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23.2.14

OS PROFETAS ENTRE OS JUDEUS, OS CRISTÃOS E OS ESPÍRITAS



Estamos estudando, em nossa reunião mediúnica, o capítulo de "O evangelho segundo o espiritismo" que trata dos profetas (capítulo 21 – Haverá falsos cristos e falsos profetas).

O que é profeta?

O senso comum associou os profetas às profecias e entende, hoje, que seriam pessoas com o dom de desvendar o futuro. Na sociedade hebraica, os profetas seriam, de algum modo, um elo entre os homens e Deus, sendo, portanto, capazes de dar sinais da divindade, o que envolve curar doenças, saber de coisas que as pessoas comuns não sabem, e, como diz Kardec, eles seriam “todo enviado de Deus com a missão de instruir os homens e de lhes revelar as coisas ocultas e os mistérios da vida espiritual.” Jesus foi identificado como profeta pela mulher samaritana, no evangelho de João (4:19).

Os profetas estão presentes no cristianismo primitivo. A Bíblia de Jerusalém os identifica como homens que falam em nome de Deus sob a inspiração do espírito santo (pág. 2070) Isso seria um carisma especial, assim como haveria outros carismas, como o dos apóstolos, Perto destes últimos, os profetas teriam um “conhecimento imperfeito e provisório, em relação com a fé.”

O cristianismo primitivo aproxima o profeta do que o espiritismo, hoje, denomina médiuns. Não acreditamos que os médiuns percebam diretamente a Deus, nem ao chamado espírito santo, a não ser que esta denominação tenha o significado de espíritos superiores, identificados com o cristianismo, como muitos dos que se comunicaram à época de Allan Kardec.

Esta reverência respeitosa que desperta a figura do profeta (médium), seja no contexto judaico, seja no cristão primeiro ou no espírita, pode proporcionar uma aceitação quase acrítica do que ele diz, após ser reconhecido como tal. Isto faz com que pessoas sem caráter desejem ser vistos como profetas para obter todo tipo de vantagem dos ingênuos. Daí a preocupação em não se deixar enganar. Kardec dava aos médiuns um papel de intermediários, e não lhes incendiava o ego, cuidado muito importante para o espiritismo do século XXI.

Os profetas entre os cristãos dos primeiros séculos

Os cristãos primeiros tinham a preocupação de não ser enganados por quem se dizia profeta, desde as inúmeras advertências do próprio Jesus (Mateus 7:15-20, por exemplo). Encontramos alguns cuidados na Didaqué, um livro escrito entre 70-120 d.C., de autor desconhecido, mas possivelmente um judeu convertido, da escola de Tiago Menor que imigrou para a Síria. Ele se preocupa com os cristãos que ensinam o cristianismo (didáscalos ?) e com os profetas que viajam de comunidade em comunidade. Ele propõe que haja hospitalidade entre os cristãos, mas com discernimento.

“Se o hóspede estiver de passagem, deem-lhe ajuda no que puderem: entretanto, ele não permanecerá com vocês, a não ser por dois dias, ou três, se for necessário. Se quiser estabelecer-se com vocês e tiver uma profissão, então trabalhe para se sustentar. Se ele, porém, não tiver profissão, procedam conforme a prudência, para que um cristão não viva ociosamente entre vocês. Se ele não quiser aceitar isso, é um comerciante de Cristo. Tenham cuidado com essa gente.” (Didaqué 12:1-5)

Nesta época aceitava-se que o profeta fosse sustentado pela comunidade, se verdadeiro. Contudo, o autor da Didaqué tem o cuidado de estabelecer o que se daria ao profeta. Ele compara o profeta ao professor, e como o professor é digno do seu alimento, o profeta também seria. Neste ponto da história, parece já haver uma mistura entre a função de profeta e a de didáscalo. Como ninguém enriquece com o cristianismo primitivo, o profeta também não. A ele são destinados “os primeiros frutos de todos os produtos da vinha e da eira, dos bois e das ovelhas”. Este é um hábito semelhante ao judaico, de destinar estes bens aos sacerdotes. Gosto particularmente do versículo quatro:

“Se, porém, vocês não têm nenhum profeta, deem aos pobres.”

O Espiritismo e os profetas

Passados os séculos, Kardec retoma o debate dos profetas em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, porque sabe que tanto médiuns, quanto espíritos, podem equivocar e se equivocarem. Por isso, preocupa-se em instruir o movimento espírita que observe o caráter dos médiuns, assim como os cristãos primeiros se preocupavam com o caráter dos que se apresentavam como profetas.

