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5.7.23

O CARÁTER DO CONHECIMENTO ESPÍRITA

 



Allan Kardec trabalhou ao longo de sua obra com diversas formas de produção do conhecimentos, de diversos tipos, como bom intelectual e polímata que era. Para a Revista Espírita de julho a setembro de 2023, sugerimos um texto que aborda quando o codificador trabalhou com a filosofia e suas técnicas, a ciência natural, a ciência do espírito ou ciência humana e com conhecimentos de cujo religioso, nos quais empregou técnicas de hermenêutica com as novas possibilidades que os estudos espíritas trouxeram para a compreensão do universo e dos fenômenos espirituais.

A revista é gratuita e pode ser acessada para leitura em telas (notebook, tablets, smartphones, etc.) no seguinte endereço: 

https://cei-spiritistcouncil.com/revue-spirite/ É o número 12, mas os demais números da revista estão disponíveis gratuitamente nessa página.


O lançamento da revista, contendo falas rápidas dos autores dos diversos artigos pode ser vista pelo YouTube em: 

https://cei-spiritistcouncil.com/lancamento-revue-spirite-n12/



12.5.20

AUBRÉE E A QUESTÃO DO RELIGIONÁRIO

Marion Aubrée

Há cinco anos ajudei a organizar o 1º Encontro de Cultura e Pesquisa Espírita – XII Colóquio França-Brasil, que aconteceu no auditório da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Acabei ficando de “organizador fantasma”, porque o voo para o Rio atrasou e não pude participar da mesa de abertura, e nenhum dos trabalhadores do evento me reconhecia como tal. 

Tive, contudo uma experiência curiosa com a Dra. Marion Aubrée, coautora do livro “A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil”[1]. 

Sabendo da sua presença, levei um exemplar de seu livro, já esgotado em português, para ela autografar. Eu tenho uma coleção de livros autografados pelos respectivos autores e o momento de colher a dedicatória e assinatura, ainda que breve, é a oportunidade de conversar com quem lemos.

Levei o livro até ela, que para minha surpresa, me perguntou:

- Você é pesquisador ou espírita?

Diante do inusitado da questão (considerada indiscreta em nossa cultura), e da forma incisiva da pesquisadora, respondi:

- Espírita.

Não quis render o assunto.

Na verdade, me considero mais estudioso espírita que pesquisador de espiritismo. A carreira de pesquisador demanda formação, produção continuada em uma determinada linha de pesquisa, publicação em periódicos revistos por pares, interlocução com os demais pesquisadores da área e domínio da literatura até então publicada sobre seus temas de pesquisa, para começar. Acho que atendo apenas parcialmente esses critérios.

Outra questão pertinente, que afeta não apenas a ciência da religião, mas a ciência política e as outras ciências humanas e sociais, é a distinção entre o pesquisador e o religionário [2]  ou o cientista e o apologista de uma religião [3]. A questão não se reduz aos métodos empregados (o religionário pode usar métodos experimentais, observacionais, hermenêuticos e fenomenológicos de pesquisa), mas compreende também, como destacaria Kuhn, o diálogo com uma comunidade de cientistas da mesma área e o debate teórico (que envolve a apreensão de teorias explicativas concorrentes e uma argumentação racional).

Esta questão implica que as pessoas que estudam um determinado tema, devem ser capazes de certo afastamento dele, mas não há fronteiras rígidas sobre quem pode ou não estudá-lo. O cientista político precisa ser apolítico para ingressar nesta área do conhecimento? Quem estuda o feminino, precisa ser homem (para não estar imiscuído na condição do gênero) ou mulher (para ser capaz de identificar as idiossincrasias e valorizar as lutas do gênero)? Seria, portanto, um impedimento para um católico estudar o catolicismo e para um espírita estudar o espiritismo? 

Obviamente que não. Não há qualquer objeção para um paciente renal estudar medicina e tornar-se nefrologista. Não há questão de gênero relacionada à escolha pela ginecologia. Há, por outro lado, cuidados com o envolvimento emocional em questões da produção de conhecimento. 

Meu professor de Filosofia, Carlos Drawin, dizia que estamos imersos no positivismo. E essa distinção rigorosa entre religião, filosofia e ciência, com demérito das duas primeiras, é uma das propostas de Auguste Comte.

Não se advoga também ceticismo (radical) ou agnosticismo como cuidados para se fazer ciência da religião, posto que são posições pré-estabelecidas com relação à religião, em igual perspectiva à crença. Não importa, em física, se o cientista acredita ou não na “teoria das cordas”, ele não é obrigado a fazer uma declaração de fé (ou de isenção) para produzir conhecimento. É necessário que seu envolvimento não seja tão emocional que venha a perturbar sua avaliação, mas alguma crença na capacidade de explicação de sua teoria é até necessária para que ele se engaje no projeto de pesquisa.

A isenção não é uma atitude dada a priori, mas uma atitude que o pesquisador desenvolve, comprometendo-se a avaliar os diversos pontos de vista sobre seu objeto (ou sujeito) de pesquisa e a concluir a partir da força das evidências encontradas, da lógica empregada e de outros elementos que não a sua opinião anterior à pesquisa. O processo de pesquisa é um caminho para a construção de um conhecimento novo ou do qual o conhecimento antigo sai ainda mais confirmado.

A pergunta de Marion, portanto, poderia ter sido respondida diferentemente: sou um pesquisador que é, ao mesmo tempo, adepto do espiritismo, da mesma forma que um militante de qualquer partido político pode se tornar um cientista político (e os tínhamos na UFMG).

Bem, após ter exigido uma declaração de fé, a autora me escreveu uma dedicatória gentil: 

“Para Jáder, esse livro que mostra o estreitamento das nossas duas culturas através da crença espírita. Rio, 31/07/2015”


[1] AUBRÉE. Marion; LAPLANTINE, François. A mesa, o livro e os espíritos: gênese, evolução e atualidade do movimento social espírita entre França e Brasil. Maceió, EDUFAL, 2009. Traduzido por Maria Luíza Guarnieri Atik e outros.
[2] Do inglês religionist.
[3] CRUZ, Eduardo. Estatuto epistemológico da ciência da religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (org.) Compêndio de ciência da religião. São Paulo: Paulinas, Paulus, 2013. p.47.

