28.3.18

CONHECENDO RAUL TEIXEIRA







Há alguns anos tenho me interessado por biografias de pessoas que deram sua contribuição ao espiritismo, como Allan Kardec, Amélie Grabrielle Boudet, Gabriel Delanne, Léon Denis, Camille Flammarion, Chico Xavier, Yvonne Pereira, Deolindo Amorim, Herculano Pires, Carlos Imbassahy, entre muitos outros.

Mais recentemente, escrevendo sobre nossas experiências na mediunidade, dei-me conta que tivemos contato direto com um médium e expositor muito atuante, sobre o qual não havia lido muita coisa escrita, mas com quem havia convivido ao longo de muitos anos.

Descobri, surpreso, que tinha um livro voltado ao relato e análise das experiências de Raul Teixeira na minha própria biblioteca, comprado para leitura posterior, mas esquecido na estante. Ele se intitula “Raul Teixeira, um homem no mundo: 40 anos de oratória espírita”, publicado pela editora Fráter em 2008, três anos antes do acidente vascular cerebral que o acometeu em um voo para os Estados Unidos e que deixou sequelas.

Conheci Raul no final dos anos 1970, quando ele expunha frequentemente na Associação Espírita Célia Xavier, e em casas espíritas das quais nos aproximamos em função dos trabalhos dele no interior de Minas Gerais.

O autor do livro, Cezar Braga Said, residente na baixada fluminense, mestre em educação, narra muitos episódios que conhecíamos do relato do próprio Raul, mas também alguns que não imaginávamos. Raul, como Yvonne, como Chico, como Elisabeth D’Esperance, Divaldo Franco e outros médiuns, apresentava percepções de espíritos desde a infância. Criado em contato com as instituições cristãs, conheceu uma mocidade espírita na juventude, mercê do convite de um amigo e de sua família.

Estudou o espiritismo com dedicação e mostrou de imediato suas habilidades com a exposição, o que fez com que recebesse cada vez mais convites de casas espíritas no Rio de Janeiro e fora dele.

Desde o final dos anos 1960, conheceu e ligou-se com médiuns bastante conhecidos, como Chico Xavier, Divaldo Franco e Yvonne Pereira. Said focalizou seus aprendizados com estes trabalhadores devotados da mediunidade e do espiritismo.

A mediunidade foi desenvolvida posteriormente, inicialmente por um espírito chamado Luiz, que reencarnou e depois com a orientação de Camilo, um espírito que teve experiências no passado em meio aos franciscanos, mas outras encarnações.

O livro de Said é facílimo de se ler. São episódios pontuais da vida de Raul, comentados com moderação. O livro se preocupa mais com as experiências formadoras e marcantes da vida do médium, que com a apresentação de datas e títulos. É uma biografia psicológica, que deixa o leitor na situação de quem está conversando com o médium ao lado de uma mesa de café com quitandas.

Li em dois dias cheios de outras atividades, com uma fluidez, em função da organização e linguagem de Said. O texto, talvez pela convivência com o médium, prende àqueles que conviveram com eles, porque é mais uma revivescência que um aprendizado.

Recomendo a leitura aos que não o conheceram pessoalmente, assim como a leitura das dezenas de livros que ele psicografou, voltados a questões da vivência do espiritismo e do espírita no mundo, como Cezar bem escolheu para o título.

Título: Raul Teixeira, um homem no mundo: 40 anos de oratória espírita

Autor: Cezar Braga Said

Editora: Fráter

191 páginas – ano 2008

23.3.18

ABSTENÇÃO DE CARNE NA SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO


Família


Chegamos ao interior de Minas Gerais em plena sexta-feira da paixão. Nos anos 1950, mais de 90% da população brasileira era católica e os ritos e recomendações eclesiásticos eram seguidos. Neste feriado eram fechados quase todos os estabelecimentos das cidades, e era amplamente difundida a abstenção do uso de carnes vermelhas e de aves.

O movimento da cidade se parecia com o de um sábado normal, com o comércio aberto e os bancos e escolas fechados. Os ovos de chocolate tiveram um ano tímido e amargo. Os problemas com a economia e a esperança de conseguir uns trocados foram maiores que o apelo da fé e o ambiente de silêncio respeitoso pela lembrança da crucificação do Rabi tornado deus pelos interesses dos imperadores romanos do século IV.

