Capa do livro
Jáder Sampaio
“Messe de Luz” e outras histórias é o título do novo livro lançado por Elaine Alves Ribeiro do Vale, graças à dedicação e trabalho de sua filha Clícia Ribeiro do Vale e da rede de amigos, escritores, editor, revisor, artista que ela mobilizou.
Na capa, ilustrada pelo artista Heleno Nunes, há a representação de uma mulher semeadora, pano na cabeça, cristã, pés descalços, que vai lançando, curvada e sob o sol vermelho, muitas sementes no solo, que já tem alguns brotos de plantas.
O livro tem o selo da Lachâtre, ou seja, é visto como livro espírita pelo seu conhecido editor, Pedro Camilo.
A apresentação é de Fátima Delgado, que hoje está em nossa casa e tem anos de dedicação à creche da Sociedade Espírita Joanna de Ângelis – SEJA, na cidade de Belo Horizonte. Na medida em que vamos lendo percebemos o laço sutil que une os participantes: a influência cultural e espiritual de Yvonne Pereira, que tem suas cartas para Elaine transcritas no livro.
A história é longa. Começa com uma obsessão de diversos familiares que suicidaram, a influência espiritual, uma experiência ruim com a medicina e a psiquiatria da época, e a voz de diversas pessoas, como a avó Querubina, que dizia: “Essa menina está é com espírito”, mesmo sendo evangélica. A narrativa apresenta com detalhes o contato “apavorado” com diversos espíritas de cidades diferentes, muitos já esquecidos por terem “trabalhado em silêncio” e não terem sido lembrados pelos seus. A Associação Espírita Célia Xavier entra na narrativa com a saudosa figura de Virgílio de Almeida, que levou dezenas de espíritas na Fazenda da família (Belo Vale, em Pains-MG) e pôs-se ao trabalho da mediunidade e da desobsessão. Escravos, um “trabalho enterrado” e muitas outras coisas vão sendo descobertas até que o sofrimento de Elaine vai sendo mitigado.
O texto tem “o dedo” da Dra. Míriam Hermeto, hoje professora do Departamento de História, que ensinou aos espíritas da região a empregar técnicas de história oral, para a construção de livros de memória, como esse. Elaine foi contando e Clícia gravou e transcreveu, por isso o leitor tem a impressão que está ouvindo uma contadora de histórias recordando e falando, com algum suave toque de mineiridade, na medida em que vai lendo. São “causos”, como dizemos por aqui, que se enredam como uma colcha de retalhos, cujo sentido só será apreendido pelo exame da peça completa, então vamos lendo, ávidos do enredo. Para mim, tem um significado especial porque conheci pessoalmente ou ouvi as histórias de quase todos os personagens, participei de muitos dos acontecimentos que são recordados, então me sinto como se fizesse uma viagem no tempo e recordo com muito afeto de tudo o que está no livro.
Elaine tem uma habilidade que só percebi durante a leitura. Ela é capaz de aproximar pessoas notáveis que trabalharam em diferentes grupos ou espaços sociais do movimento espírita, e retirar o melhor de cada um. Fiquei muito surpreso em encontrar Honório Abreu e Damasceno Sobral, de saudosa lembrança, ao longo do texto. Ela percebeu com clareza que não havia limites para a divulgação espírita nesses dois trabalhadores, nem de distância, nem de número de assistentes, nem de dinheiro para o deslocamento, nem nada. Aposentados, eles dedicaram o corpo e a alma à divulgação do Espiritismo, da obra de Kardec e de Chico Xavier, e são respeitados por quem quer que os tenha conhecido.
O nascimento do Centro Espírita “Messe de Luz” em Pains-MG, cujo nome veio da percepção de Seu Virgílio, já no plano espiritual, retrata o preconceito e a luta, não contra as pessoas, mas contra a intolerância, a ignorância, a violência dos pequenos atos e comentários contra o que não tivesse o rótulo de católico, mesmo estando ligado aos valores cristãos, contra o medo do novo, do diferente. A voz de Elaine, agora baixinha, contrapõe violência com caridade e amor. Na história, muitas pessoas lançaram pedras (e moedas de uma unidade econômica da época, cruzeiro, cruzado, sei lá o quê!), desligaram disjuntores, quebraram vidraças, fizeram barulho para calar os expositores e outras atitudes pequenas, próprias de quem está na infância do espírito. Essas memórias são quase confessadas, recordadas, talvez com sofrimento, mas seguidas de satisfação, quando se descobre que o “centro” auxiliou mesmo quem se declarou inimigo. É lindo ler isso! Apercebo-me que convivi com uma personagem muito semelhante aos heróis cristãos, que empunham a compreensão e a disposição de ajudar como armas poderosas que quebram muralhas de medo e preconceito.
Leprosos (assim eram chamados os hansenianos), garimpeiros miseráveis, presidiários, pobres em sofrimento e com fome, crianças de pés descalços, vão desfilando aos olhos da nossa imaginação em cada lembrança que é contada. Eles são todos tratados como irmãos, e não como párias ou marginais. Depressão, desespero, ódio e outras doenças da alma, vão sendo tratados com o diálogo, a suave influência da imposição de mãos sobre a cabeça, a voz de espíritos bondosos e sábios, a inclusão nos grupos de trabalho a favor dos excluídos e dos que sofrem, com os livros oriundos das mãos de médiuns que dormiam tarde e acordavam cedo para realizar sua parte no pacto espírita da fraternidade.
A narrativa sai de Minas Gerais e vai para o sul do estado do Pará, repleto de contradições, de sofrimento, de sonhos, e carente de luz, não a luz do sol, nem a luz levada pelos fios de cobre, mas a luz da alma, aquela que dá sentido à vida. Pequenos trechos de estradas malconservadas que levam dias para ser percorridos, quando aqui, no Estado de Minas Gerais, teriam sido gastas horas, e às vezes minutos.
Os livros espíritas, que ela aprendeu a divulgar em praça pública, são levados pelos caminhos de terra, em ambiente chuvoso, por lugares inóspitos. Trens cujo ponto final está no meio da majestosa floresta amazônica, exigindo “baldeação” em veículos movidos com gasolina ou álcool, passando por estradas barrentas ou mesmo trilhas esburacadas. A criação de um centro espírita a mais, em Marabá, que se tornou um centro de luz, um lugar em que se recebem os miseráveis, diminuem a fome, fazem apologia do bem que podemos fazer e não do mal que corre de boca em boca, mesmo dos que nada testemunharam.
De volta a Minas, Elaine se recorda do Yoga, em academias, mas também em salas de aula de escolas, das muitas cidades em que ela esteve. Ela não foi apenas semeadora, foi andarilha, deixando sementes de árvores frutíferas onde passava, movida pela esperança de crescimento no futuro, que talvez, como Moisés, ela não terá o prazer de ver florescer.
Minha modesta contribuição no projeto foi com fotos e biografias: a de Virgílio de Almeida, que é apenas uma teimosia para que não se esqueçam dele, e a de Marlene Assis, outra lutadora pela doutrina.
As poesias, algumas premiadas, terminam o livro. É onde podemos ler a alma da autora, seus anseios, suas preocupações, sua visão aguçada do mundo em que viveu, sua condição de mulher.
Foram impressos poucos livros, então só pude trazer uma dezena, para dar a alguns que viveram estas histórias, e deixar na livraria da Associação Espírita Célia Xavier para venda. Quem quiser ler, e não souber onde lançará os olhos por uma tarde, essas são minhas impressões.