14.11.19

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA AFETA O CÉREBRO?




Essa simpática cientista "em cima do muro", apresenta alguns resultados de ativação de diferentes áreas do cérebro em diferentes experiências religiosas. Ela mostra que diferentes religiões podem ter resultados satisfatórios para a vida das pessoas e que a experiência religiosa está associada a saúde mental e qualidade de vida, assim como as práticas nas comunidades religiosas, como música, meditação, ioga, dentro ou fora do contexto religioso, também o fazem.

Estamos diante de uma mudança de abordagem das religiões pelo meio acadêmico, outrora resistente a essa dimensão da vida humana por considerá-la opressora e alienante.

8.11.18

ESPIRITISMO: CIÊNCIA NATURAL OU FILOSOFIA?




Em uma das palestras que fiz recentemente, surgiu uma questão interessante sobre o status epistemológico do espiritismo. Não dava para desenvolver a questão nas condições em que nos encontrávamos, então deixei para tratar aqui, no Espiritismo Comentado.

Meu interlocutor via, de um lado as ciências (entendidas como as ciências naturais) e de outro a filosofia (com suas subáreas tradicionais, menos a psicologia). Ele argumentava que o espiritismo devia tender, portanto, para a filosofia, que possivelmente teria um poder explicativo melhor. 

Contudo, na universidade contemporânea, entre a filosofia e as ciências naturais encontram-se as ciências humanas e sociais. São áreas de conhecimento desenvolvidas geralmente a partir do século XIX, que estudam o homem, sua cultura, suas organizações e sociedade. 

No princípio, as ciências humanas tentaram empregar métodos das ciências naturais para esses estudos, como se pode ver em Durkheim (ciências sociais), os autores estruturalistas e funcionalistas (psicologia), entre outros. Como os avanços fossem modestos e contraditórios, diferentemente da física, por exemplo, logo se viu que o objeto de estudo desses cientistas era capaz de se modificar, o que ele fazia através da linguagem.

Por esse motivo, as ciências humanas avançaram (para alguns cientistas não), e englobaram métodos de estudo de base hermenêutica e fenomenológica, que consideram a apreensão do significado da linguagem humana e suas consequências, entre outras contribuições que hoje se costuma chamar de métodos qualitativos, e que vão além da observação. Autores com De Bruyne, denominam essa abordagem como abordagem da compreensão (que envolve uma busca rigorosa do significado do que fala o sujeito e suas implicações), em oposição à abordagem da explicação, das ciências naturais (que envolvem, leis, descritas matematicamente, de forma exata ou probabilística, explicando eventos que seguem a regularidade matemática encontrada). 

Allan Kardec desde o princípio de seus estudos, percebeu que o método das ciências naturais era insuficiente para obter respostas para as questões investigativas que tinha a propor para as “inteligências desencarnadas”. Ele manteve o indutivismo das ciências naturais, mas percebeu que como os espíritos tinham diferentes capacidades de descrever o mundo em que viviam, era necessário classificá-los, o que fez com a escala espírita, para estudar apenas os relatos dos espíritos superiores.

Outra coisa que ele fez, muito semelhante à pesquisa fenomenológica, que só foi estabelecida anos depois, foi buscar na narrativa dos espíritos superiores, aquilo que lhes era comum. Ele denominou seu método, na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de “controle universal do ensino dos espíritos”. Com isso, ele buscava conteúdos semelhantes através de médiuns diferentes, de preferência os que desconheciam as contribuições dadas pelos demais, como forma de controle da interferência do médium na comunicação. Em fenomenologia, isso se chama “redução fenomenológica”. Outro ponto do método de Kardec era evitar ideias pré-concebidas e ater-se aos conteúdos colhidos. Em fenomenologia isso se chama “suspensão de juízo”.

O mestre francês sempre analisava o conteúdo do que lhe era dito de forma compreensiva (o que significa o que o espírito disse? Está de acordo com os demais espíritos superiores? Faz sentido?) e utilizava a razão como forma de análise e comparação.

Em um artigo já publicado, desenvolvemos mais esse ponto de vista. Está no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia”, publicado pela parceria CCDPE-ECM e LIHPE, e é intitulado “Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”.



Se aceita essa argumentação, entendemos que do ponto de vista metodológico e epistemológico, há conhecimentos no corpo da doutrina espírita que se desenvolveram com base na observação e experimentação (ciências naturais), há outros conhecimentos que são fruto da argumentação racional (filosofia), mas boas parte do corpo doutrinário repousa em uma análise fenomenológica daquilo que os espíritos disseram aos estudiosos do século XIX e que foi analisado por Allan Kardec (métodos qualitativos de ciências humanas). Boa parte da ética espírita tem uma dupla origem como conhecimento: os relatos da vida após a morte e das consequências das ações em vida (análise fenomenológica de Kardec), e a análise da ética cristã como referência ética para a humanidade (o que constitui parte do aspecto religioso do espiritismo, considerando-se, contudo, que Kardec busca uma fé raciocinada, ou seja, com contribuições dos métodos filosóficos, e não apenas uma “fé cega”)

30.11.17

RELIGIÃO PODE SER BOA PARA A SAÚDE MENTAL?



Vivemos uma época curiosa, na qual o avanço das ciências é visto como a derrocada das religiões. Nos ambientes acadêmicos, muitas pessoas creem que a religião, em função da sua fragilidade em tratar de temas próprios das ciências naturais, é algo a ser banido do mundo. O visível avanço tecnológico do mundo trouxe uma imensa credibilidade ao que se diz científico, mesmo ante os muitos problemas que trouxe ao mundo. Alguns cientistas famosos usam do prestígio que obtiveram em sua área de conhecimento para fazer uma espécie de ativismo contra as religiões, argumentando geralmente que as religiões são um mal para a humanidade e destacando alguns pontos realmente problemáticos.

As religiões e as instituições religiosas certamente têm seus problemas, mas em tempos de um “individualismo selvagem”, em que muitas pessoas não querem “abrir mão” de seus desejos pessoais, há um discurso que valoriza a espiritualidade e desvaloriza as religiões, a religiosidade e os grupos religiosos. Sempre achei que espiritualidade sem grupo religioso é como empada sem azeitona, porque a espiritualidade não é algo construído individualmente, mas aprendido ou desenvolvido coletivamente.