Meu sogro sempre nos conta uma história do passado, com um tom um pouco maroto, no qual ele e os amigos, na juventude, combinaram com o dono de um pequeno restaurante do interior preparar carne de boi. O dono se recusou, mas aceitou recebê-los no botequim após a meia noite. Na hora combinada, eles foram chegando, aos poucos, abrindo a porta encostada e se assentando para consumir a iguaria. Só depois da meia noite se ouvia o chiado da carne sendo passada e os amigos felizes, prestes a consumir uma ceia inesperada. Roma locuta, causa finita.

A abstenção da carne

A abstenção do consumo de carnes na sexta-feira da paixão é uma orientação da igreja católica. Procurei as origens desta prática, mas não encontrei nada conclusivo. O consumo de peixes (e em uma fonte encontrei também outras carnes de animais como rãs, ostras, etc.) é justificado por alguns autores em função da etimologia latina da palavra, que vem de carnis, e que seria empregada apenas para animais de sangue vermelho. Portanto, nesta acepção, a abstenção de carne não atingiria peixes, anfíbios e répteis. O blog Aleteia[1] dá outra explicação. Diz tratar-se de proibição das carnes de animais criados sobre a terra (incluindo aves...) e destaca que as carnes eram usadas como objeto de celebração (o bezerro cevado, da parábola do filho pródigo, por exemplo), não sendo correto celebrar-se a sofrida morte de Jesus.

A explicação mais comum é que se trataria de uma espécie de privação voluntária, com a intenção de recordar o sofrimento de Jesus, da via dolorosa ao falecimento na cruz. Na idade média a carne vermelha seria um alimento nobre e caro, e sua abstenção tem o sentido de renúncia. Hoje, a industrialização tornou as carnes bem mais acessíveis, especialmente em nosso país, onde ela é muito produzida. Há carnes vermelhas de preços muito variados, ao mesmo tempo em que peixes e derivados podem ser bem sofisticados e caros. Imagine um cristão que se abstém de carne e consome caviar, em seu lugar, ou um corte importado de bacalhau. A prática exterior, portanto, perdeu seu sentido original.

O consumo de bacalhau no Brasil parece vir da culinária portuguesa, já que em outros países não há qualquer recomendação do uso desta forma de preparo de peixe e a abstenção da sexta-feira da paixão. Ouvi rumores que havia interesses econômicos da Igreja por detrás da recomendação do consumo de peixes, mas não encontrei nenhum registro disto.

Nem no templo, nem no monte

Quanto mais estudamos, mais se vê que a abstenção do uso de carnes foi perdendo seu sentido original e seu contexto. É o risco das práticas exteriores, que se tornam uma espécie de costume vazio do seu significado original.

Para nós, espíritas, as práticas exteriores devem ceder lugar à interioridade. Para Jesus, também. Quando questionado pela mulher samaritana sobre as diferenças de culto exterior entre judeus e samaritanos[2] o mestre ensinou:

“Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.” (João 4:21-24)

Concluindo

A abstenção da carne, ato exterior, é pouco importante para os cristãos-espíritas. A data, e o feriado religioso, cada vez mais são usados para o descanso do trabalho, o lazer e o encontro com os familiares, assim como outras datas religiosas, cada vez mais vazias do significado religioso.

Uma vez que entendemos Jesus como modelo e mestre da humanidade, qual seria o nosso papel, como comunidade espírita, nesta e em outras datas? Em uma sociedade que vive cada vez mais em torno do dinheiro, do trabalho e do consumo, talvez haja uma oportunidade para recordar o Jesus que mostrou de forma marcante que a vida não se encerra na cruz do Gólgota e um incentivo para reunir-se a família.




[2] Os judeus, na época de Jesus, adoravam a Iavé no Templo de Salomão, em Jerusalém. Os samaritanos construíram um templo no monte Garizim (ou Gerizim) após o exílio, que teria sido destruído em 126 a.C., mas cujo local continuava sendo usado para sacrifícios e cultos. 