“O fato de operar o que certas pessoas consideram prodígios não constitui, pois, sinal de uma missão divina, visto que pode resultar de conhecimento cuja aquisição está ao alcance de qualquer um, ou de faculdades orgânicas especiais, que o mais indigno não se acha inibido de possuir, tanto quanto o mais digno. O verdadeiro profeta se reconhece por mais sérios caracteres e exclusivamente morais.” (O Evangelho segundo o espiritismo, cap. XX!, item 5)


Sábias palavras, muito atuais em uma época na qual muitos ainda se deslumbram com o que parece sair da boca ou das mãos dos médiuns.

15.2.14

ALLAN KARDEC E OS DIFERENTES ESPÍRITAS.


Diferentes tipos de grãos

Quando um autor desenvolve uma tipologia de grupos de pessoas, não há dúvidas que ele deseja destacar as diferenças entre elas. No caso do movimento espírita, uma das primeiras tipologias que lemos está no capítulo Do Método em O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec.

Proselitismo e incredulidade

Kardec começa o capítulo discutindo o proselitismo, que considera natural, e propõe que se faça pela instrução. Aqui ele desenvolve uma opinião muito interessante, da qual geralmente não damos muita atenção: ele considera que tentar convencer materialistas, pessoas que não acreditam na existência do espírito, via de regra, é perda de tempo.

Ele analisa os que chamou de “materialistas por sistema”, definindo-os como quem considera o homem como “simples máquina, que funciona enquanto está montada, que se desarranja e de que, após a morte, só resta a carcaça”. Se aceitarmos variações sobre este tema, temos nos dias de hoje os que se intitulam céticos, e se consideram adeptos das ciências, negando sistematicamente qualquer avanço que se faça na pesquisa do espírito.

“Com tal gente nada há o que fazer: ninguém mesmo deve se deixar iludir pelo falso tom de sinceridade dos que dizem: fazei que eu veja e acreditarei. Outros são mais francos e dizem sem rebuço: ainda que eu visse, não acreditaria.”

Kardec conhecia o lado humano dos supostos investigadores: “A maioria deles se obstina por orgulho na opinião que professa”.

Tipos de espíritas

Se passarmos as páginas vemos que ele se voltou ao movimento espírita de sua época. E analisando os que se interessavam pela proposta espírita, estabeleceu alguns tipos ou classes.

Ele começa pelos que, desconhecendo a proposta espírita, não a tendo estudado, se identificam com os grandes princípios da doutrina. Ele os chama de espíritas sem o saberem. Hoje há um grande número de pessoas que simpatizam-se com alguns princípios nucleares da proposta espírita, como a existência de Deus, a imortalidade da alma, a mediunidade, a reencarnação, a ética racional e humanista, cristã em seus princípios. Eles não se identificam como espíritas, mas se sentem confortáveis quando em contato com nossa literatura e, eventualmente, em nossas reuniões.

Entre os que estudaram, ele identificou os que ficam apenas na esfera das manifestações espirituais. Kardec os chamou de espíritas experimentadores. Ele tirou o termo experimentador de “experiência”, o conhecimento oriundo geralmente da observação, dos órgãos dos sentidos. Mais do que meros curiosos, que ainda vemos chegar nos centros espíritas, eles são pessoas que estudam e dedicam-se ao espiritismo como um conhecimento de fenômenos espirituais, e não como uma abordagem de conhecimento do ser humano. Kardec não condena o estudo dos fenômenos espirituais, quando cria este tipo-ideal, ele critica que os espíritas se mantenham exclusivamente nesta esfera de investigação ou estudo.

O próximo tipo que ele propôs são os espíritas imperfeitos. Estes estenderam seus estudos à esfera da filosofia espírita e da ética espírita. Eles sabem que os fenômenos são um dos pilares de uma nova visão de mundo, que tem uma proposta para os homens. Sabem que o estudo da vida após a morte não é mero diletantismo, mas desvela uma nova forma de ver as pessoas, seus relacionamentos, a forma de lidar com seus sentimentos, e entende a necessidade de se ter uma ação e uma vivência interior coerente com esta nova realidade. No entanto, deixam para lá. Vivem suas vidas como se nada disso fosse real. Em linguagem cristã, são homens e mulheres do mundo, dos valores encontrados e aceitos na trama social em que se encontram. Não se acham convencidos realmente da necessidade de transformarem-se.  Hoje em dia eles se contam aos milhões, em meio aos que se auto-intitulam espíritas ou apenas simpatizantes.