Estou lendo o livro “Religião, psicopatologia e saúde mental”, escrito por Dalgalarrondo, professor titular de psiquiatria da Unicamp. O livro foi publicado em 2008, mas a qualidade das revisões de literatura é muito boa, até a data.

São muitos os estudos que estudam a relação entre religião e saúde mental. Bergin (1993) não encontrou relação entre psicopatologia e religiosidade (metanálise de 24 estudos). Payne e colaboradores (1991) mostra que a religiosidade está associada a um menor uso de álcool e drogas e melhores medidas de bem estar psicológico, auto-estima, ajustamento familiar e social e menor permissividade sexual.

Koenig e Larson (2001) concluíram existir uma associação positiva entre saúde mental e religião (sujeitos mais religiosos são mais saudáveis e com menos transtornos mentais) e o impacto positivo da religião fica mais evidente em situações de envelhecimento, doenças físicas e perda de habilidades físicas e sociais. Koenig mostra que maior frequência à igreja (ou comunidade religiosa) está associado a uma menor prevalência de doença mental.

Kendler (1997). Muito elogiado por Dalgalarrondo, estudou 1698 pares de gêmeas e mostrou que a “devoção religiosa pessoal” protege as mulheres da depressão ante efeitos estressantes. Em um segundo estudo (2003) com 2616 gêmeos de ambos os sexos, ele mostrou que a religiosidade geral e outras categorias da religião estão associadas a menor prevalência de transtornos externalizantes (dependência de álcool e nicotina, abuso e dependência de drogas ilícitas e comportamento anti-social).

O autor também fala dos aspectos negativos da religião sobre a saúde mental, mas trataremos em outra matéria.

26.5.16

RELIGIÕES, TRADIÇÕES ESPIRITUAIS E NATUREZA



O Laboratório de Análise de Processos em Subjetividade, da Universidade Federal de Minas Gerais, organizou um evento intitulado "Um retorno às fontes: diálogo inter-religioso e ecologia", do qual fizemos parte, no início de maio.

A TV UFMG fez este breve e simpático recorte dos convidados, expoentes de diversas religiões e tradições espirituais, na tentativa de responder à seguinte pergunta: "Como crescer na consciência de pertença à natureza, segundo os valores de sua religião?" Veja que resultado interessante!

28.2.15

ALLAN KARDEC E O ISLAMISMO




Vivemos hoje uma época de muita tensão entre cristãos e muçulmanos, fruto de ações militares em países muçulmanos, ações contra a vida de civis nos Estados Unidos, na França (Charlie Hebdo), das posições iconoclastas dos militantes do ISIS e do velho preconceito dos países ocidentais, que insiste em generalizar atos cometidos por indivíduos e organizações para todos os adeptos de uma religião no mundo.

Allan Kardec sempre teve uma conduta de tolerância entre as religiões, não uma tolerância ingênua, que pressupõe bondade em tudo, mas uma aceitação de diferenças e uma possibilidade de convivência apesar delas.

Na Revista Espírita de 1866, Kardec escreveu dois artigos com o título "Maomé e o Islamismo", nos quais denuncia o conhecimento apenas legendário dos Europeus sobre o Islamismo, a ação do espírito de partido, que ressalta "os pontos mais acessíveis à crítica, muitas vezes, e de propósito" deixa na sombra as partes favoráveis. "Disto resultou que sobre o fundador do islamismo se fizeram ideias muitas vezes falsas ou ridículas, baseadas em preconceitos, que não encontravam nenhum corretivo na discussão." (página 225- Edicel)

Ele consultou um livro publicado por Saint Hilaire (Mahomet et le Coran), pela livraria Didier, que sintetiza as principais considerações dos orientalistas de sua época, formando uma opinião diversa da que era veiculada em sua época.

Ele trata das origens do islamismo entre os povos árabes, da luta de Maomé contra os ídolos que dividiam os povos árabes e faz uma biografia de Maomé voltada ao seu contexto, às dificuldades de enfrentou e destacando um homem pacífico por décadas, que só se lançou à guerra quando foi sitiado em Medina. 

"Maomé foi, pois, guerreiro, pela força de circunstâncias, muito mais que por seu caráter, e terá sempre o mérito de não ter sido o provocador." (páginas 321 e 322 - Edicel)

Kardec, portanto, defende a desconstrução de um Maomé ambicioso, sanguinário e cruel. Ele considera o homem em seu tempo, em contato com povos belicosos.

Outro ponto destacado nos artigos dizem respeito às percepções que Maomé afirma ter com o anjo Gabriel, origem das Suratas. 

Allan Kardec não concorda com o casamento poligâmico de Maomé após a morte da sua esposa Khadidja. "Permitindo quatro mulheres legítimas, Maomé não pensou que, para que sua lei se tornasse a da universalidade dos homens, era preciso que o sexo feminino fosse ao menos quatro vezes mais numeroso que o masculino". (página 323 - Edicel)

"Mau grado suas imperfeições, o Islamismo não deixou de ser um grande benefício para a época em que apareceu e para o país onde surgiu, porque fundou o culto da unidade de Deus sobre as ruínas da idolatria." (página 323 - Edicel)

Essa religião era a mais simples de todas: "Crença num Deus único, onipotente, eterno, infinito, presente em toda a parte, clemente, misericordioso, criador dos céus, dos anjos e da Terra. Pai do homem, sobre o qual vela e o cumula de bens; remunerador e vingador numa outra vida, onde nos espera para nos recompensar ou castigar, conforme os nossos méritos. Vendo nossas ações mais secretas e presidindo ao destino inteiro de suas criaturas que não abandona um só instante, nem neste mundo, nem no outro; submissão a mais humilde e confiança absoluta em sua vontade santa": eis os dogmas.