17.3.18

LAMMENAIS, A RELIGIÃO E ALLAN KARDEC



Estava preparando um estudo para o Grupo Scheilla, em Belo Horizonte, quando me deparei com o texto abaixo, ditado pelo espírito Lamennais, ao Sr. Didier (1861):


“As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, nunca. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, sobretudo nos corações, e assim não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível, mas a alma é imortal, porque una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, ela toma moralmente o aspecto da matéria; ela se divide e, por conseguinte, é submetida a provas infelizes nas suas novas reencarnações. A religião é, pois, a força do homem. Diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo. Diariamente ela ouve as blasfêmias que lhe são atiradas à face, mas, forte e inabalável como a Virgem, ela assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta”.


Allan Kardec faz uma avaliação muito curiosa dos ditados desse espírito, que foram agrupados sob o título "Meditações filosóficas e religiosas". Ele entende que Lamennais, longe de ser um espírito perfeito, traz muitas das questões de sua última encarnação, que são passíveis de crítica, mas entende também que seus ditados podem ser proveitosos, por isso os publica. Encontramos citações dos ditados de Lamennais em O Livro dos Espíritos. Veja a posição do codificador:

"Sem dúvida há em suas comunicações muitas coisas boas e belas, em termos de idéias e de estilo, mas há, evidentemente, as que podem ser submetidas à crítica, e pelas quais não assumimos nenhuma responsabilidade. Cada um tem a liberdade de aproveitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais, que sem contradita é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, e o caráter sombrio, melancólico e místico do homem incontestavelmente se reflete no do Espírito e, consequentemente, nas suas comunicações."

Independente da avaliação de Kardec sobre Lamennais, esse e outros ditados, nessa época, fizeram refletir ao Mestre Francês, que escreveria que o espiritismo entraria em seu período religioso. Kardec percebeu-se que, além das ideias sobre a vida após a morte e as evidências empíricas, era necessário o desenvolvimento de uma reflexão ética no contexto do espiritismo, o que fez com que publicasse, daí a três anos, "O evangelho segundo o espiritismo".

Para conhecermos quem foi esse espírito, retirei algumas informações convergentes  de duas ou três fontes diversas na internet que sintetizo abaixo:


Desencarnado em 1854, Félicité Robert de Lamennais passou a comunicar-se nas reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e foi muito citado por Allan Kardec ao longo de sua obra.

Lamennais foi um escritor e padre que viveu na França entre 1782 e 1854. Do ultramontanismo (católico muito conservador), ele se interessa pelas ideias liberais, como a separação entre o estado e a igreja, a liberdade de consciência, do ensino, da imprensa e de associação, voto popular e direito de insurreição do povo. 

Censurado pelo estado e pelo próprio Papa, em duas encíclicas, Lamennais passou a dedicar-se ao povo, e a escrever pelo socialismo e pela república. Ele é considerado por diversos autores um precursor do catolicismo social. Em sua época a ideia de socialismo estava associada à melhora das condições de vida da população trabalhadora.

5.3.18

O QUE ACONTECEU NO SEMINÁRIO "A GÊNESE: O RESGATE HISTÓRICO"?


Quase cinco horas da manhã, saí correndo de casa para não perder o voo das seis e vinte rumo a São Paulo. Tem coisas na vida que se não participarmos pessoalmente, nos arrependemos, e pensei com meus botões que esse seminário era uma delas.

Os quase quinze anos de ENLIHPE tiveram por fruto um grande número de amizades com pessoas dedicadas e estudiosas do espiritismo da região da capital paulistana e de outros lugares no Brasil. Eduardo Monteiro tinha razão, é preciso que nos vejamos pessoalmente, para criar vínculos que a internet não cria, e às vezes até atrapalha.

Fiquei acompanhando os bastidores da organização, mercê dos amigos trabalhadores que se empenharam em traduzir o livro de Simoni Privato, trazê-la ao Brasil para apresentar o resultado de suas pesquisas e dialogar sobre seus achados com os brasileiros. Inicialmente o evento seria no auditório da USE. Como ele lotou, foi para outro espaço, que também ficou pequeno. Escolheu-se, por fim, o Teatro Gamaro, que comportou confortavelmente as 450 pessoas que foram. Sabe-se lá quantas acompanharam a transmissão simultânea da Rede Amigo Espírita...

