A atriz Julia Konrad caracterizada como Madame Japhet
Recebi um comentário imensamente interessante, que
possibilita muitas análises, feito pelo leitor Paulo Sérgio Fonseca Antunes.
Ele se refere à publicação “Curiosidades: Allan Kardec e Madame Japhet”. https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html
É o que está abaixo:
“Fala-se que o nome Allan Kardec foi revelado ao
Professor Rivail pelo espírito Zéfiro (Zephir), em reunião mediúnica na
residência das irmãs Baudin, utilizando-se para isto a cesta com um lápis
(roque). Na ocasião, o Professor tomou conhecimento de que Allan Kardec foi o
nome dele em uma milenar reencarnação entre os druidas. Sabe-se que a primeira
edição de O livro dos Espíritos continha pouco mais de 400 perguntas, e que na
segunda edição passou a ter mais de 1000 perguntas, e que, a família Baudin
saiu de Paris ainda no segundo semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a
outra médium (sonâmbula profissional) sobrecarregada. Médiuns profissionais
existem até nos dias de hoje. Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não
havia acontecido, quem fazia ideia de que isto seria utilizar erradamente este
dom? Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet colaborou gratuitamente
sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que desejasse ter seu nome
divulgado no livro para fazer um marketing pessoal. Fala-se que após o
desencarne do Mestre de Lyon (1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio
ganancioso com Pierre Gaetan Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas, criada por Allan Kardec em janeiro de 1858. Sendo assim, não
é de se estranhar que a médium Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava
profissionalmente a mediunidade há mais de dez anos, tivesse atitudes mais
nobres. Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a
qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação,
pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de
30 anos apenas entre duas reencarnações.”
Vou discorrer sobre as muitas questões em forma de itens:
1. “Fala-se...” Essa foi a primeira observação
que fiz. Para se fazer história, ou mesmo apenas memória, é preciso conhecer a
fonte, de preferência a fonte primária. Isso porque cada autor conta a história
de um jeito, e tem uma lógica e um conjunto de fontes como base para construção
do seu discurso. Tudo o que o Paulo falou, é mais ou menos verdade, mas foi
tirado de autores muito diferentes, então ficou uma espécie de “samba do
crioulo doido” (perdoem a expressão, não sei se ainda é politicamente correta,
mas não tem nenhuma intenção racista ao ser usada).
2. Eu citei como fonte no artigo que originou as
dúvidas, um jornal inglês e um texto atribuído a Alexander Aksakof. Todos
sabemos que Aksakof não é nenhum especialista em Allan Kardec, e que os
lamentos da Madame Japhet criaram uma espécie de “resistência” ou “preconceito”
dele com relação ao fundador do espiritismo. Coisas de ser humano!
3. O nome de Allan Kardec foi revelado pelo
espírito Zéfiro na casa das Baudin, usando um lápis (roque).
Eu procurei em Obras Póstumas e não
encontrei essas informações, embora lá Kardec fale das Baudin e de Zéfiro.
Quem atribui o nome de Roc (e não
roque) ao “lápis de pedra com que os espíritos rabiscavam em uma ardósia comum”
(p. 98-99) foi Canuto Abreu, no livro “O livro dos espíritos e sua tradição
histórica e literária”. Como o título já o disse, o livro não é exclusivamente
histórico e Canuto escreveu do que ouviu falar, sem os rigores da metodologia
da história oral, ou seja, ele aceita que algumas coisas são imaginárias,
lendas, que passaram a ser contadas e recontadas no meio espírita francês, que
ele conheceu no início do século 20. Não dá para citar como se fosse uma fonte
histórica, portanto. Nesse livro também não encontrei menção à origem do nome
de Kardec, apenas uma menção à sua reencarnação no meio dos druidas (p. 99).
Consultei, então um belo trabalho de
Eugênio Lara (https://questaoespirita.blogspot.com/2013/08/sobre-o-pseudonimo-de-denizard-rivail.html
) que mostra diversas fontes, mas admitindo a tradição oral e a falta de
documentação clara do próprio Kardec. Quem sabe a publicação das cartas de
Kardec esclareça essa questão.
Primeira edição de "O livro dos espíritos"
4. A primeira edição de “O Livro dos Espíritos”
tinha 400 perguntas e a segunda tinha “mais de mil perguntas”.