Há o destaque no antigo e do novo testamento na religião muçulmana, que reconhece Jesus como profeta: enviado de Deus para ensinar a verdade aos homens, assim como Moisés. O codificador destaca que Maomé não tinha sentimentos hostis pelos cristãos e no próprio Alcorão recomenda habilidade para com eles, "mas o fanatismo os englobou na proscrição geral dos idólatras e dos infiéis" (página 331 - Edicel)

Vejam três citações:

"Os Cristãos serão julgados segundo o Evangelho; os que os julgarem de outro modo serão prevaricadores" (Surata V, v. 51)

"Não discutais com os Judeus e os Cristãos senão em termos honestos e moderados. Entre eles confundi os ímpios: Dizei: Nós cremos no livro que nos foi revelado e em nossas escrituras. Nosso Deus e o vosso são apenas um. Somos muçulmanos (Surata XXIX, v. 45)

"Não façais violência aos homens por causa de sua fé. A via da salvação é bem distinta do caminho do erro. (Surata I, v. 257)

Kardec reproduz diversas passagens das Suratas sobre o paraíso de Maomé e critica a pilhéria que àquela época faziam dele.

"Tal é o famoso paraíso de Maomé, do qual tanto pilheriam e que, certamente, não procuraremos justificar. Apenas diremos que estava em harmonia com os costumes desses povos e que devia agradá-los muito mais que a perspectiva de um estado puramente espiritual, por mais esplêndido que fosse..." (páginas 336 e 337 - Edicel)

O segundo artigo termina com uma promessa que até o momento não encontrei (se alguém encontrar, por gentileza, me avise) "Em próximo artigo examinaremos como o Islamismo poderá ligar-se à grande família da humanidade civilizada."

Em outras palavras, ainda que discordasse de alguns pontos da religião islâmica, Kardec publicou na defesa do respeito e do entendimento entre cristãos e muçulmanos. Desconstruiu algumas lendas que corriam em seu país sobre os muçulmanos e fez uma análise histórica, ainda que marcada em alguns pontos pelo entendimento comum de sua época da superioridade da cultura ocidental. Parece que estes textos têm sua significância nos dias de hoje, em que um grande debate se faz em torno das relações entre os países ocidentais e os países árabes e muçulmanos em geral.

30.11.13

AS RELIGIÕES SÃO APENAS MITOS?


Assisti ontem ao belíssimo filme "As Aventuras de Pi". Dei a sorte de fazê-lo como se estivesse no cinema, do início ao fim, com pouquíssimas interrupções. Como o suspense da trama é fundamental, a maioria dos comentaristas que li não falam sobre o filme e destacaram algumas características que são realmente notáveis, como a beleza das imagens criadas por Ang Lee e a profundidade dos personagens.

É um filme que pretende conversar sobre Deus, deuses e a religião, entre outras coisas. Ele sugere que o mito religioso (e não sei dizer até quando, a experiência religiosa) torna mais tolerável a vivência do homem na Terra. Ele fala do encantamento, da possibilidade deste mito provocar as forças mais profundas do ser humano, da sua utilidade em situações-limite, do seu poder de preservação da vida.

Deus como ser ou criador, fica em um segundo plano, quase como um item de cardápio a ser escolhido, a gosto do freguês. Tanto faz pedir um "deus Big Mac" ou um "deus croissant", ou mesmo um "deus espetinho de escorpião", todos satisfariam igualmente a fome humana do sentido da vida.

Não importa, também, a verdade, ou a busca dela. Se o sujeito está satisfeito com o mito, se ele tem um papel útil na vida, está valendo...

Quando analiso o filme como espírita, sinto um estranhamento e algum conforto. O estranhamento vem da tradição racional e empírica do espiritismo, que fica desprezada pelo autor da bela história. É como se ele desconfiasse da razão e do empirismo como caminhos para tornar a vida mais tolerável, diante da sua crueza e ferocidade. 

O conforto vem da possibilidade de se ouvir uma voz no mundo contemporâneo que contempla a religião como experiência humana e que advoga o respeito entre as muitas religiões. Menos preconceito, menos conflito em função de convicções de fé, mais respeito entre as pessoas.

2.1.13

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS PUBLICOU ENTREVISTAS SOBRE O ESPIRITISMO



O Dr. Alexandre Caroli Rocha avisou-nos da publicação realizada em 2010 pela Revista do Instituto Humanitas Unisinos sobre o espiritismo. Os links para as entrevistas se encontram em uma régua vertical, à esquerda, com os nomes dos respectivos entrevistados. Eles vêm da história, antropologia, teologia e outros campos do conhecimento.

Os temas são muito interessantes e polêmicos. O caráter cristão do espiritismo, as tendências minoritárias new age e capitalista (ética da prosperidade), os paralelos entre o espiritismo e os cultos afro, espiritismo e ecologia, reencarnação e ressurreição são brevemente tratados pelos autores, cada um em sua área de atuação e dentro de seu contexto de produção.

Obviamente, o rigor acadêmico dos autores não assegura verdade, nem um perfeito ajustamento com a nossa visão do espiritismo, mas o diálogo é bastante rico e merece um bom debate.

Feliz 2013 aos leitores do EC, com muitas questões para se pensar ao longo do ano.

PS: Após a primeira publicação desta matéria o Alexandre Caroli Rocha enviou mais uma matéria de Bernardo Lewgoy nesta revista e pediu que fosse reconhecida a fonte em que ele encontrou a referência, o site Espiritualidade e Sociedade, do nosso amigo comum, Maurício.

26.12.11

A KIPPAH EM UMA SOCIEDADE MULTIRRELIGIOSA


JOVENS JUDEUS NO PÃO DE AÇÚCAR CONFRATERNIZAM COM SEU BLOGUEIRO CRISTÃO-ESPÍRITA (Foto da Júlia)


Oito de dezembro. Feriado em BH, dia de resolver problemas no Rio de Janeiro, que parece ter sido invadido por mineiros. As marcas de Minas Gerais estão por todo lado, como a disputa leal e gutural entre atleticanos e cruzeirenses na porta da agência dos correios atrás da embaixada norte-americana.

Depois do constrangimento na embaixada a que se submetem os que desejam conhecer as terras do Tio Sam, tão necessitada de turistas quanto temerosa de imigrantes ilegais e atentados a bomba, fomos aproveitar a vista maravilhosa do Pão de Açúcar.

