29.10.20

KARDEC E O ENSINO MORAL DE BASE CRISTÃ



Principais cidades visitadas por Kardec em 1862

Com as cartas de Kardec talvez possamos ter uma noção mais próxima de algumas decisões que ele tomou quando adotou o pseudônimo e o encargo de estruturar os ensinos dos espíritos.

Depois de ler e reler durante anos a obra dele, há mais de uma década me chamou a atenção o texto publicado na Revista Espírita em dezembro de 1863 (Período de luta), no qual ele propõe uma sequência de períodos para o espiritismo, que ele se encontra no período de luta e que ele entrará no período religioso. Em abril do ano seguinte Kardec publica “O evangelho segundo o espiritismo”, sua obra mais influente e mais vendida no Brasil.

Um dos fatores para essa decisão parece-me ser o chamado “auto de fé” de Barcelona. Mais do que divulgar a doutrina na Espanha, ele tem um significado simbólico. Até a queima dos livros espíritas em praça pública, a linha de pensamento de Kardec era a de que o espiritismo não seria uma religião, que cada espírita teria a sua, e que, como o conhecimento espírita era uma ciência e uma filosofia, ele contribuiria com o avanço das religiões e sua relação com o mundo das ciências, muito debilitada na França de sua época. A partir do auto de fé ele percebe que o caminho dos espíritas não seria o da aceitação pelos núcleos religiosos então estabelecidos.

Hoje penso que há mais um fator a se considerar. As viagens espíritas que ele fez nos anos anteriores ao texto Período de luta.

O cristianismo na França do século 19 foi muito fustigado pelo iluminismo e pelas ciências, por consequência, pela literatura, mas continuava sendo uma espécie de referência moral que regia as relações sociais e influenciava as leis. A educação, tão cara a Kardec, tinha em sua tessitura uma enormidade de instituições cristãs, que não conseguiram ser substituídas pelo ensino leigo, senão no final do século 19, quando se criou o ensino público leigo.

Bem ou mal, os professores religiosos trabalhavam a moral cristã com seus alunos. Seja qual for sua orientação pedagógica, eles seriam uma “segunda linha” a mostrar às crianças e jovens uma série de valores. Na época de Kardec, as ideias do ensino leigo avançavam, e aos poucos, a ética e a moral eram condenadas ao interior das igrejas e ao seio da família.

Em 1860-1862, Kardec, que já se correspondia com espíritas de diversos lugares da França e do mundo ocidental, aceita os convites para fazer viagens de divulgação do espiritismo. Os leitores de suas obras queriam conhecê-lo e ouvir orientações para seus núcleos recém-formados. 

Se me permitem fazer uma hipótese, penso que esse contato pessoal de Kardec com os grupos, e a hostilidade das religiões cristãs (umas mais, outras menos) com o espiritismo, fez com que ele pensasse em formalizar melhor a questão da ética e da moral. Se as igrejas não acolhiam os espíritas em seu seio, através dos mecanismos de estigmatização dos livros espíritas e dos que se aproximavam de seus núcleos, seria importante que os núcleos espíritas desenvolvessem também um ensino moral, derivado da ética cristã e das reflexões feitas a partir das consequências dos atos praticados em vida após a morte, obtidos pacientemente com a análise dos relatos dos espíritos. 

Penso que o contato direto com os espíritas de toda a França, a percepção mais próxima de suas dificuldades, suas lutas, e talvez até de sua intimidade familiar influenciou o professor a entalhar um de seus mais luminosos brilhantes. Ele se deteve no ensino moral de Jesus, comentado à luz dos ensinos espíritas, e consolidou nas sociedades espíritas uma preocupação com a vida terrena, que não mais poderia ser delegada apenas à família, às igrejas e às escolas. Depois disso, os espíritas se preocupariam muito mais com a caridade e com a fraternidade, pensariam em instituições para acolher as pessoas vulneráveis e em outras ações sociais para o socorro do que hoje chamamos pessoas em situação de vulnerabilidade. O espiritismo refletiria ainda mais detidamente as relações entre as pessoas encarnadas, os deveres de família e muitos outros temas ligados à vida cotidiana. O espiritismo deixa de privilegiar a elaboração intelectual e científica dos fenômenos e dos ensinos espirituais, e dá atenção destacada ao convite de Cárita, que passeava pelas periferias de Paris e convocava as pessoas ao trabalho voluntário contra a fome, o frio e a ignorância.

