O professor Paulo Bittencourt, titular da cadeira de neurologia da UFSC, orientou um artigo intitulado "Tratamento em Medicina Alternativa em Pacientes com Epilepsia em Santa Catarina", publicado em português e comunicado em congresso internacional no qual faz inúmeras acusações gratuitas aos espíritas catarinenses e ao Espiritismo.
"...os centros espíritas de nosso estado filiam-se basicamente às idéias de seu mentor francês, Alan Kardec. Centros desta natureza apresentam-se à sociedade como uma forma de panacéia: tornando claras, justificando e tratando todas as doenças, disseminando entre seus praticantes a idéia conformista de que os problemas de saúde atuais são consequência de processos de vidas passadas. Resumindo, a doença atual é produto da vida de ontem, e no amanhã virá a consequência do que se fez ou não hoje. Tais centros tem uma poderosa ferramenta terapêutica que denominam cirurgia espiritual. Este tipo de procedimento, ocorre numa sequência análoga às cirurgias reais, onde o médium é uma espécie de cirurgião-chefe."
Tristes comentários. O pior é que o pesquisador não se deu ao luxo de estudar minimamente o Espiritismo para falar dele, quando muito, reproduziu o que ouviu seus pacientes dizerem, ou seja, escreve de oitiva...
Há uma contradição no texto. Panacéia ou conformismo? Panacéia é o remédio para todos os males. Se o Espiritismo possui alguma, por que o conformismo? Se conhecesse o tema sobre o qual escreve, o autor veria que não há defesa de panacéias nem apologia do conformismo em matéria de Doutrina Espírita.
Kardec e os principais autores espíritas não defendem a idéia "conformista" de que os problemas de saúde atuais são todos conseqüências de processos de vidas passadas. Se o autor do artigo e seus colaboradores tivessem avaliado a obra do codificador antes de escreverem sobre ele, teriam encontrado um pensamento muito mais complexo do que barbaramente reduziram em seu texto. Ele escreve em "O Evangelho Segundo o Espiritismo":
"De duas espécies são as vicissitudes da vida, ou, se o preferirem, promanam de duas fontes bem diferentes, que importa distinguir. Umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida." (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 5)
No mesmo capítulo, mais à frente, ele escreve:
"Não há crer, no entanto, que todo sofrimento suportado neste mundo denote a existência de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas buscadas pelo Espírito para concluir a sua depuração e ativar o seu progresso." (O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo 5)
Quanto ao conformismo a que se referem os autores, Kardec escreveu sobre a fatalidade e se refere a ela da seguinte forma:
Do fato de ser infalível a hora da morte, poder-se-á deduzir que sejam inúteis as precauções para evitá-la?
“Não, visto que as precauções que tomais vos são sugeridas com o fito de evitardes a morte que vos ameaça. São um dos meios empregados para que ela não se dê.” (O Livro dos Espíritos, questão 854)
A idéia de conformismo não é consistente com as opiniões de Kardec e dos Espíritos nem em matéria de enfermidades, como já o mostramos, nem em matéria de desigualdades sociais como se lê:
813. Há pessoas que, por culpa sua, caem na miséria. Nenhuma responsabilidade caberá disso à sociedade?
“Mas, certamente. Já dissemos que a sociedade é muitas vezes a principal culpada de semelhante coisa. Demais, não tem ela que velar pela educação moral dos seus membros? Quase sempre, é a má educação que lhes falseia o critério, ao invés de sufocar-lhes as tendências perniciosas.” (685) (O Livro dos Espíritos)
Quanto às cirurgias espirituais, a sua qualificação irônica como "poderosa ferramenta terapêutica" demonstra a atitude de pouco afastamento ou objetividade com que escreveu o artigo. Diversos autores sérios pesquisaram o tema e os resultados são controversos, assim como é controversa a questão no seio do movimento espírita. Não existe uma conduta comum com relação às cirurgias espirituais nos centros espíritas.
Eu poderia continuar citando obras espíritas. Vêm-me à mente o livro Mediunidade Serena, de Yvonne Pereira e os livros de Carlos Toledo Rizinni, pesquisador do CNPq, que se opõem claramente a esta suposta interpretação que estes médicos catarinenses fazem da doutrina dos espíritos. Poderia citar toda a revisão bibliográfica que tenho feito sobre curas espirituais em periódicos internacionais, cujas posições dos autores são geralmente contraditórias às desrespeitosas afirmações dos médicos catarinenses.
Quanto ao design do trabalho, encontram-se inúmeras falhas, de forma que ele dificilmente seria aceito em um periódico criterioso com blind review. Como pesquisa descritiva, ele é não probabilista, não se podendo generalizar resultados, como os autores bem o admitem no seio do trabalho. Como não é experimental, ele não comparou resultados de terapias alternativas aos da medicina oficial, não podendo comparar a eficácia dos métodos. A revisão bibliográfica é limitadíssima, talvez devido à má delimitação do tema de pesquisa.
Para mais confundir ainda, eles admitem que a doença tem taxas altas de remissão, mas não as explica em bases fisiológicas, nem é capaz de distinguir o que ocorre devido à "natureza" (termo empregado pelos autores) daquilo que acelerou os processos naturais ou interviu de outras formas. Em suma, ele é uma manifestação dos preconceitos do grupo de médicos que o escreveu, de forma tão descuidada, tão desrespeitosa, que não se deu ao luxo de sequer analisar e fundamentar suas acusações e impropérios, talvez julgando ignorantes os espíritas e incapazes de perceber dimensão de leviandade com que produziram este trabalho.