O terceiro tipo que ele propôs, é muito interessante, se analisado à luz da história do cristianismo. Além do estudo dos fenômenos e da filosofia e ética espíritas, eles se acham convencidos da importância de se ter uma ação diferente no mundo. Esta ação é ao mesmo tempo, social e psicológica. Valorizam a caridade (que em outros momentos de sua obra Kardec distingue do assistencialismo, e categoriza em material e moral). Eles encaram a existência terrena como “prova passageira”. 

Kardec os chama de “verdadeiros espíritas” ou “espíritas cristãos”. É curioso que Kardec não faz qualquer paralelo com os santos, do movimento cristão. Ele considera os espíritas cristãos como pessoas com suas lutas interiores e exteriores, não como um grupo de pessoas de vida exemplar, capazes de enfrentar o martírio, que apresentam virtudes heroicas e que são capazes de produzir milagres.  Uma leitura do capítulo “Sede Perfeitos”, em O Evangelho segundo o Espiritismo, é bem esclarecedor.

Por fim, Allan Kardec fala dos espíritas exaltados. Eles são uma mistura de ingenuidade e entusiasmo, uma forma de fanatismo. Eles acolhem de forma acrítica o que dizem os médiuns, e apesar da boa-fé, são ingênuos. Eles também povoam o movimento espírita e fazem muitos estragos quando se tornam divulgadores do espiritismo, de alguma forma, porque projetam para as pessoas uma imagem muito diferenciada da proposta racional espírita.


Outros autores fizeram tipologias de espíritas em outros momentos históricos, como é o caso de Leopoldo Machado. Espero poder retornar ao tema no futuro, porque o texto já está bem extenso.

6.6.11

OS TRABALHADORES DA VINHA


Judeus trabalhando na vinha

Jesus falava às massas e utilizava um recurso curioso para que seus ensinos e histórias permanecessem nas mentes dos que o assistiam. Ele escolhia narrativas de conclusão insólita, aparentemente injusta, o que faz com que todos se questionem: o que ele quer dizer com isso?

As parábolas instigantes sobreviveram ao tempo.

A parábola dos trabalhadores da vinha é conhecida no meio espírita como a parábola dos trabalhadores das diversas horas do dia. Kardec dedicou um capítulo inteiro ao seu comentário em "O Evangelho Segundo o Espiritismo".

Contexto

A história é contada apenas no capítulo 20 do evangelho de Mateus, o que não deixa muitas pistas sobre o contexto. No capítulo 19, Jesus parece estar instruindo seus discípulos e apóstolos. Ele fala dos eunucos pelo amor do reino de Deus e do perigo das riquezas (a história do moço rico).


As Relações de Trabalho

No Deuteronômio, um dos livros do pentateuco moisaico, encontram-se regras para a contratação de trabalho (24:14-15). Os pagamentos eram diários, e era proibida a exploração do trabalhador pobre. Iahweh afirma aos empregadores que não se esquecessem que a vida do trabalhador pobre e de sua família depende do pagamento da jornada de trabalho.

Um bom conselho para os dias de hoje, mas interessa-nos saber que era comum e usual a contratação de trabalhadores no período apontado por Jesus.


Denário Romano de Prata


No império romano à época, era usual o pagamento do dia de trabalho com o valor de um denário, que valia "dez asses" (daí a origem do nome), e segundo a wiki era suficiente para comprar 8 quilos de pão, ou seja, permitia com sobra a alimentação de uma família.

A história


Vinha


Como a maioria das parábolas, Jesus conta a história para referir-se ao Reino dos Céus. Um dono de vinha sai em busca de trabalhadores e os encontra no mercado no início do dia. Acerta com eles o pagamento de um denário e os envia para a vinha. Como o número de trabalhadores fosse insuficiente, o dono da vinha volta na terceira hora, na sexta, na nona e na undécima hora. Em todos os casos pergunta aos tabalhadores por que estavam na praça e todos alegam que não conseguiram trabalho. Ele oferece-lhes trabalho sem negociar valores. No momento do pagamento, ele dá um denário a todos, a começar dos trabalhadores da última hora, que trabalharam apenas uma hora ou menos, o que gera murmúrios e reclamações entre os que trabalharam doze horas. O dono da vinha (que também é pai de família) reafirma o cumprimento do acordo feito no início do dia e pergunta-lhes: "é mau o teu olho porque eu sou bom?"

Jesus conclui a história com a famosa frase: "os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos."

Interpretação

Em "O evangelho segundo o espiritismo", Kardec publica quatro comunicações de espíritos que se referem à parábola. Constantino (Bordeaux, 1863) interpreta os trabalhadores da última hora aos espíritas e recomenda que empreguem bem sua existência, que não é mais que "um instante fugidio na imensidade dos tempos".