Em fevereiro de 1862, Kardec comunica (Revista Espírita) que havia feito uma subscrição em favor dos operários de Lyon que passavam por alguma "aflição". Enviou 500 francos e publicou uma mensagem do espírito Cárita de agradecimento aos espíritas franceses que apoiaram a iniciativa.

É apenas, como diria o escriba, uma “hipótese de trabalho”. Quem sabe a correspondência nova que está sendo trazida à luz nos traga mais elementos para refletir sobre ela?


22.10.20

CINCO ESPÍRITOS ESCREVEM POR DOIS MÉDIUNS: CHICO XAVIER E DIVALDO FRANCO




Tem uns livros que compramos e lemos imediatamente, sem perder o fôlego. Há outros que nos chamam a atenção ao ponto de adquirirmos, mas que vão ficando na estante da biblioteca por muito e muito tempo, até que um dia surge a motivação inesperada para ler.

Tal é o caso do interessante “E o amor continua”, organizado por Nilson de Souza Pereira, amigo de Divaldo Franco, mas composto de mensagens psicografadas por Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, além de depoimentos das famílias e identificação de algumas das informações objetivas fornecidas pelos espíritos desencarnados, como nomes de parentes citados, eventos, datas, informações sobre a desencarnação, etc.

O livro tem outras curiosidades. Ele documenta a visita de Divaldo Franco ao Grupo Espírita da Prece, em Uberaba, em 15 de maio de 1982 (quando fez palestra, enquanto Chico Xavier psicografava e psicografou uma das mensagens do livro) e comentando o evangelho no culto de assistência aos necessitados (em 29/07/1981), na mesma instituição. Ele documenta que Chico acolheu e trabalhou conjuntamente com Divaldo Franco já nos anos 1980, em Uberaba-MG.

Outra coisa que me chamou a atenção no livro, foi o que fizemos no último Encontro Nacional da Liga de Pesquisadores do Espiritismo: uma coletânea que nos mostra o mesmo espírito se comunicando por dois médiuns diferentes, no caso, dirigindo-se à família. As mensagens, sempre acompanhadas dos comentários e informações das famílias, que às vezes explicam não conhecer Divaldo, fornecem redações de seus afetos comunicantes ainda encarnados, tornam o livro ainda mais rico, embora contenha apenas as comunicações de cinco espíritos; seis, se compararmos também as mensagens de capa ditadas por Bezerra de Menezes aos dois médiuns, que foi publicada com forma de letra escrita à mão.

Chamou-me a atenção o “sotaque mediúnico” dos dois médiuns. Falta-me o conhecimento que seria próprio da área de letras para explicar, mas há algo no texto dos diferentes espíritos psicografado pelo Chico que me faz, como leitor, dizer: há a mão de Chico Xavier por detrás dos ditados, e o mesmo acontece com Divaldo Franco. A linguagem dos médiuns, por mais que façam um esforço de anulação da sua personalidade para serem mais fiéis ao ditado dos espíritos, trazem algumas de suas características. Talvez, se embaralhássemos as mensagens e as entregássemos a um leitor que conhece bem os estilos dos dois médiuns, ele fosse capaz de identificar, pelas singularidades de cada um, quem foi o escritor do ditado do além. 

Independente das singularidades ou idiossincrasias mediúnicas, as famílias reconhecem seus afetos que se foram, identificam os nomes de outros familiares (ou, às vezes, são surpreendidos com familiares já esquecidos aqui, mas ainda atenciosos no mundo espiritual com seus parentes).

O título parece sugerir um duplo significado: fala da continuidade do amor das pessoas que desencarnaram por seus afetos que continuam jornadeando no mundo, mas também sugere o amor entre Chico Xavier e Divaldo Franco, apesar das turbulências do passado, coisa muito comum na trajetória dos relacionamentos humanos.

Não sei se o livro teve uma segunda edição (na verdade, ao pesquisar a capa, encontrei-o disponível como e-book), nem se está esgotado ou se é de fácil acesso aos que se interessarem por ele, mas se tiverem acesso a ele, não percam a oportunidade de conferi-lo por si mesmos.


6.10.20

NOVAS PESQUISAS SOBRE ALLAN KARDEC

 

Mapa obtido no CSI do Espiritismo mostrando para onde se mudaram os principais médiuns que trabalharam com Allan Kardec na elaboração das obras básicas e na Revista Espírita.


