Domingo foi dia de ir a Pedro
Leopoldo. Oportunidade de ver o Adriano Calsone falar sobre Amélie Boudet e
Allan Kardec e de rever a Casa de Chico Xavier. Foi uma viagem grata ao
coração, porque encontrei amigos antigos, que a vida levou para longe, mas que
como a vida costuma ser como o mar, as ondas trouxeram de volta a Belo
Horizonte. Encontrei amigos geograficamente próximos, mas que a vida
absorveu, com suas obrigações, em outros espaços. Vizinhos, mas distantes. E
reencontrei quem lá está, na cidade natal do Chico, mas que já morou na capital
e conheceu papai.
A Casa de Chico Xavier é assim,
você está no passado, mas também está no presente. O tempo-espaço se curva e
permite que você transite entre os dois momentos, mercê da memória, com um
passo, apenas. Com um passo você vê a Dona Nenem jovem, o Rolando Ramaiciotti
perfilado com o médium de Pedro Leopoldo, o Peralva com seus óculos quadrados e
eterno terno, capturados pelas fotografias que a informática faz aumentar ante
o pedido nervoso dos dedos. Um passo, e quem já viu o filme preto e branco,
preservado insistentemente do esquecimento pela nova dimensão chamada internet,
entra em um quarto com os diplomas de cidadão honorário dados pelas câmaras
municipais de cinco cidades paulistanas e pela intrusa Belo Horizonte, lugar de
tantas amizades caras ao médium. Um passo atrás e o tempo muda novamente, o
visitante vê a cama feita e o terno passadinho, pronto para ser vestido.
Um lugar curioso da visita são os
expositores do chão ao teto com uma cachoeira de livros, perfilados, à espera
do olhar curioso dos visitantes. Do Parnaso ao último livro de Chico, eles
estão lá, testemunhas incontestes de uma dedicação diária, que devorava o
horário de descanso após o almoço, as noites que usamos para descansar da
labuta e a madrugada que os jovens gostam de usar para as baladas. Recordei-me
de Raul Teixeira dizendo:
- “Para acompanhar a doença do
Chico é preciso ter muita saúde”!
Por fim, o visitante pode voltar
a 1931. Geraldinho contou que o Chico participava da reunião mais estranha da
história do espiritismo brasileiro. À mesa da casa espírita ele psicografava
sob a influência de Emmanuel. Terminada a tarefa, ele lia em voz alta os textos
para as cadeiras vazias, as paredes nuas pintadas, os pássaros no telhado do
lado de fora, que pareciam não ter muito interesse nas palavras do Mestre
iluminadas pelo pensamento de Allan Kardec. Lá fora a cidade ficava meio
adormecida, em um ritmo lento, mas os vizinhos deviam ouvir a voz insistente do
médium, e comentavam as estranhezas daquela doutrina nova que se erguia contra
a milenar instituição representada localmente por uma pequena matriz no centro,
com um coreto gracioso.
Chico Xavier é conhecido por sua
perseverança teimosa, sua capacidade de continuar onde muitos nem mesmo teriam
iniciado. William James diria que isto faz parte da psicologia dos grandes e
notáveis religiosos. Toda muralha, contudo, tem suas rachaduras e incorreções,
então, o povirello de Pedro Leopoldo
queixou-se a Emmanuel.
- Meu irmão, vou encerrar a
reunião. Apenas eu venho e trabalho sozinho. Fico lendo para as paredes e os
vizinhos já me consideram louco. Não há sentido em continuar!
O orientador espiritual pediu-lhe
que retornasse uma vez mais. Emmanuel pediria ao mestre que Chico pudesse ver
mais, com os olhos da alma, e entender o que fazia.
Passada uma semana, chega o Chico,
na reunião que seria a derradeira, como falam os mineiros, assenta a mesa,
enche as folhas de papel e inicia as últimas leituras. Emmanuel aproximou-se,
impôs as “mãos espirituais” sobre a cabeça do jovem médium, e seu campo de
visão espiritual se abriu. Ao redor da mesa um anfiteatro, com espíritos
“assentados” acompanhando com interesse a leitura dos textos evangélicos.
Chico olhou detidamente as
fisionomias e não reconheceu ninguém. Não eram parentes dos filhos da terrinha
mineira. Seus traços não lhe eram familiares. Perguntou então ao orientador.
- Quem são eles? Eu não os
reconheço.
- São espíritos que estão em
contato com o evangelho de Jesus explicado a partir dos novos conhecimentos
trazidos pelo mestre lionês e que retornarão à carne para divulgá-los.
Geraldinho se referiu a eles como
a Turma de 1931.
Voltemos à Casa de Chico Xavier.
Influenciada pela narrativa, ao mesmo tempo em que criava os novos espaços de
uma casa que seria museu e centro espírita, a arquiteta preservou o espaço da
mesa em que Chico psicografava, quando estava em sua casa, e transformou os
barracões, que eram quartos para receber os espíritas que vinham dos muitos
lugares, especialmente de São Paulo, passar alguns dias com ele. Da mesa
veem-se as fileiras desniveladas de cadeiras, envolvendo o espaço de grata
lembrança com um anfiteatro pequenino, capaz de acolher uma centena de almas
encarnadas, prontas a participar da simplicidade das reuniões, de leitura,
comentários e preces.
Fui convidado à mesa, como
acontecia no passado e as lágrimas escorreram no canto do olho. Ali também o
espaço tempo fez duas dobras, e enquanto Adriano Calsone falava dos tempos
áridos, mas laboriosos do mestre francês e nos fazia recordar/aprender sobre a
“femme forte” do espiritismo, a mesa insistia em nos puxar para os tempos do
lápis que corria solto pelas folhas de papel, um olhar ao lado nos levava aos
anos oitenta do século passado, com a grata memória dos jovens da Comebh,
alguns já senhoris, com os filhos crescidos, outros já sem o corpo físico, e
nos assentos do anfiteatro viam-se os olhares interessados, perdidos no tempo,
imaginando Rivail e Amélie enfrentando suas lutas, com um silêncio
significativo, às vezes recortado por risos discretos, emoções denunciadas
pelos olhos ou ternura estampada na face.
Voltamos para casa com uma
sensação de paz na alma, de alegria suave, de satisfação pelos encontros e
abraços, de surpresa pelo espaço tão mágico, preservado pelo afeto de pessoas
que conheceram e valorizaram o jovenzinho pobre de Pedro Leopoldo.