Tenho duas traduções da primeira
edição de O Livro dos Espíritos. A de Canuto Abreu e a de Evandro Noleto
Bezerra. Ambas têm 501 perguntas, fora os elementos pré-textuais e o epílogo.
A edição atualmente publicada de “O
livro dos espíritos” tem 1019 perguntas, os elementos pré-textuais e uma
conclusão (Não mais epílogo). Consultei duas traduções atuais, a de Evandro
Noleto Bezerra (Kindle) e a comemorativa de Guillon Ribeiro.
Sobre as mudanças realizadas por Allan
Kardec em “O Livro dos espíritos”, enquanto estava encarnado se pode ler o “O
livro dos espíritos: uma análise comparativa entre a 1ª., a 2ª e até a 16ª
edições”, de Luis Jorge Lira Neto, no livro “O espiritismo da França ao Brasil:
estudos escolhidos.”, publicado pela USE-SP e pela LIHPE.
5. "a família Baudin saiu de Paris ainda no segundo
semestre de 1857, o que, provavelmente, deixou a outra médium (sonâmbula
profissional) sobrecarregada”
Essa é a menos provável de todas as
afirmações até agora. Kardec fala em Obras Póstumas que as duas Baudin se
casaram no fim do ano após a publicação de “O Livro dos Espíritos” e que “a
família se dispersou” (p. 271).
Quem auxiliou bastante na revisão de “O Livro
dos Espíritos” foi a Mme. Japhet, como publiquei no texto do EC em questão https://espiritismocomentado.blogspot.com/2019/05/curiosidades-allan-kardec-e-madame.html
segundo o próprio Allan Kardec. Japhet era sonâmbula profissional, mas
trabalhou voluntariamente no livro, e nunca lhe faltaram médiuns. Na
página 270 de “Obras póstumas”, 17ª edição, AK fala no concurso de “mais de dez
médiuns” no trabalho. Na fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
Kardec cita Ermance Dufaux como médium principal (Obras Póstumas, página 295) e
uma frequência no local de “15 a 20 pessoas”, ocasionalmente de até 30 pessoas.
6. "Médiuns profissionais existem até nos dias de hoje.
Enquanto a codificação do Espiritismo ainda não havia acontecido, quem fazia
ideia de que isto seria utilizar erradamente este dom?"
Com base nas fontes citadas, cabem dois
comentários. Primeiro, já citado, que Kardec agradeceu a colaboração voluntária
de Mme. Japhet. Outro estudo, que foge ao escopo desse comentário é distinguir
e comparar o sonambulismo, em prática em Paris antes do espiritismo, fruto do
movimento que o magnetismo animal de Mesmer provocou, da prática mediúnica,
talvez existente em Paris sob a influência dos trabalhos de Emmanuel Swedenborg.
7.
Ao que parece, a Mademoiselle Ruth Celline Japhet
colaborou gratuitamente sim no trabalho de Allan Kardec, mas, é possível que
desejasse ter seu nome divulgado no livro para fazer um marketing pessoal.
Concordo. Acho bem possível.
Rue de Valois, local da primeira sede da SPEE
8.
Fala-se que após o desencarne do Mestre de Lyon
(1869), Jean Baptiste Roustaing em conluio ganancioso com Pierre Gaetan
Leymarie destruíram a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, criada por
Allan Kardec em janeiro de 1858.
Dois autores recentes têm promovido
uma releitura da história e da imagem que tínhamos de Pierre-Gaetan Leymarie:
Simoni Privato e Adriano Calsone. Eles publicaram respectivamente “O legado de
Allan Kardec” e “Em nome de Kardec”.
A ideia de um conluio entre Roustaing
e Leymarie não tem base historiográfica. Após a saída da prisão Leymarie se
aproximou de diversas instituições não-espíritas: a sociedade teosófica
(Privato, p. 223, Calsone p. 55), da pneumatologia universal (Privato, p. 224)
e do roustainguismo através de Jean Guérin, divulgador de Roustaing, que
ofereceu dinheiro para que a “Sociedade Científica de Estudos Psicológicos”,
dirigida por Leymarie instituísse um concurso literário espiritualista
(Privato, p. 239). Havia, da parte de Guérin, o interesse de divulgar o roustainguismo,
e Leymarie administrava uma empresa em situação econômica frágil.