O interesse dos participantes era óbvio. A incansável Julia Nezu montou uma mesa com representantes de federativas (São Paulo, Minas Gerais, Amazonas e Amapá) e de associações espíritas presentes (Associação Jurídico Espírita do Rio de Janeiro e da Bahia; Instituto Espírita de Estudos Filosóficos e Associação Brasileira de Psicólogos Espíritas). Outras organizações espíritas estavam presentes, como a CEPA (Confederação Espírita Pan-Americana), Jornal Correio Fraterno, Instituto Espírita de Educação e TV Mundo Maior. Meu amigo Jáder Antunes foi colhido de surpresa, porque pensava que iria assistir confortavelmente no público, mas cumpriu o pedido da organização. A simpaticíssima presidente da Federação Espírita Amazonense, nos saudou um um abraço do tamanho de seu estado. A presença de Heloísa Pires atraiu aplausos dos presentes, uma vez que sua presença simbolizava todo o trabalho de Herculano Pires, da Paidéia (a editora das obras dele, e de outras), dela própria e de sua família, talvez menos conhecida fora de São Paulo, mas envolvida no trabalho de memória e divulgação do pensamento de Herculano. 

Uma carta do presidente da Confederação Espírita Argentina, Gustavo Martinez, foi lida, apresentando Simoni e desejando sucesso ao evento. Ao se preocupar com qual edição de A Gênese publicar, ele acabou sendo o desencadeador e o apoiador de todo o trabalho que a pesquisadora nos apresentou.  Nossos irmãos latino-americanos, mesmo sem tantos adeptos como o Brasil, são estudiosos e interessados no pensamento kardequiano, o que dá gosto de ver. Recordei-me da visão de futuro de Herculano, de Deolindo e de outros intelectuais espíritas do meio do século XX, que mantinham o intercâmbio e divulgavam o trabalho dos autores de língua hispânica no Brasil. 

Fiquei pensando em alguns professores do meio acadêmico, que têm uma visão do espiritismo como algo minúsculo, místico, assistencialista apenas baseados na imagem criada pela grande imprensa e no diz-que-diz que ouviram de alguém. Não têm noção de quanto trabalho esse pessoal idealista faz, de quanta produção intelectual é realizada, do impacto social das sociedades espíritas. Fiquei pensando também nas pessoas que se restringem à sua casa espírita, que não acompanham nada do que acontece fora de seu minúsculo espaço. Confesso que mesmo estando estudando o espiritismo há tantas décadas, ao ver tudo isso, me senti pequenino. Há muito o que estudar e aprender com Allan Kardec, para não dizer dos demais autores espíritas.

Tenho certeza que o público tinha muito mais do que a mesa pôde apresentar. Escritores, jornalistas, autores, membros de federativas locais. Tanta gente que abracei e com quem conversei rapidamente nos intervalos... Tantas notícias. Tantas realizações desse pessoal desde a última vez em que estive em São Paulo. 

Simoni preparou um novo seminário para seu público, mais rico do que o que apresentou na Confederação Espírita Argentina em 2017. Notei que ela conversou muito com os organizadores e analisou as perguntas que chegaram via internet. Preparou com cuidado o que ia falar e fez um trabalho bem interessante, mesmo para quem já havia lido o livro e assistido o seminário argentino. 

Chamou a atenção de todos a forma serena, mas clara e argumentada, como ela apresentou seu trabalho. Muitos olharam para si mesmos e questionaram-se se não teriam sido mais duros nas palavras caso estivessem em seu lugar. Simoni, contudo, não queria que a retórica fosse mais sonora que os fatos que ela levantou. O trabalho dela fala através dos documentos e argumentos. A síntese final deixa clara sua tese e como é sustentada.

Não vou escrever muito sobre a apresentação da diplomata, porque desejo que os leitores do Espiritismo Comentado assistam o vídeo acima e concluam por si. 

Dois depoimentos enriqueceram o evento. A falta de um parágrafo sobre o corpo de Jesus em "A Gênese" publicada em esperanto, e uma verdadeira aula sobre direito autoral dada por Manoel Felipe Menezes, do ministério público do Amapá, e sobre a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário.

Após toda essa nova informação que nos chega, considero que devemos manter o diálogo racional e aberto ao contradito, essência do espiritismo kardequiano, mas temos por dever a análise comparativa entre as quatro primeiras e a quinta edição de A Gênese, o que a própria mesa sugere ao apagar das luzes.