morte do filho. Chorando, perdida. Um
terremoto abalou seu mundo. E o que o Chico fez: abraçou-a e chorou com ela.
Nem uma frase pronta, nem uma percepção sobrenatural, nenhuma esperança, nenhum
“sermão espírita”, do tipo espírita não age assim, ou “a vida não termina com a
morte”; apenas uma alma que sente a dor que sente a outra.
Por fim, um tema polêmico, o dos aparelhos de ar
condicionado, um dos motivos do afastamento do Chico do Centro que ele fundou
em Uberaba. Essa história se espalhou no meio espírita, e há até quem advogue
que não se pode colocar ar condicionado na casa espírita, porque “Chico dixit”.
Lembrei de uma fala do Chico, antiga, replicada pelos que o
conheceram. “O Centro Espírita tem que ser um lugar simples o suficiente, de
tal forma que um pobre possa cuspir no chão se assim o quiser.”
O que entendi é que o problema não é o ar condicionado, ou o
chão de terra batida do centro, mas o propósito de Chico Xavier, um propósito
claramente franciscano, de conviver com os pobres. Há de se ter um lugar que os
pobres possam frequentar sem se sentir “estrangeiros” ou constrangidos. Que
possam se sentir em casa, acolhidos, um lugar que sintam que lhes pertence, sem
qualquer constrangimento de serem pobres. Esse era o trabalho dele, como lemos
na narrativa escrita por ele da rainha católica portuguesa que pede a ele que
cuide dos “filhos peninsulares” dela. Era o trabalho do Chico, o que ele se
propôs a fazer.
O grupo que o Chico frequenta precisa ser simples o
suficiente para que ele possa continuar fazendo seu trabalho com os pobres: o
de trocar uma palavra, ouvir uma aflição, cumprimentar pelo nome, perguntar
pelo filho... Em outras palavras, humanizar a convivência e fazê-lo perceber
que é tão pessoa como um rico, ou como um poderoso, ou como uma pessoa formada
em nível superior.
Essa é apenas uma das conclusões das palestras dessa semana.
Foi uma experiência muito rica e diferente do cotidiano. Espero que possamos,
no futuro, fazer novos recortes da vida e da produção do Chico, como nos
mostrou o Marcel Souto Maior.