Noite estrelada, de Van Gogh - Vista da noite da janela do seu sanatório, pintada de memória
Discutíamos o tema separação
entre a alma e o corpo no Centro Espírita Simão Pedro, em Belo Horizonte, e um
dos participantes fez a pergunta que intitula nossa matéria.
Seguramente, o conhecimento
espírita nos dá um quadro de referências que pode ser extremamente útil no
mundo dos espíritos. Uma vez desencarnados, se em condições medianas, temos
alguma noção clara da continuidade da vida, do reencontro dos afetos, do papel
do pensamento, etc. Contudo, o ser humano é mais que conhecimento, porque os sentimentos
e as sensações, desempenham um papel tão ou mais importante que o saber em
assuntos vivenciais.
Irmão X tem um trabalho
importante chamado “Treino para a morte”, publicado no livro Cartas e Crônicas,
psicografado por Chico Xavier. É uma boa leitura para se pensar em ações
práticas para a morte. Em resumo, ele mostra muitas situações em que viver a
vida é fundamental para se preparar para a morte.
Uma das questões importantes na
nossa cultura é nos habituarmos a falar sobre a morte. Ela ainda é um tabu, um
assunto proibido, que fica ainda mais difícil de conviver quando cruza o nosso
caminho, através da perda dos relacionamentos afetivos. Recordei-me das
gerações anteriores a minha, que considerava que não se devia falar sobre a
morte porque “a atrairia”. Muitos diziam também que cemitério não é lugar para
criança. Frequento uma clínica de hemodiálise, na qual a morte está sempre “batendo
ponto”, e o assunto é visto como perturbador, ao ponto de não se comunicar aos
pacientes que um colega querido se foi, impedindo-os de prestar as últimas
homenagens e de dar um abraço de conforto na família, o que seria possivelmente
agradável ao que se foi, em um momento tão difícil.
Preparar-se para a morte, então,
começa com conversar sobre ela, em aceitar sua realidade e a finitude do corpo,
levar a sério a ideia que estamos aqui por um período e que ele pode findar-se
a qualquer momento. A proximidade da morte, com as doenças ou a idade avançada,
pressupõe sabedoria para entender os limites do corpo e para preparar o grande
momento.
Acertar-se com os desafetos que
colecionamos em momentos impensados é também um bom exercício, principalmente
se aconteceu a partir de futilidades e vaidades feridas. Os assuntos que
varremos para “debaixo do tapete” (quem não os tem?) são uma boa fonte de
perturbação no mundo dos espíritos.
O desapego gradual dos bens
materiais é também um bom exercício para a morte. Não estou pregando que nos
tornemos Franciscos de Assis, da noite para o dia, mas que identifiquemos
aquelas coisinhas com que nos prendemos e saibamos abrir mão delas aos poucos.
Nossa dirigente já desencarnada, Ada Eda Magalhães, quando começou a perceber a
proximidade da visita da morte, passou a presentear aos amigos com as
lembranças que ela colecionava de suas viagens ao exterior. Os enfeites de casa,
os livros, pratos, iam de suas mãos para as mãos dos amigos queridos. Ela não
dilapidou a herança dos filhos e netos, mas só pude perceber sua sabedoria
neste ato quando, após sua desencarnação, passei pela sala de minha residência
e vi um de seus objetos, que me remetiam às melhores recordações dos anos em
que mantivemos nossa amizade “intergeracional”. Ela certamente irá perceber,
onde estiver, os pensamentos de carinho dos amigos que ficaram.
O desapego não é algo que se
refere aos objetos, há também os cargos e as pessoas. Viver é desapegar-se. Os
pais que não aprendem a mudar seu comportamento ante os filhos que crescem e
ganham autonomia, tornam-se fonte de perturbação na vida deles. Os trabalhadores
que se aferram a um cargo, uma patente militar, uma distinção, não se
preparando para a aposentadoria, ficam como um cão faminto diante de seu osso
já roído e sem nenhuma fibra de carne. Nossas realizações valem pela recordação
de as termos concluído, pela gratificação do reconhecimento, quando ele vem dos
demais, mas principalmente do que nós sentimos ao terminar nossa tarefa. Elas
moram no passado e não no presente, agrilhoando-nos. Aprender a desligar-se de
algo que fizemos por muitos e muitos anos não é exercício fácil, especialmente
no mundo masculino, na nossa cultura.
Perceber que a morte do corpo nos
espreita, é a realidade da vida. Ele começa a morrer quando nasce, só não
sabemos ao certo quando isto se dará. Então, viver bem a vida é a melhor
preparação para a morte, que deixará de ser o bicho papão da noite da
existência e se transformará no misterioso casulo de lagarta, portal de uma
nova realidade.