Outra comunicação é de Henri Heine (Paris, 1863), que considera Moisés, os apóstolos cristãos, os mártires cristãos, os pais da igreja, sábios e filósofos como os trabalhadores das diversas horas do dia, e reafirma entender os espíritas como trabalhadores da última hora.



Heinrich Heine


Erasto (Paris, 1863) recomenda aos espíritas que divulguem a reencarnação e a elevação dos espíritos, e antecipa que os grandes desprezariam seu discurso, os sábios exigiriam provas e os humildes a aceitariam.

Por fim, o Espírito Verdade, considera ditosos os que trabalharem nos campos do Senhor (a Terra) sem interesses e motivados pela caridade.


Reflexões de Espíritas: Schutel e Vinícius 


Cairbar Schutel escreveu em seu "Parábolas e ensinos de Jesus" algumas páginas explicando a parábola e comentando-a. Ele encontra justiça na atitude do dono da vinha, argumentando ser possível que os trabalhadores da undécima hora tivessem se esforçado mais que os demais.


Cairbar Schutel


Schutel foi muito perseguido pela igreja  católica de sua época e parece fazer um desabafo em seu texto, criticando espíritas que não se afirmavam publicamente como tal, escolhendo o trabalho do atendimento aos espíritos, por exemplo. Entendo sua situação, mas não consigo ver a questão da mesma forma, passadas muitas décadas.

Vinícius dedicou dois capítulos de livros a comentar o tema.

Ele também traz o parábola para os dias de hoje, e compara o ato dos trabalhadores da undécima hora ao da viúva do gazofilácio, que Jesus destaca não pelo volume dos resultados, mas pelo sentido subjetivo do ato. Ao contrário da tradição beneditina e taylorista, Vinícius valoriza o trabalho em si, e não o tempo de trabalho.



Ele desenvolve seu pensamento de tal forma que parece estar escrevendo para os dias de hoje. Fala de pessoas que se "exaurem em uma labuta febril e penosa", querendo ser mais meritória aos olhos de Deus.

Pedro de Camargo fala de espíritas que negligenciam seus deveres familiares, profissionais e sociais em função de uma agenda cheia de compromissos espíritas visando, calculistas, serem mais merecedores aos olhos de Deus. Vinicius destaca outra frase do Cristo: "Misericórdia quero e não sacrifício"

26.1.10

O DETERMINISMO DOS DEUSES GREGOS

Figura 1: As Moiras por Strudwick (1885)
Um dos elementos recorrentes do mito grego diz respeito ao determinismo dos acontecimentos da vida dos homens pelos deuses. Em uma análise política, poder-se-ia dizer que interessava às cidades gregas que os seus cidadãos e os seus escravos ocupassem seus lugares sociais sem questionar, especialmente quando o assunto era enviar as pessoas para a morte na guerra.
A vontade dos deuses seria uma explicação suficiente para tudo o que viesse a acontecer com os habitantes das cidades gregas, especialmente o que acontecesse de mal.
Um dos mitos criados pelos gregos é o das moiras (conhecidas como parcas pelos romanos), deusas que teciam o destino dos homens. Nascimento, acontecimentos da vida e morte eram representados pelo fio da vida. Este fio era fiado, enrolado e cortado, como simbologia da existência. Homero cita as moiras em seus épicos.
Uma das histórias gregas mais conhecidas na ocidentalidade sobre a inexistência da liberdade de escolha dos homens é a de Édipo (Sófocles), que tem revelado o seu destino pelo Oráculo de Delfos e que foge de casa para evitá-lo. Ele cumpre a trágica predição, de que mataria seu pai e casar-se-ia com sua mãe, Jocasta.
Esta crença tem sido passada de cultura a cultura, e as moiras têm equivalentes em diversos povos da Europa.
O mito grego assemelha-se às explicações dadas pelas pessoas de hoje, ante as dificuldades da vida, dizendo tratar-se da "vontade de deus" o que é muito diferente do pensamento espírita.
O Espiritismo, herdeiro de tradições filosóficas que vão dos pré-socráticos aos modernos, defende a existência de um livre-arbítrio limitado, no qual o Espírito se torna "Moira" de sua própria existência, limitada parcialmente pela sua biologia, pela sociedade em que vive, pelos impulsos psicológicos que traz e pelas relações espirituais que estabelece ao longo da existência. Este homem é herdeiro de seus próprios atos e escolhas, mas também é construtor de seu futuro individual e coletivo.
Para conhecer mais sobre o pensamento espírita, leia "A Escolha das Provas" e "A Lei de Liberdade" em O Livro dos Espíritos, assim como o capítulo "Bem Aventurados os Aflitos" em O Evangelho Segundo o Espiritismo, ambos de Allan Kardec.