No último sábado, 03 de outubro, fizemos uma palestra para a TV Célia Xavier sobre as novas pesquisas realizadas em torno de Kardec. Seu principal objetivo foi apresentar os pesquisadores que vieram à cena nos últimos anos e onde se pode ler sobre eles.

Inicialmente discutimos um tema polêmico: afinal, por que realizar uma busca nos cartórios, arquivos e bibliotecas por novas informações sobre Kardec, sua família e seus colaboradores? Defendemos cinco objetivos diferentes. (Estão no vídeo)




https://www.youtube.com/watch?v=NqNUL1w_9fA

No conteúdo, pinçamos algumas informações novas sobre a família de Allan Kardec, encontradas por Charles Kempf, Carlos Seth Bastos e pelos estudiosos da correspondência de Allan Kardec, na FEAL (Fundação Espírita Allan Kardec) e no NUPES (Núcleo de Pesquisas sobre Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora).

Alguns dados que modificam a percepção que tínhamos das médiuns que trabalharam com Kardec foram repassados rapidamente. Esse tipo de estudo não tem impacto  na compreensão da doutrina, mas no entendimento que temos sobre as pessoas que trabalharam em sua elaboração. De forma geral, as percebemos mais humanas, especialmente os médiuns, o que torna o papel de Kardec ainda mais importante.

Outra coisa que tratamos foram as publicações do período pós-Kardec na França, em que se destacam os livros de Adriano Calsone (Em nome de Kardec, e, Madame Kardec) e Simoni Privato (O legado de Allan Kardec).

Nos estudos comparativos das edições das obras de Kardec, além dos comentários do tradutor Evandro Noleto Bezerra nas novas publicações das obras básicas, temos o trabalho de Luiz Jorge de Lira Neto, publicado no livro “O espiritismo da França ao Brasil”, que analisa as modificações das doze primeiras edições de O livro dos espíritos, período em que Kardec ainda estava encarnado. Marco Milani vem publicando os resultados dos estudos comparativos entre as primeiras e a quinta edição de A Gênese no periódico Dirigente Espírita.

Como tive que saltar a conclusão do Marco em função do tempo, segue aqui:

“ ... análises comparativas já realizadas permitem afirmar que, sob o aspecto da coerência doutrinária e clareza do texto, a 4ª edição de A Gênese mostra-se mais adequada do que a 5ª edição em diferentes passagens, fazendo com que o estudo comparativo seja fortemente indicado a todo adepto espírita.” Marco Milani, Dirigente Espírita, set./out. 2020, p. 9.

https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/09/DE179-C.pdf

Os últimos blocos saem do papel e entram por outras mídias adentro. Primeiro temos as Cartas de Allan Kardec e outros documentos, que têm sido transcritos (eles são escritos originalmente à mão), traduzidos e digitalizados em francês e português, texto e imagem. Dos lugares em que podem ser lidos temos:

https://projetokardec.ufjf.br/   (50 cartas, até o momento)

https://kardec.blog.br/csi-do-espiritismo/ (pesquisas em cartórios, arquivos e bibliotecas)

https://www.allankardec.online/ (Museu on-line do espiritismo, com jornais, livros, revistas da época de Kardec e as sínteses do CSI do Espiritismo)

https://www.facebook.com/allankardec.online/ (Divulgação no facebook do Museu Allan Kardec On-line)

Finalmente, falo do documentário “Em busca de Kardec”, cujo roteiro foi feito pelo seu apresentador, Karim Akadiri Soumaila e por Dora Incontri. Ele dá uma panorâmica sobre os estudiosos de Kardec na França e no Brasil, bem como do espiritismo e dos fenômenos espirituais em geral. Infelizmente, ele havia sido disponibilizado no YouTube, no link abaixo, mas foi retirado.

https://www.youtube.com/playlist?list=PLDk-SVhCDZTN5Zhp0qqx8NrDgh4E6DqcH

 

"Não extingais o Espírito.

Não desprezeis as profecias.

Examinai tudo. Retende o bem." (Paulo)

1 Tessalonicenses 5:19-21

2.10.20

MUITOS RESULTADOS NEGATIVOS NA ANÁLISE DE CARTAS PSICOGRAFADAS POR MÉDIUNS BRASILEIROS

Os pesquisadores Elizabeth Schmitt Freire, Alexandre Caroli Rocha, Victor Scio Tasca, Mateus Moreira Marnet e Alexander Moreira-Almeida publicaram na revista Explore um artigo intitulado “Testando a escrita alegadamente mediúnica: um estudo experimental controlado” (Testing alleged mediumistic writing: na experimental controlled study).