Subir de bondinho até ficar ao nível das nuvens, ver de um ponto o calçadão de Copacabana e de outro as embarcações mais diversas na baía de Guanabara. Ver as construções centenárias da antiga capital do país, e num golpe de vista esbarrar com as paredes de concreto e tijolos dos edifícios residenciais separados da água salgada por vias qualhadas de automóveis de todos os tipos.

Não dá para não notar nos barracões morro acima, no lixo que enfeia a bela água verde azul, no subemprego que transforma jovens promissores em "chamadores de táxi", "tomadores de conta de celular", "flanelinhas" e outras ocupações criativas que não geram riqueza, mas mitigam a miséria e perpetuam a ignorância sob o olhar complacente (ou indiferente?) das autoridades.

O Pão de Açúcar é um lugar alugado (e caro!) aos turistas. Com um pouco mais de cinquenta reais/cabeça se pode alçar os céus e conviver por um momento na torre moderna da Babilônia, onde convivem as línguas inglesa, espanhola, alemã, francesa, idiomas neo-eslavos e outros cuja sonoridade singular nos faz pensar de onde vieram e para onde irão.

Uma excursão de jovens de origem judaica, inconfundíveis por seus Kippah multicoloridos sobre as cabeças masculinas, mesmo as imberbes, encheu de alacridade e alegria adolescente o ponto de parada das compras e lanches.

Eu me deixava ficar gostosamente em uma mesinha, enquanto a família olhava os muitos objetos de compra e venda aos turistas, e acompanhava com os olhos e ouvidos o ir e vir dos muitos visitantes que transitavam pelos espaços cuidadosamente construídos e reconstruídos para se passar uma manhã ou tarde em meio às alturas e nuvens.

A filha menor fotografava, matreira, coisas, lugares e pessoas, com seu olhar ora curioso, ora furtivo.

Em um segundo me vi cercado de jovens, que estavam abordando os descuidados como eu, aparentemente disponíveis, e perguntando:

- Você sabe o que é um Kippah?

Meu conhecimento era o trivial, mas dava para o gasto.

- Sei, sim.

- Então, o que é?

No inusitado, lancei mão do meu apurado mineirês:

- Este "negócio" que os homens usam sobre a cabeça.

Negócio, assim como trem, significa coisa e pode muito bem significar peça de vestuário, mas surtiu bem o efeito de se fazer entender.

- Ele sabe o que é um Kippah! Disseram quase em coro, e me vi cercado de jovens de origem hebraica que brotaram de diversos lugares e me pediram uma foto. O momento parecia merecer um registro. Minha filha não se fez de rogada e alinhou sua câmera às demais. Ela não se preocupou muito com o foco, só com o clique mágico, e aí nasceu a foto desta matéria.

Como não podia perder a oportunidade, perguntei a uma quase adolescente, que aparentava seus quatorze ou quinze anos:

- E você, sabe o que significa um Kippah?

Ela me respondeu, sem respirar.

- É o negócio que se coloca sobre a cabeça! Reafirmando o conceito que eu acabara de criar, num ímpeto.

- Nâo! Disse. Quero saber o significado...

Ela não se constrangeu e voltou a responder com prontidão, com um certo ar de obviedade, muito respeitoso.

- Ora, significa que Deus está acima do alto da cabeça dos homens!

Agradeci, não sem surpresa. Certamente ela não falava da geografia de Deus, mas deixava seus lábios repetirem uma sabedoria milenar, que era comum a cristãos, judeus e muçulmanos, além de todas as variações que o espírito humano criou destas três sólidas raízes da religião.

Eles se foram, igualmente álacres e felizes com o passeio. Depois um jovem, talvez com algo de mineiro no sangue, retornou e mostrou-me um Kippah verde, dobrado duas vezes, e checou comigo:

- Você sabe o que é isso?

- Um Kippah, respondi.

Ele pareceu satisfeito com a resposta, mas meio contrafeito. Deve ter perdido uma disputa, mas aceitava a derrota como bom desportista.

Eles se foram, mas Deus ficou comigo, em minha mente, na sabedoria da resposta adolescente, herdada dos antepassados, nas minhas meditações.

15.7.10

KARDEC E A RELIGIÃO NATURAL


No livro Obras Póstumas, encontra-se uma comunicação de um médium de Marseille (Jorge Genouillat) que trata do futuro do Espiritismo. É uma mensagem de abril de 1860 e define um papel ao Espiritismo junto ao cristianismo.

"O Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele reformará a legislação ainda tão frequentemente contrária às leis divinas; retificará os erros da História; restaurará a religião do Cristo, que se tornou, nas mãos dos padres, objeto de comércio e de tráfico vil; instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai diretamente a Deus, sem se deter nas franjas de uma sotaina, ou nos degraus de um altar. Extinguirá para sempre o ateísmo e o materialismo, aos quais alguns homens foram levados pelos incessantes abusos dos que se dizem ministros de Deus, pregam a caridade com uma espada em cada mão, sacrificam às suas ambições e ao espírito de dominação os mais sagrados direitos da Humanidade." Um Espírito

É um discurso forte, diria até mesmo revoltado, contra os abusos cometidos por alguns membros do catolicismo passado. Ele reflete bem o espírito francês que moveu a sociedade na direção da revolução francesa, marcada pelo Iluminismo.

Desconheço como foi feita a organização do livro Obras Póstumas, e não encontrei na pesquisa que fiz este texto na Revista Espírita. De qualquer forma, ele se acha ligado a Kardec e atribui ao Espiritismo o papel de revisão do cristianismo.

13.7.10

KARDEC E A RELIGIÃO


Em diversos momentos Kardec discute a questão da religião em face ao Espiritismo.
Na Revista Espírita de julho de 1864 Kardec publicou um texto pouco conhecido hoje, intitulado A Religião e o Progresso. Basicamente ele aponta mudanças no dogma católico que vão surgindo nas palavras de seus contemporâneos e seus impacto sobre a ortodoxia. Seu argumento central parece ser "a religião precisa rever seus princípios ou perecerá" e ao apontar algumas transformações anunciadas (a substituição do inferno pela caridade, por exemplo, publicada pelo Jornal La Verité), que, não intencionalmente, aproximam o catolicismo do pensamento cristão-espírita.
Ele conclui este trabalho dizendo: "Estender-se-ão as mãos, quando a ciência não vir na religião nada de incompatível com os fatos demonstrados e a religião não masi tiver que temer a demonstração dos fatos. Pela revelação das leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível, o Espiritismo será o traço de união que lhes permitirá olhar-se face a face, uma sem rir, a outra sem tremer. É pela concordância da fé e da razão que diariamente tantos incrédulos são trazidos a Deus."