Não vejo Leymarie, nem como o herói,
construído a partir de sua possivelmente injusta prisão em nome do espiritismo,
nem como um vilão, que sempre desejou enriquecer a partir do espiritismo, mas
como homem frágil, com bons e maus momentos, que tornou-se administrador da
Sociedade Anônima, continuadora da obra de Kardec, em 1871. (Privato, cap. 10 e
11). Percebo Leymarie como um sucessor da obra de Kardec sem a formação do
mestre, sem conhecimento científico e filosófico. Incapaz de perceber a
superioridade da ontologia, da ética e da epistemologia kardequianas, ele foi
se encantando com outras doutrinas que surgiam posteriormente, tinham apelo
espiritualista e se consideravam superiores. Ele foi permitindo uma espécie de
“canto de sereia”, em que era cooptado com o oferecimento de honrarias, cargos e posições
institucionais. E foi acreditando que as novas contribuições que chegavam
deveriam ser incluídas na Livraria e na Revista Espírita, e que dariam um novo
fôlego aos negócios e um avanço à doutrina espírita, o que, na verdade, era
retrocesso, porque ela perderia seu caráter racional e empírico, tornando-se um
movimento cada vez mais místico e ocultista. A reação às suas decisões
infelizes se deu através de espíritas conhecedores de Kardec e capazes de
valorizar o caráter filosófico e científico do espiritismo, dentre os quais se
destacam Léon Denis e Gabriel Dellane.
Quanto à Sociedade Parisiense de
Estudos Espíritas, o que foi relatado também não é justo. Ela foi transformada em Sociedade
Anônima da Caixa Geral do Espiritismo, dando prosseguimento ao Projeto de Allan
Kardec de 1868, na casa de Amelie, sua viúva. Esta sociedade foi constituída
para dar continuidade à Revista Espírita e “publicar os livros de Allan Kardec
e outras obras sobre espiritismo” (Privato, p. 132-133), com administradores
remunerados (Privato, p. 138). Cabe informar que Leymarie não era membro das
diretorias, nem do conselho supervisor, não tendo sido liderança na mudança da
feição da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. De instituição
associativa, ela foi transformada em instituição associativa e comercial para
que os livros e revistas espíritas pudessem ser editados e comercializados e
render recursos para a mesma, dispensando-se a intermediação das editoras até
então parceiras.
9.
Sendo assim, não é de se estranhar que a médium
Ruth Celline Japhet, com quem Roustaing operava profissionalmente a mediunidade
há mais de dez anos, tivesse atitudes mais nobres.
Aqui há um grande equívoco. Japhet não
tinha qualquer ligação com J.B.Roustaing. Era uma sonâmbula levada ao transe
pelo magnetizador Roustan. Os nomes se parecem, mas são pessoas totalmente
distintas, que viviam em lugares distintos.
Arnaldo Rocha
10 "Fala-se que Chico Xavier foi reencarnação de Ruth Celine Japhet, a qual, teria desencarnado nos anos 1880. Considero pouco provável essa afirmação, pois, acho que um espírito não mudaria tanto sua maneira de ser, tendo menos de 30 anos apenas entre duas reencarnações."
Quem afirma que Chico foi a
reencarnação de Japhet foi Arnaldo Rocha, viúvo de Meimei (Irma de Castro
Rocha) e amigo próximo de Chico Xavier por décadas. A avaliação de Japhet pelo autor foi apressada, em função da confusão Roustan-Roustaing e da questão financeira
indevidamente analisada na história. Embora a afirmação de vidas passadas
demande sempre evidências sólidas para que não seja mera especulação, fica
aberta a possibilidade das duas pessoas serem o mesmo espírito.
Concluindo:
Achei muito corajoso e interessante o
Paulo Sérgio compartilhar conosco o que ouviu falar e o que concluiu a partir
disso. Todavia, na minha opinião, a questão da história do espiritismo precisa
ser discutida a partir da análise de fontes e de autores, o risco de se ficar
construindo hipóteses em cima de “ouvir falar” é criar versões sem sustentação
e totalmente afastadas do que já se conhece.
Não tenho a pretensão de ter uma “versão
verdadeira” da história, mas apenas uma análise fundamentada, que para ser
alterada (e somos todos falíveis) precisa ser contraposta com novas fontes
primárias, novos autores, ou pelo menos um conhecimento produzido com os
cuidados que a história oral propõe.
Não tive fôlego para citar os trabalhos
que o Carlos Seth e outros estudiosos estão publicando atualmente, com base em
análise de periódicos franceses e livros da época, coisa que ficou mais fácil
com a digitalização e a internet.