Essencialmente, foram estudados oito médiuns psicógrafos cujo nome não foi divulgado, em função do anonimato previsto pela ética de pesquisa. Foram fornecidos a eles 98 fotos de pessoas desencarnadas, fornecidas pelos parentes à pesquisa, com uma média de 7 a 46 fotos por sessão (p. 3). Os médiuns só tinham acesso às fotos no início da sessão, e o pesquisador que as levava não teve contato com os familiares das pessoas. Os médiuns pegavam na mesa as fotografias das pessoas que eles julgavam perceber e psicografavam uma carta aos parentes. A grande maioria dos médiuns comentou espontaneamente “que se sentiu confortável durante as sessões e que se sentiu confiante que foi capaz de entrar em contato com o desencarnado”.  Os pesquisadores gravaram os comentários que os médiuns fizeram acerca das comunicações e os transcreveram, criando o que chamaram de “descrições”.

Após a coleta de dados, produziram-se 78 cartas e 64 descrições a partir de 18 sessões mediúnicas. Cada consulente (sitter) recebeu um conjunto de seis cartas e seis descrições, sendo uma das cartas e uma das descrições atribuídas ao parente ou amigo do qual ele desejaria ter notícias. As cinco outras cartas e as cinco outras descrições eram de desencarnados com o mesmo gênero e idade aproximada.

Essencialmente os consulentes avaliaram as cartas e as descrições com uma escala que tem 4 itens que vão de “estou certo que esta carta não se refere ao meu parente ou amigo” a “estou certo de que esta carta se refere ao meu parente ou amigo”. O mesmo foi feito com as descrições. Há classificações intermediárias, como “possivelmente se refere” e “possivelmente não se refere”.

Havia também uma escala para avaliar os itens de informação, mas não houve muita informação objetiva (informação que pudesse ser verificada, como profissão, roupas que vestia, instituições que participou, qualquer coisa que pudesse identificar objetivamente o espírito ou não) no conteúdo das cartas em geral (p. 5). 

A análise das cartas e descrições (apenas as que seriam referentes aos desencarnados em questão) apontam, em geral, para sua não identificação. Vinte cartas não foram consideradas dos desencarnados ou provavelmente não o seriam. 19 descrições também ficam  nesse grupo. 4 cartas foram classificadas como provavelmente ou certamente escritas pelos desencarnados que se desejava contatar. 6 descrições provavelmente seriam dos desencarnados.

Os dados acima podem ser vistos no gráfico de colunas abaixo:

Figura 1: Escores obtidos dos consulentes referentes às cartas e descrições dos desencarnados que eles desejavam contatar, realizada a partir da Escala de Avaliação Global.


Os pesquisadores concluem pela incapacidade da maioria dos médiuns em fornecer “informação anômala” sobre os desencarnados em condições experimentais rigorosas. Três hipóteses explicativas são aventadas para a explicação desses resultados:

1. Os médiuns não são capazes de obter informações anômalas;

2. Alguns médiuns são capazes de obter informações anômalas, mas os que foram estudados não;

3. Os médiuns participantes do estudo não obtiveram informações anômalas porque as condições da pesquisa foram muito restritivas e artificiais.

Os autores levantaram algumas condições que poderiam ser observadas nos próximos estudos com médiuns psicógrafos em busca de melhores resultados.

Independente do resultado obtido, o estudo merece a leitura dos espíritas, especialmente os que praticam a mediunidade, no sentido de possibilitar debates e reflexões sobre as reuniões que mantemos, as capacidades reais de nossos médiuns e o que podemos ou não oferecer ao grande público com segurança, em matéria de informação. 

Outros estudos com médiuns já mostraram resultados com informações objetivas fornecidas por médiuns que não poderiam tê-las obtido por aprendizagem ou mesmo fraude, mesmo em estudos experimentais controlados. Que possamos aprender com os fatos e desenvolver mais os cuidados que dispensamos na identificação, desenvolvimento e educação dos médiuns, bem como com a avaliação, confirmação e divulgação de informações obtidas pela via mediúnica.

Elizabeth Schmitt Freire, Alexandre Caroli Rocha, Victor Scio Tasca, Mateus Moreira Marnet e Alexander Moreira-Almeida, Testing alleged mediumistic writing: na experimental controlled study, Explore, New York, Elsevier, 2020 (article in press)