4.5.09

ENTREVISTA COM JOÃO XAVIER DE ALMEIDA

Figura 1: João Xavier de Almeida

O Espiritismo Comentado recebeu o Boletim Informativo "Paz Amor Trabalho" da Associação Cultural e Beneficente de Mudança Interior de maio de 2009, Portugal, gentileza de nosso amigo Terroso Martins. Ele traz a entrevista com João Xavier Almeida, ex-presidente da Federação Espírita Portuguesa e colaborador da Comunhão Espírita Cristã de Rio Tinto.


O Espiritismo Comentado selecionou duas questões interessantes e manteve a grafia do Português Lusitano.


Paz-Amor-Trabalho: - Faz sentido a querela de o Espiritismo ser ou não ser religião?
João Xavier Almeida: - Não lhe encontro fundamento nem utilidade, quando está definido pelo próprio Codificador, com muita clareza, em que sentido o Espiritismo é religião e em que sentido não o é.
Na acepção filosófica e filológica do termo, o Espiritismo é religião, “e disso nos
gloriamos”, como se exprimiu Allan Kardec no conhecido discurso do dia de finados, no ano de 1868. Nesse discurso, e contrariamente ao que por vezes se lê, Allan Kardec não afirma que o Espiritismo não é religião; apenas se interroga: “por que é, pois, que não declaramos que o Espiritismo é uma religião?”
É muito diferente, e ele mesmo responde porquê: na acepção vulgar, o termo religião está associado com a ideia de hierarquias, cerimónias, pompas, rituais, etc. Ora, todo esse folclore, certamente respeitável em contexto próprio e à luz da Antropologia e quiçá Etnografia, nada tem a ver com a noção pura de religião, e menos ainda com a inquirição científica e filosófica do Espiritismo.
Este, no seu também inegável aspecto religioso, rompe a ideia da suposta incompatibilidade entre fé e razão (ver capítulo primeiro do livro O Evangelho Segundo o Espiritismo) e introduz um novo conceito de religião, quando rejeita a fé cega e consagra a noção de fé raciocinada, com fundamento no estudo racional e metódico de factos espíritas indesmentíveis (capítulo 19 do mesmo livro). A ciência “oficial” não conseguia explicá-los nem podia negá-los.

Na REVISTA DE ESPIRITISMO, órgão da FEP (nº 78, Outubro-Dezembro de 2008),
abordei mais em pormenor esse tema, no artigo CIÊNCIA E RELIGIÃO.

PAT: - Como caracteriza o actual momento do movimento espírita português?
João Xavier Almeida: - O movimento caminha e progride, apesar de dificuldades intrínsecas.
Carecemos de viver mais autenticamente os valores espíritas, de integrar mais o ideal kardecista na nossa vida quotidiana, de nos motivarmos mais, de interagirmos mais (individual e colectivamente), de não temermos o “parece mal” do preconceito social.
Talvez por motivos de fundo cultural, tendemos a agir com individualismo e pouco sentido colectivo, a esperar muito dos outros e dar pouco de nós. Vê-se nos nossos centros, dum modo geral, sempre os mesmos companheiros a arcar com a iniciativa, a acção, a responsabilidade. Em parte, isso também se deve à pouca aptidão para delegar, distribuir competências: um atributo em que eu próprio, na FEP, me revelei pouco dotado.
Outra nossa característica, nada salutar, é a fraca adesão a algumas acções de interligação e cooperação, dois factores indispensáveis ao grande objectivo da UNIFICAÇÃO espírita, tão acarinhada pela espiritualidade superior. Ao falar em unificação, claro que tomamos o termo no sentido mais nobre; portanto avesso à ideia de unicidade de pontos de vista, ou a ideias de hegemonia e privilégios para pessoas ou grupos. Pensamos na unificação que tem provado a sua eficácia noutras latitudes, na qual as instituições de base e as de cúpula se entreajudam e se robustecem mutuamente, fazendo o movimento, global e metodicamente, progredir mais na capacidade de servir a sociedade de que faz parte, ajudando a elevar-lhe a espiritualidade, os padrões de consciência, de cidadania. E conquistando, até, prestígio público.

No passado, os bens ignobilmente usurpados à Federação Espírita Portuguesa pelo “Estado Novo” (1962), assim como todas as perseguições que este lhe moveu, aconteceram devido em grande parte ao morno idealismo dos próprios espíritas, à sua desunião, às meias-tintas duma prática espírita muito motivada pela busca do fenómeno mediúnico e bem pouco pelo padrão evangélico.

Espiritismo, no dizer de Emmanuel, é o Cristianismo redivivo. Se florisse então no
nosso movimento algo da fibra evangélica dos primeiros cristãos, os bens da FEP nunca seriam confiscados; ou se fossem, bem pouco tardaria a sua devolução, com justa compensação por todos os danos sofridos.

Quanto ao presente: É impossível ignorar-se o mal-estar que transvaza da cúpula
directiva do movimento, com temíveis prognósticos desagregadores.
Devemos sempre respeito e fraternidade aos nossos confrades, mesmo, ou sobretudo, quando equivocados e envolvidos (certamente a contra-gosto) na teia perigosa de situações de conflito, nas quais também qualquer de nós um dia pode cair. O quadro ameaçador encerra um aviso muito sério, que clama por todas as reservas de prudência e boa-vontade da nossa militância espírita, advertindo-nos mais uma vez do seguinte: Sem dúvida, os estatutos civis da FEP, tal como os das outras instituições espíritas, merecem respeito e acatamento porque são necessários. Mas não esqueçamos que eles, como diria Jesus (Marcos 2.27), foram feitos para as instituições, e não estas para os estatutos. A melhor leitura que deles se possa fazer, há-de ser inspirada pela moral espírita, isto é, pelo Evangelho de Jesus nos corações. Este deve prevalecer como nosso estatuto supremo, uma vez que constitui, afinal, não só a razão de ser como também a segurança do movimento espírita português, contra todos os perigos.

João Xavier de Almeida

19.12.08

Ampliando o Debate das Relações entre Ciência e Religião


Foto 1: Prof. Geraldo

O Prof. Geraldo José de Paiva publicou um artigo instigante na prestigiada revista Psicologia USP. Ele entrevistou cientistas de diferentes áreas de conhecimento e propõe que eles não estabelecem conflitos entre ciência e religião, assim como rejeitam o caráter dogmático do cristianismo ao mesmo tempo em que não concordam com as pretensões ilimitadas da ciência.


Recomendo aos interessados nesta questão, que se encontra relacionada às discussões sobe o tríplice aspecto do Espiritismo, que analisem este texto.

12.10.08

Espiritismo e Religião



Figura 1: Daniel Dunglas Home

Kardec publicou na Revista Espírita de março de 1858 a seguinte consideração, após analisar a mediunidade de Daniel Dunglas Home.

"A religião nos ensina a existência da alma e a sua imortalidade; o Espiritismo disso nos dá prova palpável e viva, não mais pelo raciocínio, mas pelos fatos. O materialismo é um dos vícios da sociedade atual, porque engendra o egoísmo. O que há, com efeito, fora do eu para quem tudo relaciona com a matéria e a vida presente? A Doutrina Espírita, intimamente ligada às idéias religiosas, esclarecendo-nos sobre a nossa natureza, nos mostra a felicidade na prática das virtudes evangélicas; lembra o homem quanto aos seus deveres para com Deus, a sociedade e a si mesmo; ajudar a sua propagação é dar um golpe mortal na praga do ceticismo, que nos invade como um mal contagioso; honra, pois, àqueles que empregam, nessa obra, os bens com que Deus os favoreceu na Terra!"

Observe o leitor, que mesmo no início dos trabalhos da codificação, quando Kardec pensava ser possível desenvolver uma metafísica baseada no ensino dos espíritos que servisse de fundamento às religiões em geral, porque demonstrava a existência da alma, ele não negava o papel do cristianismo e de sua ética, na proposta social espírita, assim como combatia as idéias céticas e materialistas às que reputava a ilusão de perceber a vida com base exclusiva na vida presente.

6.7.08

O Espiritismo é uma Religião?



Figura 1: Imagem da capa antiga do livro Religião, de Carlos Imbassahy

Para o Lucas Sampaio, com respeito e fraternidade.


“O Espiritismo será para uns simples ciência,


para outros mera filosofia,


sem já falar naqueles para os quais


não será coisa alguma”. Carlos Imbassahy




O livro foi escrito por uma das penas espíritas brasileiras mais lúcidas do século XX, em resposta a um parecer do Dr. Almeida Júnior, que em 1938, em resposta a uma consulta de pais que lhe pediam o ensino religioso espírita a seus filhos.
Almeida Júnior, considerada a dificuldade de atendimento da petição e as implicações que ela geraria para a educação em São Paulo, se atendida, fez uma leitura de muitos autores espíritas e de cientistas que se debruçaram sobre a questão da religião e defendeu a idéia de que as religiões envolvem uma relação entre as pessoas e o sobrenatural, que elas são fruto de revelações, que são divulgadas pela persuasão e que são crenças, alicerçadas na fé. Ele cita trechos de Kardec, Flammarion, Denis e Melusson que defendem ser o Espiritismo uma nova ciência de observação, uma filosofia, um abandono da abordagem metafísica da alma que não é estudada como algo sobrenatural.
Sempre de forma respeitosa e impessoal, Imbassahy defende no livro a tese oposta, ciente que algumas das implicações do entendimento do Espiritismo como uma doutrina científica ou filosófica situariam o movimento espírita à larga dos direitos constituicionais reservados às religiões em sua época (liberdade de culto, de tribuna, de imprensa, a faculdade de ensino em escola, a independência, o direito à expansão e as imunidades). Logo, não é apenas um debate filosófico, mas um debate cercado de implicações legais e sociais, especialmente à época em que foi escrito, na qual ainda se discutia a lei que proibiu as práticas espíritas no nascimento da república.
Imbassahy, com calma e profundidade, aponta as fragilidades da tese de Almeida Júnior. No capítulo intitulado “Religiões Filosóficas”, ele analisa o Budismo e as doutrinas indianas, mostrando que são filosofias de caráter religioso. Destacando seu caráter moral, o autor baiano conclui que: “o mistério, o sobrenatural, o dogma não são característicos de uma religião, dela não fazem parte essencial, não entram no seu conceito: que há religiões, como tais consideradas, a que geralmente se dá o nome de filosóficas, tal como acontece com o Espiritismo (...) E se assim é, não sabemos porque negar ao Espiritismo, ou melhor, à sua parte teológica, o nome de religião, quando às demais doutrinas filosófico-morais não é ele negado, retidado ou vedado”.
No capítulo “O Cristianismo”, Imbassahy aponta a dupla origem do termo religião, relegere (tratar com cuidado), como utiliza Cícero e relicare, como empregam Lactâncio, S. Jerônimo e Santo Agostinho, com o sentido de religar, ligar, significando a relação do homem com Deus. O autor baiano desenvolve a tese de que o Espiritismo é uma religião cristã, porque admite os ensinos de Jesus, e os interpreta em coerência com a filosofia espírita. Carlos Imbassahy faz uma pesquisa detalhada na obra de Kardec mostrando a importância que o codificador destina ao desenvolvimento do “sentimento religioso”, aponta como seu verdadeiro caráter o amor entre os homens, propõe a união dos princípios fundamentais no “amor a Deus e na prática do bem”, e apresenta o conhecido trabalho de Kardec que qualifica o Espiritismo como sendo o Consolador prometido por Jesus, a continuação dos evangelhos.
“Pelas leis morais do Cristo, que segue; pela parte do Cristianismo, que representa; pela obrigação que se impôs de divulgar o Evangelho; pelo dever, que mantém de colocar as leis divinas acima de tudo, como a fonte do progresso humano, o Espiritismo reivindica a parte que lhe cabe no seio das religiões.” (páginas 96-97)
O próximo argumento discutido é a alegação de Almeida Júnior, que diversos espíritas consideram o Espiritismo uma ciência. O argumento de Imbassahy repousa no tríplice aspecto, ou seja, que o Espiritismo é composto de três partes, uma religiosa, uma filosófica e uma científica, concluindo ser natural “que seus adeptos o tratem por uma de suas partes”.
Ele mostra que Almeida Júnior selecionou as partes que interessavam à defesa de suas idéias e lançou fora as outras que se lhe opunham. Cita a profissão de fé espírita racional, publicada por Kardec em Obras Póstumas (páginas 100-101) e inúmeras passagens do livro “O Céu e o Inferno” nas quais Kardec destaca as conseqüências morais dos atos das pessoas na vida após a morte. Imbassahy argumenta que Kardec busca evitar o fanatismo ao destacar sua parte científica, mas que “não eliminou sua parte religiosa, a ela dedicou especial atenção e dela fez a cúpula para o seu majestoso edifício doutrinário.”
Outro argumento desenvolvido diz respeito à prece, que nunca teria sido considerada científica e que foi objeto de diversas publicações do codificador, incluso aí o capítulo extenso de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” dedicado a este tema.
Neste capítulo há uma dissertação de Imbassahy sobre o sentido do que Kardec denominava “conseqüências morais” da Doutrina Espírita, e com base no diálogo com o sacerdote de “O Que é o Espiritismo” ele mostra que o codificador entendia que essas conseqüências “são a conformação e a prova dos grandes princípios da religião”, ou seja, são consistentes com uma dimensão religiosa da doutrina espírita. Carlos Imbassahy discute também o fato de Kardec evitar o emprego do termo religião para designar o Espiritismo.
Retomando as afirmações de Almeida Júnior, sobre o entendimento dos discípulos de Kardec quanto ao caráter científico do Espiritismo, Imbassahy vasculha a obra de Leon Denis e apresenta diversas passagens nas quais a negação do caráter religioso seria contraditório com a sua argumentação.
Um capítulo é dedicado às origens do Espiritismo. Imbassahy desenvolve seu raciocínio em três pilares: o de que é falacioso afirmar que as religiões originaram-se de uma revelação, posto que a construção da revelação lhes é sempre posterior à vivência do fato religioso, o de que o Espiritismo é considerado a terceira revelação e, por fim, que não é verdade que as religiões sempre se opõem à filosofia e à racionalidade, subordinando o raciocínio à fé.
Após um capítulo breve sobre o conhecimento, o autor desenvolve a questão do mistério, do sobrenatural, do sacerdócio, do dogma, dos ritos, do culto e do templo na caracterização de uma religião. O argumento central é que não há uma regra comum e rígida capaz de enquadrar todas as religiões, que têm muitas diferenças entre si. Em linguagem moderna, este conceito externalista de religião não é, senão, etnocêntrico e positivista. O autor faz uma revisão de conceitos em diversos filósofos que tentam circunscrever a essência da religião a partir do sentimento religioso, com suas diversas variações. “... das definições propostas por autores vários, inda os menos liberais, que o Espiritismo se sente à vontade dentro delas. Outras há que lhe cabem inteiramente.” (página 141).
Um argumento corajoso do autor baiano, com relação ao ritos, é que não se pode dizer que o Espiritismo não os tem, mas que há sempre uma razão para as cerimônias e ritos simples do Espiritismo. Nas instituições científicas há igualmente o que os cientistas sociais denominam como rituais ou ritos, nem sempre racionais, muitas vezes legitimados apenas pela tradição, cuja racionalidade se perdeu nos tempos, podemos adicionar aos argumentos do “Bozzano Brasileiro”. Não lhe passou despercebido também o caráter dogmático da existência de Deus no Espiritismo.
Um capítulo demorado sobre a concepção espírita dos Evangelhos, em oposição ao conceito que os materialistas fazem deles é seguido de uma breve defesa do Espiritismo como uma interpretação do Cristianismo e um dos “galhos” da árvore das religiões. Este pequeno capítulo é objeto de rápidas considerações sobre divulgadores de grandes religiões no mundo: Moisés, Brama, Zoroastro, Jeremias, Buda, Lao-Tsé, Confúcio, Sócrates e o Cristo. Carlos Imbassahy mostra elementos comuns entre o Espiritismo e as doutrinas destes homens.
O autor termina o livro com um capítulo sobre a oração, narrando, inclusive, vivências pessoais.
Passado meio século os tempos são outros, os interesses que movem o debate sobre o caráter religioso do Espiritismo também são outros, mas o livro de Carlos Imbassahy, claro, respeitoso, lógico, continua sendo importante para os que desejam discutir a questão, sob o risco de abordarem questões já desenvolvidas com competência como se nunca tivessem sido tratadas antes.

Livro: Religião
Autor: Carlos Imbassahy
Editor: Federação Espírita Brasileira – FEB
218 páginas
12,5 X 18,5
2a. Edição
1951 (?)

Resenha de Jáder Sampaio

4.8.07

O Estado Deve Regular as Religiões?

O jornal Estado de Minas, o jornal O Globo, o Angola Press, o jornal O Povo, baseados na Agência Nova China (infelizmente não encontrei a nota no site brasileiro desta agência), noticiam que as reencarnações dos Budas Tibetanos, para serem válidas, devem ser aprovadas pelo "Gabinete de Assuntos Religiosos do Governo Chinês".

Eles noticiam também que o último lama identificado pelo Dalai Lama, em 1995, o Panchen Lama, foi recusado pelas autoridades de Pequim, retirado da sua casa por autoridades e nunca mais foi visto.



Foto 1: Tibetanos exilados em Nova Délhi fazem vigília pela libertação do Panchen Lama (Fonte: O Povo)


Como pode um estado que se considera materialista histórico criar uma agência e atribuir-lhe a capacidade de identificar reencarnações de Lamas já desencarnados? Não é preciso ser muito perspicaz para entender que se trata de um uso político da religião, e que a ação desta agência tem fins manipuladores. Seria uma criança identificada como um Lama Reencarnado uma ameaça à potência Chinesa? Seria o budismo tibetano um poder capaz de desestabilizar um governo que tem sob suas ordens um poderio bélico de primeira ordem?

A perseguição às religiões ainda não terminou no século XXI.